Prisão de vidro - Ilusões que o tempo levou.
A casa era velha e suas paredes, caiadas em um tom de verde pálido, eram cheias de remendos de barro que atacado pela umidade, se desfazia em minúsculos grãos carregados pelo ar até tingirem os móveis com uma capa marrom. As aranhas gordas e pachorrentas, teciam seus pequenos feudos de seda nos cantos mais altos do teto baixo, onde o Sol despejava sua luz pelos orifícios nas telhas velhas, criando padrões curiosos no chão de cimento pintado com um vermelho desbotado.
Lá fora, o verão rachava o solo, até deixá-lo como um arremedo tristonho de algum tabuleiro de jogo de estratégia, no entanto, o interior da casa era frio, talvez mais que o interior da antiga geladeira a querosene, cuja ferrugem faminta era embalada pelo som monocórdio do infatigável motor em dueto com o relógio antigo, onde o cuco há muito deixou de cantar.
Sobre o piso frio, palitos queimados e cinzas de fumo de corda viravam pasto do mofo e bolor, atrapalhando a lida frenética e despreocupada das grandes saúvas em direção de seu reino construído ao lado do fogão de lenha. Em cima da mesa de tampo rachado, um pedaço de queijo coalho era disputado pelas varejeiras que imitavam o voo de colibris, ao pararem no ar por longos minutos com seu brilho metálico.
Uma garrafa de cachaça, meio gasta pela sede do dono da casa, estava largada ao lado do amontoado de gordura salgada. O homem idoso de olhos distantes e baços pela influência da cana destilada até se tornar um veneno para a memória, bebia para afastar a solidão da velhice e acalmar o desassossego da incerteza sobre o próximo amanhecer. Bebia também, para poder ser abraçado pelos dias idos e todas as maravilhas perdidas na moenda cruel do tempo, que como máquina elétrica, estilhaçou as coisas quistas ao seu coração até o transformar em um lago profundo preenchido de mágoas.
Cada copo entorpecia um bocado mais a sua alma solitária no corpo cheio de dores, o fazendo mergulhar em um sonho desperto rumo a paragens verdes onde serras e quermesses, já emaciadas na memória, roubavam as cores funestas da lente escura a qual seus últimos dias estavam cativos.
Revia as ervas sobre os montes a vergar como ondas sob a vontade da aragem vinda do agreste, as cabras a correr e balir, os vaqueiros a cavalgar tangendo a boiada em suas armaduras de couro cheias de arabescos intricados, os barcos a caminhar mansamente pelo Velho Chico rumo a cidades distantes, as lavadeiras com suas cantilenas sobre santos e amores perdidos, a casa de seu pai e o juazeiro. O juazeiro, seu amigo de brincadeiras onde menino lutava com a macacada ao lado de cangaceiros para conquistar tesouros. Seu forte mágico da infância, roubado pela fúria do céu invejoso que vendo seu carinho pela planta, cuspiu uma língua de fogo que a rachou deixando só brasas e um toco morto para trás.
Após mais um copo de bebida barata, as imagens das festas religiosas com seus fogos coloridos, as bandeirinhas de papel tremulando nos fios esticados pela praça, os repentistas despejando suas bravatas durante desafios, as procissões, os cordéis impressos em papel velho, os quitutes de fubá e açúcar mascavo, os grupos de forró e as bancas de jogos de azar desfilaram em sua mente ébria trazendo um sorriso amargo para a boca murcha e cheia se rugas curtidas pelo Sol do sertão.
Cada novo gole abria uma nova cortina do sonho desperto que vivia e nele, como peças de mamulengos, sua vida se apresentava. Viu a escolinha onde aprendeu as letras e os números, Dona Maricotinha a jovem professora que agora já era parte do pó primordial, as carteiras riscadas, os livros encadernados em couro cru, os cadernos feitos por seu pai com papel de embrulho e barbante, as filas para cantar o hino, o quadro negro torto e a estradinha de chão por onde toda manhã caminhava duas horas para aprender o bê-á-bá.
Encostada em um canto a viola, comprada na mocidade enfeitada com fitas de Nosso Senhor do Bom Fim, lhe fazia rever os amigos que formavam seu trio de forró: Chico Duro e Zé Galinha. Seus parceiros, quase irmãos, que fugiam juntos durante a noite para tocar na casa de Madame Laura, rapariga velha e gorda, cuja paga em bebida e favores da carne, eram mais cobiçados que o lugar no Paraíso que sua mãe dizia poder perder andando em tal antro de pecado. Ele quase podia ouvir os três cantando as marchinhas da moda, os boleros e as músicas de Gonzagão sobre as tristezas do nordestino. Tristezas que na época lhe pareciam bem distantes, mas que agora eram quase tudo em seu viver.
As lembranças eram agridoces, pois tamanha era a saudade que se tudo fosse cachaça, beberia mil anos sem nem ao menos a metade de uma garrafa conseguir matar. Olhava para as poucas fotos do passado que possuía penduradas nas paredes carcomidas e sentia seu peito murchar, como as ervas durante o verão do norte.
Mas nada lhe doía tanto quanto rever em seu sonho de cachaceiro aquela moça que um dia tanto amou. Aninha, a cabocla de pele acobreada, cabelos cacheados, sorriso de leite, olhos de joia e corpo malemolente. Seu único amor, o motivo da maioria de suas tristezas e dores. Ele a via em seu vestido de missa bem assentado na cintura que fazia suas formas fartas atrair os olhares de cobiça dos homens e os de despeito das mulheres. Sentia o cheiro de seus cabelos e o toque macio de suas mãos de dedos finos a tocar seu corpo. Ouvia sua voz sedutora a lhe dizer coisas bobas, que para ele eram mais belas que as histórias do Rei Salomão.
Por ela fez de tudo: deixou de beber, de brigar, ia à igreja e trabalhava mais que um jerico, só para poder com os poucos cobres que conseguia dar uma prenda nova para cabocla que lhe roubou o coração.
Já perto do fundo da garrafa, seu peito murchou um tanto mais ao rever o dia fatídico da traição de seu amor. Aninha como uma cigana lasciva se vendeu a um Coronel. O largou pelo fausto de uma vida de mulher dama na cama de um homem que não queria mais do que seu corpo para se satisfazer. Com a razão perdida, ele matou o fazendeiro cuja prata valia mais que sua devoção pela cabocla, e por isso teve de correr o mundo fugindo da Volante. Perdeu a mulher que amava e todo o resto.
E por anos viveu atocaiado na caatinga, comendo calangos e bebendo o sumo do xique-xique, para assim não pagar pelo crime que cometeu. Sem perceber o tempo passou e foi esquecido por todos. Então voltou para o meio do povo, em outro estado distante do seu e novamente trabalhou. Construiu sua casinha em um terreno perdido e seguiu sua vida, amargando a tristeza parida pelo desamor.
Com o último gole, sua tristeza se tornou tão grande que pareceu esmagar o peito, criando uma dor aguda que lhe roubou o controle do corpo puído até que caísse no chão. Dor tamanha, que começou a apagar a luz de seus olhos. Quando a réstia final ia se perder, viu em seu sonho de ébrio a cabocla que tanto amou se achegar e com um sorriso tomar sua mão, para levá-lo ao reino de luz visto durante tantos anos somente em seu coração.
Quando acharam o velho, estava duro e frio, morreu por falência do coração. O ataram em sua rede e enterraram no quintal, debaixo de um pé de pau qualquer, e por muito tempo, o povo falou do velho que durante todo o tempo viveu de cara fechada, mas que na morte sorria.
Ainda hoje a casa existe, apesar de ser apenas uma ruína, quase nada ficou nela, pois o povo tomou pra si os pertences do morto, a não ser uma foto desbotada presa em uma parede mal caiada, de um moço feliz e uma cabocla com um sorriso branco como leite.