O beijo na Rua das Lembranças
Ficamos assim, num abraço demorado, sem pressa pra palavras.
Ouvi seu coração bater. E minha respiração, ofegante pelos quarteirões a que tive de correr para vê-la, não escondeu a alegria que havia por encontrá-la.
- Senti tua falta - suspirou, enfim, erguendo a cabeça.
Como são belos ainda esses olhos negros. Tão vivos e profundos como da primeira vez que os vi e me perdi, naquela nossa infância. Pra mim, são como espaços vazios que preenchem o mundo, à espera dos pontos que os iluminam. E ao retornar desses pensamentos eu desvio o rosto. Solto-a dos braços, mas minha mão não desentrelaça ao dela.
- Quantos anos faz? - Pergunto e sorrio - Você não mudou nada. É a mesma menina, Maria.
Ela deu de ombros. Pôs a mochila pesada no chão e, me segurando com as duas mãos, aproximou ao meu ouvido num sussurro.
- Mas eu mudei… muito. Desde aquele dia; daquele beijo. Aqui. Nesta rua.
--------------------------------------------------------------------------------
- Vou-me embora. Meus pais já acertaram tudo e a gente tá se mudando daqui a uma semana. Mas eu não quero ir.
- E o que você vai fazer? Não dá pra querer fugir.
Encarou-me naquele instante e arregalou os olhos. Essa é a primeira lembrança que tenho daqueles olhos. Então veio empurrão que me fez escorregar e cair por cima do braço naquela rua calçada por pedras.
- Ai, meu braço, sua maluca. Você me fez cair por cima do braço.
- Bobão! Eu só queria ficar aqui! E ficar com… ficar… aqui!
- Eu também queria, Maria.
- Não sei se volto. Acho que não volto mais.
- Eu vou te ver. Me ajuda aqui.
- Você vai é me esquecer… daqui a pouco não lembra mais nem meu nome.
- Você é quem pensa. Agora me ajuda aqui que me machuquei de verdade.
A rua estreita, de casas antigas e portas fechadas, não permitiram àquele momento testemunhas para a menina que me ajudou a levantar e, subitamente, o beijo de despedida entre os dois amigos infantis que nunca mais se veriam. Até agora!
---------------------------------------------------------------------------------
Sentamos num dos bancos à frente de um casarão antigo daquela rua tão estreita. Rua de poucos moradores, e ainda menos de turistas. E é essa amiga, a Rua, a nossa testemunha. Ela nos avisa que a noite chegou e seus postes coloniais, como as estrelas no vazio do céu, iluminam um ponto aqui e acolá acolhendo em alguns deles outros namorados.
Ela sorri de novo. Puxei-a para mais perto, e senti que poderia me afogar naquela doce escuridão que eu via. Ainda assim, aquela mulher seria a minha vida. E, entre sorrisos e palavras, trocamos os beijos há tanto prometidos entre os anos.
---------------------------------------------------------------------------------
- Maria, vê? Ele ainda existe. Puxa! Parece bem acabado! - digo e aponto para um banco num canto da rua. Ela ainda está ao celular com nossa filha, e não se contenta em trocar apenas cinco minutos de conversa. Poxa, estamos de férias!
- Adivinha quem é a boba que tá perdendo toda a diversão.
- O que foi que você disse? - perguntou, desligando o aparelho com a vista em direção ao que apontei.
- Aquele banco lá, no dia em que você voltou. E pra mim. Quantos anos? Trinta e poucos?
Ela ri. Me dá um beijo nos lábios e encosta-se ao meu peito.
- Você não mudou nada. É a mesma menina, Maria.
- Mas a gente mudou… muito. Desde o dia daquele beijo. Nesta rua.