CORAÇÃO DE MELÃO - O CONTO

CORAÇÃO DE MELÃO - O CONTO

Coração de melão, melão, ela cantava baixinho, concentrada em riscar no chão de cimento o jogo Amarelinha. Ninguém fazia melhor que ela aquele desenho. Traçava suas divisões precisas, corretas; caprichava na linha curva do céu. Limpava as mãos sujas de carvão na saia, sacudia os cabelos desatados e chamava as outras a crianças para pular maré.

Naquelas tardes mornas da cidadezinha interiorana a meninada se juntava para aquele jogo e para outras travessuras, muitas delas inventadas por ela, aquela menininha alegre e destemida. E ele a seguia sempre nas corridas infinitas pela poeira das ruas, nos corajosos mergulhos nas águas frias do rio, nas disputas pelas frutas maduras colhidas nos quintais da vizinhança. Frequentaram juntos à escola primária e juntos aos doze anos estudavam o ginásio: ela convivia com as meninas de sua idade e ele se enturmava com a molecada do futebol, das fincas, das pipas... Mas permaneciam amigos, trocando segredos e favores.

- Podes guardar um segredo? Ela murmurou à saída das aulas, num certo dia.

- Eu guardo... Conta logo...

- Descobri uma coisa... Mas tens que jurar que não vais espalhar por aí..

- Juro, se assim queres (ele beijou os dedos cruzados sobre os lábios). Anda, não vais contar?

- Eu achei o caminho...

- Não vais dizer que achaste o caminho para a lua... Ele a interrompeu, zombando, embora estivesse cheio de curiosidade.

- É quase isso... Ela retrucou enigmática, olhando em torno, com uma expressão vigilante.

- Encontrei o caminho para a gruta da cachoeira do Tinhorão, segredou.

(Ele se assustou: Comentavam que havia uma gruta escondida por detrás das águas da Cachoeira do Tinhorão, mas não se conhecia quem já tivesse estado ali.)

- Como descobriste o caminho? O que fazias sozinha pelas bandas da Tinhorão? Não te disseram que é perigoso aventurar-se por lá?...

- Fui colher orquídeas (ora bolas), como sempre faço. Nunca vi nenhum perigo... Mas fui por outro lado e achei a gruta. Levo-te para ver, se quiseres ir...

- Quero ver se é verdade, vamos hoje...

- Não hoje... Sábado bem cedo... Não desejo encontrar gente zanzando, fazendo perguntas e nos acompanhando.

Foram no sábado bem cedinho. Margearam os matagais ainda molhados pelo sereno da noite, enveredaram pelos estreitos caminhos que levavam à cachoeira, ouvindo ao longe o seu estridor. Alcançando uma laguna a atravessaram a vau, com água pelos joelhos, tomando então a trilha pedregosa rumo ao penhasco. Ela foi à frente, mostrando o caminho. Ele a seguiu silencioso, assombrado com a coragem com que ela se arriscava, saltando de pedra em pedra. Chegaram à laje íngreme e nervurada, cobertas de raízes. Por ali ela subiu apoiando os pés nas gretas e saliências da pedra, auxiliada pelos cipós pendentes, aos quais se agarrava confiante. Ele a acompanhou com segurança, imbuído da coragem que ela lhe infundia, incentivado pela curiosidade. Alcançaram um largo degrau onde uma passagem se abria para o interior da rocha. Entraram por ela, encontrado um nicho, uma pequena gruta, fria e escura. Acomodaram-se para ver, pelos rasgos frontais das pedras, como através de uma janela, a cortina branca da queda d’ agua passando velozmente. Aquele segredo comum eles o guardaram por toda a vida. Repetiram outras vezes a escalada perigosa para de novo apreciar do interior da pequena caverna, o véu líquido que tombava do alto, encobrindo o horizonte.

O tempo correu. Terminados os anos cursados no ginásio, ele passou aos preparatórios, pois, como os irmãos mais velhos, também desejava cursar uma faculdade. Ela foi desenvolver a arte dos bordados, para que tinha talento e uma grande paixão.

Conviviam com pessoas diferentes; não eram mais inseparáveis. Todavia não deixaram de encontrar-se em festas, em eventos, nos clubes da cidade, e assim mantiveram vivos os laços da antiga camaradagem. (Ele ainda a chamava Coração de Melão, lembrando o refrão que ela cantava em criança). E, com esses encontros, de uma hora para outra se descobriram namorados. Para os amigos a erotização da sua amizade não causou surpresa, ela foi tão só a constatação de um fato por todos esperado.

Descobrindo o amor eles o desfrutaram com uma avidez desmedida, a mesma avidez com que, em crianças, compartilhavam as uvas maduras, sentados à sombra do parreiral. Envolvidos no incêndio daquela descoberta, não imaginaram quão indelével seria sua marca em suas vidas.

Aos dezoito anos ele teve que partir. Chegara seu momento de enfrentar vestibulares, escolher carreira, viver vida nova. Seus pais optaram por acompanha-lo para a Capital: desfizeram-se do escritório de contabilidade que mantinham na cidade, venderam a casa. Nada ali os prendia já que os dois filhos mais velhos se haviam emancipado, tendo vidas independentes.

Os adeuses se repetiram em muitas festas.

Os dois namorados ainda que presentes a todas elas combinaram reservar, para os dois, um dia inteiro para se despedirem.

Com um cesto de pic-nic, mantas e colchonetes partiram cedo, rumo à cachoeira do Tinhorão.

Não se arriscaram escalando o penhasco. Naquele dia não pensaram em aventuras: entregaram-se sofregamente ao amor, banharam-se na queda d’agua, deitaram-se abraçados nos lajedos, como lagartos, ao sol. Voltaram à tardinha com os corpos saciados, os corações repletos de lembranças.

Cinco anos se passaram. Ele escolhera dedicar-se à Marinha. Preparara-se um longo tempo na dura rotina da Escola Naval, fora embarcado para exaustivos treinamentos, fortalecera corpo e alma; mas em seus vagares a saudade o levava de volta à cidadezinha de sua infância, onde o amor da sua adolescência anda vivia.

Num período de licença decidiu voltar. Queria encontrar-se com o passado. Aguardava-o uma cidade diferente daquela que havia deixado: modernizada, com ares de cidade grande, ruas movimentadas, edificações novas, gente desconhecida... Encontrou alguns dos velhos amigos que o colocaram a par das novidades: Coração de Melão casara-se, divorciara-se; era proprietária da Penélope Bordados, uma primorosa loja, no centro.

Foi vê-la. Encontrou uma mulher desenvolta, atualizada, elegante como exigia seu status de empresária. Ela o reconheceu assim que o viu entrar pela porta. Abraçaram-se longamente revivendo emoções passadas. Para ambos o tempo retroagiu e a velha camaradagem os fez sair pelas ruas andando sem rumo, como antigamente.

- Quero casar contigo, ele confessou num momento.

Ela se fez séria, arrepanhou os cabelos desmanchados pelo vento, olhou-o dentro dos olhos.

- Devem ter-te contado que já fui casada. E hoje te digo: Houve um tempo que desejei que voltasses para casar comigo. Foi bom que eu me casasse com outro, pois se fosse contigo eu sofreria muito com a separação. Não fui feita para o casamento; descobri isso e coloquei-me a salvo de suas rotinas, obrigações, consequências...

Ele fez um gesto, tentando interrompe-la. Ela tocou-o delicadamente nos lábios, impedindo-o de falar, continuando:

- Vou amar-te sempre, podes acreditar, mas casar-me contigo seria destruir esse encanto que nos une. Não aceito compromissos, quero ser a dona da minha vida e da minha liberdade.

Ele a ouviu atônito, embora de alguma maneira a compreendesse. Era marinheiro e como tal conhecia a essência de viver sem as opressões da terra firme. Trazia no seu íntimo a ânsia libertária, o desembaraço dos navegantes que gozam da amplitude dos oceanos.

Durante todo o período da licença ambos compartilharam o pequeno apartamento onde ela morava, em cima da loja de bordados. Era sabido que aquele apego seria temporário, pois logo as obrigações de marinheiro o colocariam a caminho.

Despediram-se como o ardor da sua mocidade. Na manha da partida ele a deixou, ainda adormecida, no quarto sombrio onde o ar frio da madrugada espargia o perfume do seu corpo morno.

Sentado no volante do automóvel, ergueu os olhos para a placa iluminada da Penélope Bordados. Lembrou-se então do mito grego que contava a história da deusa Penélope que tecendo aguardava o regresso de Ulisses.

Quando, distante, na solidão do mar, ele sonhando, desejasse o azougue dos seus olhos, a caricia de suas mãos, o incêndio do seu corpo, sua Penélope, bordando, o esperaria.

hortencia de alencar pereira lima
Enviado por hortencia de alencar pereira lima em 10/10/2014
Reeditado em 24/12/2014
Código do texto: T4994454
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