ABANDONO
ABANDONO
Chegando a casa eu soube que ela partira, vendo a chave da porta no chão, ao pé da janela, por cuja fresta a atirou quando saiu.
Cumpriu finalmente a promessa feita tantas vezes, em tom de brincadeira, entre risos e beijos, com palavras amargas, com queixa e rancor, com olhares silentes, com soluços de mágoa!
Eu nunca acreditara: ”são tolices de mulher”, pensava...
Hoje sei que não eram e, perplexo, nesta casa vazia, procuro a explicação que ela não deixou.
Sou um homem reservado. Talvez eu seja um machista convicto,
(que sei eu?). Ela dizia que eu me comportava como tal. Não sou de muito agarramento e muito mel; chamego?, há de ser na hora certa; falo pouco; detesto que me interroguem, que indaguem sobre meus atos. Disponho da minha liberdade que julgo correta desde que não exorbite os limites do dever. Mas sofro certo ostracismo em relação a íntimos sentimentos; é-me penoso expressar minhas paixões; por isso deixei-a na ignorância do meu grande amor. Impossibilitado de abrir meu coração, na falsa necessidade de preservar-me, não querendo abrir mão da minha preciosa independência, fiz exigências injustas, agredi com silêncios, ergui barreiras; impus distâncias, desprezando momentos de profunda beleza.
Fui déspota e cruel, mas foi sem intenção. Apenas não soube demonstrar o que sentia.
Se muito a feri, fiz o pior comigo: violentei minha alma cheia de ternura. Sufoquei doces emoções florescentes.
Será tarde demais?... (quem sabe ela volta?).
Pouca coisa levou: uma mala de mão e a sacola, compradas no último verão... Um conjunto de linho, os saiões estampados, um par de camisetas, o conjunto de blusa e fuseau, um jeans Calvin Klein. As botas de cano longo, as sandálias sem salto.
Os tênis All Star. Cintos e meias, a lingerie de renda, isso tudo levou. Saiu como se fosse p’ra um fim de semana, porém, ela deixou a chave, uma evidência de que não vai voltar.
Ao fazer o inventário das coisas levadas, vou como que indagando ao que ficou, a explicação de seu ato final.
Pôs os vasos de plantas lá fora no pátio, para apanhar sereno. Deixou a reluzente baixela de prata... A caixinha de música que toca o Danúbio Azul... Os castiçais de cristal, suas velas perfumadas... Coisas que ela amava e ás quais dispensava cuidados. Mas intriga-me a chave atirada no chão como um sinal de adeus.
Perambulo pela casa vazia, reconhecendo a importância de coisas passadas; vou reatando elos de lembranças antigas, e estabeleço novas normas de conduta, caso ela algum dia se lembre de voltar. Ela se dava bem com toda a vizinhança: eu implicava com isso sem motivo algum... Que custava aderir, desfrutar a gentil amizade, de gente sempre pronta a servir, conviver, frequentar... Dos parentes, então, nem era bom falar: meu extremo egoísmo não lhe permitia, com outros, dividir seu mundo; ela só a mim devia pertencer... Agora reconheço: construí esse desajuste; e mereço, de fato, o seu abandono.
Está vazia a gaveta do criado mudo onde ficavam seu terço de prata e seu livrinho de orações. Recordo-me dela, ajoelhada junto à cama onde nos tínhamos amado, ainda nua, rezando, contrita, antes de dormir. Levou o terço o livro de orações e a imagem de São Jorge, sua devoção.
Não, não pode ter-se ido para sempre. Com certeza voltará, lembrando que só o sereno não nutrirá as plantas de seu horto caseiro. Sentirá falta dos livros que deixou ficar... Levou um CD antigo do Chico Buarque, um livro de sonetos do Vinícius de Morais; levou também o Manual das Bruxas, com o qual ameaçava transformar-me a vida, quando se cansava da minha intemperança.
Voltará um dia, quando sentir saudades... talvez... (do meu abraço?). Mas deixou a chave... Ela jurava que a deixaria se partisse de vez.
O armário do quarto e suas gavetas mostram o quanto deixou: intato o enxoval com seus bordados e entremeios de renda, os vestidos de festa, várias blusas de seda, os casacos de lã, as sandálias douradas que lhe dei no Natal... Não atino com o critério que usou ao escolher a bagagem da partida. Registro cuidadosamente as coisas levadas, apoiando-me no fato de que foi muito pouco para quem não pretende voltar. Levou as camisolas, os pijamas de cetim, as pulseiras de prata, o relógio de pulso, o anel de brilhantes do nosso compromisso...
Levou o álbum de postais de nossas viagens, o livro de receitas de cozinha que herdou da avó; deixou o biquíni ainda novo que eu achava ousado e um maiô desbotado de outros verões.
Partiu sem deixar recado, explicações ou seu destino. Talvez alguém saiba aonde foi, mas minha louca reserva não me deixará indagar.
Não pretendo busca-la, ainda que acossado pelo desespero, mesmo que o sofrimento me estraçalhe o coração.
Posso viver aqui curtindo lembranças, vendo, dia a dia, as plantas morrendo nos vasos, carentes de cuidados, como eu próprio estarei. Posso enclausurar-me nesta casa repleta das coisas dela, onde o ar parado conserva ainda o aroma do seu perfume. Posso continuar para sempre me corroendo no ácido do meu ciúme, imaginado quem aplacará sua fome de beijos e a sofreguidão do seu corpo na hora do amor? Quem a verá rezar, depois, toda nua? Quem escutará as toadas e canções que só ela sabia cantar? Que a ouvirá benzer e maldizer? Quem suportará seus momentos de ira, seu orgulho desmedido sua incoerência? Para quem fará a sobremesa dos domingos, a cesta dos pic-nics, o bolo de aniversário, o café cotidiano?
Levou a caixa de maquiagem e a colônia francesa com que se perfumava.
Levou o brilho de sua presença... o alvoroço de sua alegria... a vertigem do seu desejo.
Levou minha esperança... a motivação da minha vida... a luz dos meus dias... a doçura das minhas noites... e o meu retrato.
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