Descobrindo a verdade

Que belo dia está fazendo hoje. Dias como esse me fazem lembrar que tenho mesmo uma visão privilegiada daqui do consultório. Dá para observar o parque logo em frente com suas árvores, chafariz, seus pássaros, o sol e sua luz natural e principalmente invejar as pessoas que podem se dar ao privilégio de aproveitar todas essas coisas. Só de vê-las assim já dispara por dentro uma certa alegria de viver. Alegria de ver alegria nos outros. Livres de amarras, de compromissos, de dores e pensamentos ruins que possam existir. Tudo é paz e calor. Uau. Um dia como hoje inspira mesmo. Até meus pensamentos...

A maior parte dos pacientes cancelaram as consultas hoje, assim posso me dar ao luxo de ficar sentada ao lado da janela e aproveitar todo esse visual. Dá vontade de descer até lá e fazer parte dessa “farra hedonista” e descarada em plena tarde de sexta-feira, mais precisamente às 15:30 h da tarde. Mas não gostaria de ir sozinha. Gostaria de ir com o Rômulo.

Estamos casados há treze anos, temos dois filhos e ainda me sinto apaixonada. É claro que eu não me derreto mais como antes, assim como é óbvio que algumas coisas mudaram e outras mais acabaram por se desgastar, mas as coisas importantes, todas estas, se mantêm como eram no início. Ok, está bem, talvez nem todas. Mas não há nada que eu consiga imaginar que me deixe ainda tão à vontade com alguém, uma familiaridade tão próxima que me complete ou talvez próximo disso.

Acho que vou ligar pra ele e ver se por um acaso consegue sair um pouco mais cedo para fazermos um programa juntos. Nunca faço isso, mas não custa nada tentar, com um dia desses... três dois três quatro tararam tamtam... pronto. É só esperar... alô, boa tarde, eu poderia falar com o Rômulo? Como? Ele já saiu? Às sextas ele costuma sair mais cedo? Ah, tudo bem, obrigada, então. Que estranho. Ele não me disse nada sobre isso... Deve ter ido tratar com algum cliente.

DUAS SEMANAS DEPOIS

Ele anda estranho. Misterioso. Ou vai ver que é uma fase que está passando. Ou sou eu mesmo. Acho até que sou eu. Cirurgiã Dentista, trinta e cinco anos. Sempre me realizei vendo o sorriso satisfeito das pessoas com quem eu lidei. Porém, ás vezes... parece que nada disso me importa. Às vezes parece que essa minha profissão se reduz a escavar “crateras” e “tapar buracos”. Aff, acho que eu estou depressiva mesmo, hoje.

Talvez o que me falte mesmo é um hobby, sair da rotina. Nunca pensei nisso, sempre estive satisfeita, mesmo com poucas amigas, sendo muito caseira... Ahh, a quem quero enganar? Porque estou pensando nessas coisas? Eu sei a razão...

Minha desconfiança. Rômulo continua o mesmo: atencioso, companheiro, brincalhão. Só que eu desconfio dele desde que eu soube das suas saídas mais cedo. Ele nunca falou nada sobre isso. Não tenho coragem de enfrentar a verdade, ainda que ela possa ser banal, comum, corriqueira. Só que eu duvido muito disso. Depois das coisas que descobri, não há como ficar tranquila, tudo mudou. Tudo que eu possuía, se foi. De uma hora pra outra,

As minhas descobertas só pioram a situação. Antes, eu achava que podia ser um hobby seu e que era uma questão de tempo vir me contar, mas isso não aconteceu. Depois comecei a imaginar que ele teria uma amante. Fiquei arrasada. Minha auto-estima foi quase toda destruída, não fosse pelo meu trabalho. Ainda que eu passasse a questionar até sua utilidade real, foi ele, meu trabalho, que me manteve em pé. Fiz terapia. Nada resolvia, tampouco ajudava.

A ideia de uma pessoa qualquer vir a me substituir é terrível, arrasadora, fulminante. Mesmo porque me considero uma ótima companheira, em todos os sentidos. Mas até isto eu coloquei em xeque. Será mesmo? Imagine essas dúvidas todas martelando a cabeça dia após dia? Não sei por que fiquei adiando conversar com ele, se o seu e o meu silêncio estavam me corroendo por dentro.

Mas o pior aconteceu justamente no dia em que decidi conversar e acabar com toda minha dor de uma vez. Digo acabar, sim, porque confirmando-se a minha desconfiança, não haveria outra forma senão o rompimento definitivo, não importando as consequências.

Foi sem querer, pois não enlouqueci a ponto de fazer uma “vistoria” nas coisas do Rômulo. Mas quando fui colocar algumas camisas suas no armário, reparei numa bolsa suspeita. Por três vezes seguidas coloquei e tirei a mão dela. Até que me obriguei a abrir e olhar, para pôr um fim na minha angústia. E o que eu encontro dentro da bolsa? Maquiagem, calça de couro, botas, uma peruca de cabelos longos e diversas pulseiras de aparência grosseira.

O que eu poderia pensar senão que tudo era bem pior do que eu imaginava? Agora além de ser traída, seria não com mulher mas sim com homem. Ou homens, sabia eu quais seriam as suas fixações, as suas taras, depois de ver toda aquela quantidade de roupas e adereços?

Não podia imaginar que algum dia Rômulo chegaria a esse ponto. Que nossa relação viesse a se transformar em algo próximo de uma novela fajuta, de um filme de terceira categoria. Onde eu falhei? O que é que deixei faltar?

Essa descoberta me abalou profundamente. Não penso em nada mais senão desmascará-lo. E uma vez desmascarado, olhar profundamente em seus olhos para sentir o que poderá ser o pior dos sentimentos e ali encerrar um relacionamento que até ontem parecia perfeito, pelo menos para mim. Percebo agora tarde demais, agi como uma tola ao confiar.

DIA SEGUINTE - SEXTA-FEIRA, ÀS 16 HORAS

Ele me disse no almoço de hoje que vai sair do trabalho direto para jogar com os amigos e que após haverá um churrasco entre eles, até tarde. Ah, sim um churrasco, entendo.

Agora, pela tarde, liguei para o seu escritório e me avisaram que ele saiu mais cedo, como sempre às sextas-feiras. Quando eu pedi, em tom de brincadeira, para que ele não ficasse sabendo das ligações para não achar que está sendo monitorado pela mulher, me disseram, para minha surpresa, que ele já sabia das minhas ligações e que estaria me esperando hoje à noite na rua Espartan, número 346. Quando ouvi isso fiquei paralisada e desliguei o telefone. Não podia acreditar.

Agora ele queria, então, me enfrentar. Na verdade o desejo dele é mesmo me afrontar. Bem mais fácil que conversar, contar a verdade e tentar explicar, é mostrar de maneira impactante, o seu verdadeiro eu. Assim, de maneira crua. Do modo mais humilhante. Que assim seja, então.

À NOITE - 22 HORAS, NA FRENTE DA BOATE/BAR

Acho que é melhor assim. Ver para crer e terminar tudo de uma vez, depois que eu me horrorizar com o que vai ser finalmente revelado.

Não acredito que estou entrando aqui. Olha só para estas pessoas. Estranhas, mal arrumadas, mal cuidadas. Bem que eu imaginava que esse lugar seria assim mesmo. Bem assim. Escuro, enfumaçado, barulhento. Não sei o que estou fazendo aqui. Vou só dar mais uma volta, procurar por ele e se não achá-lo agora, vou embora de uma vez.

Chega. Não consegui encontrá-lo. Vou embora.

Mas antes mesmo de eu me dirigir à porta de saída, um jovem de cabelos compridos vem em minha direção e pede que fique um pouco mais e assista ao show que vai iniciar. Já era possível ouvir os primeiros sons vindos do palco, um pouco mais ao fundo do salão. A partir desse momento algo se mexeu dentro de mim, o estômago deu uma volta. Corri ao banheiro porque achei que fosse vomitar, apesar de que, naquele momento não iria querer sair do lugar porque precisava assistir o que acontecia no palco. Joguei água no rosto algumas vezes e bebi um pouco diretamente da torneira.

Retornei imediatamente ao salão e corri para perto do palco, acotovelando as pessoas que estavam à minha frente. Já de frente para o palco, paro, olhando embasbacada. É Rômulo que está ali no palco, sem camisa, de cabelos longos, pulseiras grosseiras e calça de couro e botas. Mas diferente do que eu imaginava.

Apesar de tudo o que passou pela minha cabeça em questão de segundos, e, ainda que surpresa, eu pude perceber que ele cantava magnificamente. Com uma voz aguda, encorpada e movendo-se graciosamente pelo palco, assisti paralisada. Rômulo agia como se fosse um profissional, como se soubesse e entendesse exatamente o que está fazendo. Como se viesse ensaiando já há um bom tempo. Como que, parecendo um garoto fascinado, saísse mais cedo da escola para ensaiar com sua banda. Como se fosse, naquele momento, a coisa mais importante da sua vida. Vida essa que poderia estar passando por uma crise de monotonia, de estagnação, de falta de rumo, de horizontes possíveis. Horizontes os quais um dia estiveram repletos dos sonhos mais lindos.

Foi no palco de um ambiente que já não via mais com olhos de desprezo, que Rômulo divertia-se e dava, eu acredito, um sentido mágico à sua vida através da música que cantava. Se meu inglês não falha, “I was a young man full of hopes and dreams” significa algo como “Eu era um jovem cheio de esperanças e sonhos”.

Quem poderia imaginar que, agora, eu teria oportunidade de ver como era meu marido exatamente há vinte anos atrás, na sua juventude de cabelos compridos, aos dezessete anos de idade? Sendo que a única oportunidade que tive de admirar essa fase linda foi senão através de algumas fotos antigas da banda que ele sempre se referia com orgulho e nostalgia.

Muitas poderiam ser as formas de se conquistar a liberdade. Muitas coisas seriam possíveis de imaginar para tentar mostrar a si mesmo que há muito o que fazer e viver. Rômulo tem a sua. Com a sua banda cover da banda inglesa Iron Maiden, ele se banhava na fonte da juventude e se negava a fazer de conta diante de uma vida mascarada por sentimentos e emoções impostos pelos outros e que muitas vezes nada tem a ver com os nossos.

Eu li, eu entendi tudo isso no momento em que o vi no palco. E nos comportamos da mesma forma que no dia em que percebemos que nos amávamos: olhamos profundamente nos olhos, iguais e únicos, ele no palco e eu na plateia, como uma fã. E, ali mesmo, reafirmamos a decisão de nunca mais vivermos distantes um do outro.

Danilo Hax
Enviado por Danilo Hax em 20/07/2014
Código do texto: T4889726
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