Meu café com adoçante, por favor
Meu café com adoçante, por favor
Adolfo, assim como muitos, tinha um vício que não podia esconder, aliás, numa sociedade do século XXI marcada por extremismos e superficialidade fica difícil ser estranho no ninho e não se converter a nenhuma mundanidade como o vício... Bem, ele era viciado em café, tanto que chegou ao ponto de tentar vender café numa ilusão de que seria fácil assim como tomá-lo, mas deu errado para alegria de seus familiares já enebriados pelo cheiro dos grãos.
A rotina de Adolfo não era diferente da dos outros, por isso mesmo existiam várias lacunas em seu dia que foram sendo ingenuamente preenchidas pelo cafezinho, seja ao acordar, ao chegar no trabalho, depois do almoço... Sempre havia tempo e moedas para os cafés da vida. E não muito diferente dos outros, Adolfo também tinha família, uma mulher, dois filhos, um cachorro, muita responsabilidade, contas a pagar. Quem não se renderia ao vício? E sua vida tão entrelaçada com o vício poderia até ser resumida a um café desses despretensiosos.
Seu amor por Luiza, esposa amada, começou com água quente, sim, o casal se conheceu numa dessas viagens de família para parques aquáticos, e como o café, tudo iniciara pelo ferver da água, o esquentar de corações, turbilhões de adolescência, tão quente, tão fervente, fervorosa, erupções de paixão. E como algo que é dosado de maneira milimétrica os dois foram se conhecendo, e aquilo que era água fervente recebeu aos poucos doses pequenas de pó marrom, e o líquido foi tomando cor, um marrom avermelhado típico de regiões quentes... Era amor mesmo!
O desenrolar já é um tanto quando clichê, forma-se o casal, começa o namoro, ouvem-se críticas, pedem noivado, quando esse chega cobram o casamento, e depois os filhos... Grãos de açúcar para algo meio amargo, sim, o amor de Adolfo e Luiza tinha suas amarguras, suas notas de trabalho árduo, compreensão mútua, cumplicidade, entrega, e como tudo aquilo que é bom há de sobressair sobre algo ruim, sim, eles tinham o que esconder, e por trás da doçura das crianças, vem as desavenças de um amor que começara a esfriar... Um amor apaticamente gélido. Talvez fosse o capitalismo, falava consigo mesma a inteligente e pseudo-conformada Luiza, esse tal monstro deveria ter tomado do marido as fervuras de outrora, as notas doces que um dia existiram, talvez todo o trabalho para colher tais grãos fossem hoje revelados por uma rotina massacrante... Dias de selva nos cafezais de bem viver.
Tentando salvar o casamento Luiza dava uma remexida nas coisas, escolhia, por vezes, colheres pequeninas, e seu toque feminino ficava claro com os tons de rosa que recebia o café de nós dois, essa doçura nata, estrogênica, ai mulheres! E tentava distribuir melhor o açúcar que agora ficava no fundo, sobreposto por mentiras, densidade e outras coisas mundanas. Falava que ia melhorar, acordava cedo, concordava com tudo, abdicava de luxos triviais... Era mulher, era tornado, tentando levantar a doçura no fim da xícara.
Como talvez última tentativa, Luiza abdica de todo o pânico herdado de seus tempos de criança, um dia fora perseguida por um cachorro de um terço de seu tamanho e fora obrigada a tomar 7 vacinas das quais lembra com exatidão, e compraram Tobi. Adolfo se distraiu um pouco, remexeu um pouco mais o café, adicionou um pouco de leite, tentando tirar as máculas de suas mentiras, riu amarelo, jogou alguns brinquedos para Tobi, mexeu o café novamente, achou fraco demais. E Luiza chorou baixinho, deitou do outro lado da cama, fez revoluções silenciosas, desafiou Deus a livrá-la daquilo, e como quem ressurge das cinzas, tenta a última cartada, o esquentar final, um tiro no escuro.
Era 25 anos de casamento, poucos tinham a doçura como marca, os de início sempre parecem mais quentes mesmo, como o café, depois se vai ficando velho e o leite se torna necessário, tapar as máculas de nós, e Luiza sugere uma lua de mel, quem sabe para adoçar a vida, esquentar o último gole, ter prazer com café gelado... E foram-se os dois a Buenos Aires, o dinheiro nunca foi problema, dançaram um tango argentino, fizeram compras, até riram juntos da última fagulha de uma lareira qualquer. Enquanto Luiza tentou pegá-la, Adolfo foi ao banheiro, se desencontraram, era tarde da noite, ela foi deitar cansada e satisfeita por um conformismo, seja lá o que fosse aquilo que ainda conseguiu ressuscitar a chama para esquentar algo já gelado... E Adolfo foi ao cabaré.
E como quem não fez nada levantou, tomou seu café, beijou Luiza, e tudo estava quente demais, o café ficou muito forte, foi pó demais para a água que existia, Adolfo tentou fazer furacões para diluir, estava saturado demais, e o pó subiu... E panelas voaram, gritos foram ouvidos, desavenças foram expostas, chega de pose, chega de leite, o café estava puro, forte, quente e não estava coado, fora jogado pelo ralo. Fácil demais deduzir onde estava Adolfo depois de sair de casa, numa cafeteria qualquer, alimentando o vício, usava adoçante, diabético que era, preferia café puro, expresso, e muito quente, havia de se soprar para acalmá-lo...
Enquanto isso do outro lado da realidade, estava Luiza, tão senhora de si, dona de cafezais, reconstruíra a vida, planta cana-de-açúcar, tinha seu gado leiteiro, ainda apaixonada, mulher sempre mais abalada... Se consultava agora com uma charlatã dessas de ruas sem saída, lia seu destino numa borra de café.
Gabriel Amorim 30/03/2014