I don't want to leave her now

Eu nem estava arrumado o bastante quando ela chegou. O vestido branco fazia com ela fosse a única criatura que realmente merecesse ser clonada para um futuro distante. Seus olhos castanhos iluminaram-se ao perceberem que o apartamento estava limpo e sem pizzas mofadas. Senti uma leve pressão no estômago ao pensar que ela poderia descobrir o que tinha feito. A pressão foi direto para o coração no momento em que ela me abraçou.

“Você que cozinhou?” Ela indagou referindo-se ao macarrão.

“Eu deveria ter pedido pra minha mãe cozinhar. Sou um fracasso.”

“Eu amo fracassos.” Dentes brancos e totalmente certos se mostraram.

“Espera um minuto. Eu tô um cocô.” Eu disse e saí em direção ao quarto.

Uns dez minutos depois, eu fui até a sala. A garota dos olhos de lama estava no sofá. Ela fungava e parecia estar gripada.

“O que houve?” Eu indaguei.

“Só alguns trocados furados. Eles são frutos de uma aposta tosca que foi feita por aquele que eu pensava ser o grande amor da minha vida. Qual é o meu valor? Cento e vinte e cinco? Mais? Acho que um chute nos testículos vale uma ida ao hospital.” Eu disse com o rosto pálido de raiva.

“Eu posso muito bem explicar! Eu estava precisando de dinheiro...”

“Você precisa do inferno! Talvez você devesse ir pra lá! Você seria uma ótima companhia pro capiroto.”

“Como você soube?”

“Aquele prostituto com cara de travesti veio aqui te lembrar do que você tinha que fazer e me contou.”

Eu fiquei calado. Se eu dissesse algo eu teria que ir ao banheiro. Eu só diria merda.

“Você me enoja!” Ela disse enquanto jogava o que via pela frente contra a parede. “AH! Como eu te odeio! Você merece morrer com uma guilhotina te cortando ao meio!”

Eu ouvia tudo calado. Palavras não adiantariam. Nada adiantaria. Era oficial: eu a perdi por não valorizar a garota especial que eu tinha perto de mim. Maldito prostituto com cara de travesti.

Ela saiu sem gritar um último xingamento. Bateu a porta tão forte que eu pensei que fosse derrubá-la.

O que me restou foi a velha cadeira empoeirada. Eu olhei o apartamento que ainda tinha o cheiro dela. Acredite, eu nunca senti algo assim. O aroma era doce e o vinho barato ainda estava na taça dela. A velha música dos Beatles ainda tocava no volume quase mínimo e no modo de repetição. O apartamento estava de cabeça para baixo. Literalmente. Os pratos de porcelana que antes serviam o espaguete, agora estavam espalhados pela sala. A velha televisão não teria conserto. Os copos vazios que estavam em cima de uma prateleira qualquer, nunca mais serviram água pra visita chata. A única lembrança da fúria era o velho porta-retrato. O lava jato comunitário, a mangueira espalhando água por todo lugar, meus olhos encontrando os dela e dois sorrisos bobos pra completar. Segurei-o e comecei a chorar por lembrar-se dos momentos juntos. O arrependimento não saía do meu coração. Eu ainda não tinha percebido o quanto ela era perfeita pra mim. Que merda.

“TOC, TOC, TOC”. Quem poderia ser? Deve ser o entregador. Não, não deve ser. Eu não pedi nada. Talvez fosse um mendigo psicopata com um garfo.

“Quem é?”

“Sou eu.”

Eu corri pra abrir a porta. Não sei por que eu corri. Talvez ela tivesse voltado pra me chutar na virilha. Talvez não.

“É... eu esqueci minha bolsa.” Ela olhou para o que eu segurava. “O que é isso?”

“Uma foto velha.”

“Com certeza de você com uma velha namorada.”

“É. Com a mais especial.” Eu a mostrei a foto.

“Se pensa que eu vou voltar pra você...”

“... eu estou muito enganado. É eu sei disso. Sua bolsa está no sofá.”

Ela parou pra ouvir a música.

“Qual é a música?”

“Something dos Beatles.”

“Aquela que você dizia que queria cantar pra mim.” Ela sorriu.

“Desculpe-me. É eu fui um idiota, mas eu te amo. Só vim perceber isso agora.”

“Que pena.”

Ela pegou a bolsa e foi na direção da porta. Eu segurei forte seu braço a fazendoela virar-se para mim.

“O que foi agora?”

“Something in the way she moves

Attracts me like no other lover

Something in the way she woos me…”

“Mas o quê?”

“…I don't want to leave her now

You know I believe and how…”

A minha voz era desafinada, mas ela parecia gostar.

“… Somewhere, in her smile, she knows

That I don't need no other lover

Something in her style that shows me...”

“A música. Era essa a música que você queria cantar pra mim.”

Eu assenti e a levei para o meio da sala.

“… I don't want to leave her now

You know I believe and how ...”

Ela sorria. O sorriso mais lindo que eu já tinha visto.

“… You're asking me will my love grow

I don't know, I don't know

You stick around now it may show

I don't know, I don't know...”

Eu mudei a música. Agora tocava uma música lenta do Elvis. Começamos a dançar.

“Eu tive vontade de me jogar pela janela quando você saiu. Era o único jeito de não sofrer sabendo que você nunca me amaria de novo.”

“Eu não deixei de te amar. Nunca.” Ela sussurrou no meu ouvido.

Eu olhei seus olhos castanhos. Profundos, desconhecidos, que me fazem pensar sobre o impensável e que me fazem expelir água máscula. Segurei seu rosto e toquei seu lábios. Ela afastou-se.

“Você tem gosto de vinho barato”

“Foi você que escolheu o vinho”

“Puta merda! Como eu tenho mau gosto”

Eu sorri e continuamos dançando. Eu pensei em dizer alguma coisa, mas logo desisti. O que importa é que ela me ama e eu a correspondo. Às vezes é só isso que basta. O amor sendo o mais surreal possível.

E, com esses pensamentos, eu senti meus olhos pesarem. Eles se fecharam e eu vi uma espécie de filme passando na frente dos meus olhos. Meu pai me ensinando a tocar violão e a minha primeira namorada me dando um fora. Um brilho forte me cegou por um curto momento. Minhas pernas bambearam e eu tentei abrir meus olhos. O coração bateu forte por alguns instantes e foi parando gradativamente até que eu caí. Um leve sorriso formou-se em meu rosto e eu senti tapinhas na minha bochecha esquerda (ou será direita?). Ouvi uns murmúrios implorando algo que eu não decifrei de imediato. Aos poucos eu fui apagando a minha vida e me direcionando para uma eternidade triste e solitária. O sorriso em meu rosto simbolizava a alegria de ter recebido um último beijo da minha amada. Morri sorrindo, pois eu sabia o quanto eu tinha sido feliz. Mas não tive a oportunidade de dizer aquelas velhas palavras especiais: “Eu te amo”.

Lafayette
Enviado por Lafayette em 02/01/2014
Código do texto: T4633857
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.