Como tudo começou
O princípio da adolescência é um momento tão mágico que vez por outra temos estalos nostálgicos que nos levam aquele outro mundo em que vivíamos. Sem grandes preocupações além de provas e lições, a fase para muitos é a mais bela e confortante da vida. Boa saúde e mente fresca fazem o dia a dia se tornar um mar de possibilidades, com momentos divertidos e únicos.
As clássicas “paixonites” que temperam o lapso da fase, as brigas e os desentendimentos com os colegas que são transformados em julgamentos eminentes, as divergências com os pais onde sempre nós tínhamos a razão e eles obviamente eram os errantes, tudo é tão fantasioso quando nos lembramos dessa época.
Tomás vivia essa fase e ainda se encontrava na flor da idade. Tinha lá seus ataques defensivos, mas era um jovem tão tranqüilo que qualquer um que conversasse com ele logo seria contagiado com a total clareza e calmaria de suas palavras. Era tímido, falava pouco e apenas o suficiente. Às vezes parecia que vivia no mundo da lua, pois era um pouco desligado. Seus colegas o consideravam como “o rapaz da paz e do amor”. Um dia quando caminhava no pátio da escola viu um desenho rabiscado na parede, era de um garoto bem penteado com um livro na mão, fazendo sinal de paz e amor com os dedos da outra e, com um baita “baseado” na boca. O retrato apesar de não identificado foi reconhecido pelo jovem, que reagiu dando um belo sorriso de assentimento.
Tomás costumava ler bastante. Cada semana que passava estava com um livro diferente na mão. Enquanto seus colegas liam vez por outra gibis e bisbilhotavam as revistas da “indústria adulta”, Tomás estava milhas de vezes adiantado. Gostava de suspenses, histórias policiais, clássicos, poesias, livros de auto-ajuda e de quase tudo que era feito de letras do alfabeto. Era um verdadeiro scanner humano.
Costumava também ler romances. Não esses muito modernos porque consideravam muito superficiais e desnaturais. Mas gostava dos clássicos que marcaram os séculos passados. Os grandes autores que agora descansam em paz e que deixaram sua marca permanente mediante as palavras eram verdadeiros ídolos para o garoto. Quando leu “A moreninha” de Joaquim Manuel de Macedo sentiu arrepio na pele durante as descrições tão bem elaboradas. Ficava imaginando como era se apaixonar por alguém numa ilha paradisíaca, abraçar e beijar uma mulher em meio às águas cristalinas sentindo a brisa refrescante. Será que existem romances assim?
O que sabia era que apreciava muito essas obras magníficas e, foi por isso que escolheu ler o mais famoso e clássico dos romances: “Dom Casmurro” de Machado de Assis. A biblioteca de sua escola era bem completa e sempre fazia bom uso dela. A velha senhora que já trabalhava por anos como bibliotecária sabia exatamente quanto tempo o garoto levava para ler um livro. Uma semana para os médios e uma semana e meia para os mais extensos. A rotina de troca de publicações já era bem reconhecida por ela e cada dia que encontrava o garoto, falava em tom alegre:
- Então Tomaz qual será o próximo desta vez?
- Vou pegar “Dom Casmurro” e deixar este dona Joana – disse Tomas colocando “a moreninha” em cima da mesa.
- Outro romance Tomás? Uuuuhh, o que será que passa neste tenro coração?-perguntou à velhinha enquanto buscava o pedido.
- Como assim dona Joana?
- Não estará apaixonado? – questionou Dona Joana, tentando satisfazer a sua curiosidade.
- Eu? Oxi, claro que não Dona Joana, é apenas uma boa leitura – disse Tomas sossegadamente.
- Bom Tomas – respondeu Dona Joana colando “Dom Casmurro” em cima da mesa – até que vindo de você eu acredito. Você lê bastante. Mas tome cuidado! – disse com uma expressão de alerta - estes livros viciam e nos contagiam. – terminou a frase dando um sorriso brincalhão.
- Pode deixar. – Disse Tomas retribuindo o sorriso.
Tomás sempre lia numa praça. Saia da escola, almoçava em casa, fazia suas tarefas e depois ia correndo até a pequena praça desfrutar de um bom ambiente e, de uma boa leitura. Claro, exceto em dias chuvosos.
E lá, debaixo de uma árvore, é que Tomas entrava em outros mundos sem que para isso precisasse de uma máquina do tempo.
Na praça podia-se ver em todos os cantos pessoas debaixo das árvores, principalmente em fins de semana e feriados. Uns usavam o local para namorar, outros para tocar violão com os amigos, às vezes via-se alguns deprimidos que precisavam de um psicólogo e também havia outros leitores. Afinal, Tomas não era o único apreciador de livros.
Enquanto lia as primeiras páginas de “Dom Casmurro” já podia sentir a qualidade da obra. Ao virar uma página para outra seu subconsciente o fez parar por um instante e, numa fração de segundos pôde entender o que estava acontecendo. Bem na frente do seu ângulo de visão, a alguns metros, uma figura de cachos loiros com roupas leves de calor apreciava as páginas de um livro à sombra de uma árvore.
As mãos de Tomás ainda paralisadas na virada de página voltaram ao normal. Mas não viraram a página e sim fecharam o livro. Tomas por um instante se esqueceu do que fazia para apreciar aquela tão admirável e bela garota. Nunca vira tamanha beleza. Aquela pele tão branca quanto às pétalas de margarida. Aqueles cachos cintilantes que deslizavam nos ombros como mel. Não existiam predicativos que pudessem descrever aquele anjo.
Tomás precisava conhecê-la, precisava saber seu nome, ser seu amigo. Amigo? Que nada precisava se declarar para ela e dizer que a amava. Mas como? Nunca tinha sentido o que sentira por ninguém antes, não sabia por onde começar. Em meio aos pensamentos aleatórios e ansiosos, Tomás continuava a fitar aquela beleza contagiante. “Ela é como nos livros” pensou. Como num monólogo o garoto sussurrava.
- Deve haver algum jeito.
Os pensamentos processavam as possibilidades e pesquisavam outras, mas nunca entravam em acordo. Suas idéias eram sempre baseadas em suas experiências no amor. Mas tudo que sabia sobre amor tinha lido nos romances, mais nada. Testou a declaração em estilos clássicos, como nas histórias:
- Ó bela criatura dos deuses, ó suserana possuidora da beleza, ó donzela sagrada e perfeita...
Caiu em si depois de julgar a declaração estupidamente ridícula para uma sociedade do século XXI.
- Tá bom, vamos tentar então uma com um pouco menos de mesura... que tal linda beleza de cachos brilhosos, és bela e charmosa,mesmo distante encantou-me os seus olhos, posso eu lhe entregar esta rosa?
Tomás mais uma vez o sentenciou como idiota, como poderia alguém se declarar tão melosamente desse jeito? Ela provavelmente iria rir e dar um baita fora nele. “não isso é ridículo” pensou “a vida é irônica mesmo, veja só meu caso, li tudo sobre amor, sei tudo sobre amor, mas mal consigo colocar nada em prática”. Pensando alto, sussurrou:
- Bom talvez eu esteja errado- disse colocando a mão no queixo – talvez o segredo para se conquistar uma mulher esteja na literatura moderna. Claro, isso é lógico, pois estes livros são mesmo antigos. As “paqueras” como meus colegas dizem talvez tenham que ser de um estilo mais moderno, direto, curto e grosso.
Enquanto vagueava mal percebeu que a protagonista dos seus pensamentos o olhou discretamente lá do outro lado da praça. Ao perceber seu olhar, imediatamente pôs-se a abrir o livro, fingindo ler.
Tomás foi para casa como um cachorro que caiu do caminhão de mudança. Um sonhador fracassado? Um “Romeu” da vida? Sei lá. Mas o jovem com um ar esperançoso recapitulou suas últimas conclusões.
- Claro, se o segredo estiver nas “paqueras” modernas, assim será. Amanha será um novo dia e farei de tudo para tê-la em meus braços.
Tomás chegou em casa e pôs a pesquisar na net as cantadas famosas. Quando começou a ler as opções ficou espantado com total pobreza intelectual. “O teu pai é ladrão? - Não. - Então como é que ele roubou o brilho das estrelas e colocou nos seus olhos?”
- Meu Deus o que isso?!
“Mina, vamos repartir um CD, você fica com o D e eu fico com O C?”
- Para onde vai esta geração?
“Pode me informar um caminho? - Pra onde? - Pro seu coração”, “Sabe o que ficaria bem em você? Eu”, “Você acredita em amor à primeira vista, ou devo passar por aqui mais uma vez?”
Depois de tantas alternativas ridículas Tomas encontrou uma que a julgou melhor, ou a menos pior. “Olá Tamara – Tamara? – Ta maravilhosa hoje, ein?
- Esta decidido. – Disse categoricamente.
No dia seguinte foi ao mesmo lugar da praça e esperou sua admirável paixão. O dia estava perfeito. O Sol espalhava sua luz a todos os cantos, formando brechas de luz entre as folhas das árvores. A brisa dava uma refrescante sensação de bem estar. “Aaa... Se como nos livros” pensava Tomás, se pudesse ajoelhar em meio as flores, beijar a mão dela e proferir poesias.... Mas não. Os tempos mudaram, e as pessoas também.
Quando viu a chegada dela, pôs-se a se esconder. “Agora preciso passar por ela e lhe soltar a frase popular.”.
Tomás foi em direção a menina dos cabelos de mel e se colocou na sua frente. A garota percebeu a estranheza do ato e o olhou com cara de ponto de interrogação. Foi então que Tomás, tomado de ansiedade falou:
- Olá Tamara.
- Como sabe meu nome? – perguntou a menina cheia de curiosidade.
- Tamaravi... O quê?
- Meu nome é Tamara, como sabe?
O plano de Tomás se espatifara em abismo abaixo. Como havia de sair dessa? “Animal que sou, por que não bolei um plano B?”. O jovem desesperado começou a proferir interjeições.
- Humm, Hamm...
Olhava para os lados e só via plantas, flores e pessoas. Até que subitamente sua mente desabrochou, correu para o jardim da praça, arrancou uma rosa voltou-se para Tamara e proferiu, estendendo a flor para ela:
- linda beleza de cachos brilhosos, és bela e charmosa, mesmo distante encantou-me os seus olhos, posso eu lhe entregar esta rosa?
Tamara olhou-o fixamente por alguns instantes. Lentamente levantou a mão, pegou a rosa e deu um lindo sorriso tímido.
- Que lindo, obrigada – Seu rosto começou a corar.
Tomás, iludido com o momento, tentava acalmar suas batidas de coração. Numa súbita surpresa olhou para título do livro que Tamara estava lendo: “Dom Casmurro”.
Foi assim, então, como tudo começou.
Tiago Fernandes Rodrigues