Lembranças

Quanto mais eu andava, mais o quarto parecia distante. O dia tinha sido exaustivo, acordei cedo sem a mínima vontade sair da cama. Eu nunca estive tão desmotivado, tão arrasado como nessa última semana. Ela tinha tudo para ser uma das melhores épocas da minha vida e acabou se tornando um pesadelo. Um pesadelo do qual eu não conseguia despertar. Meu corpo estava tão cansado que mal respondia aos meus comandos. Apressei o passo, já desesperado pra cair na cama e dormir. Quem sabe assim eu conseguisse algum sossego. Rompi pela porta e me joguei em cima das cobertas, apertando o travesseiro sobre a minha cabeça. Ouvi meu celular apitar na mesinha de canto, ao lado da cama. Suspirei pesadamente, com a mínima vontade de olhar pra tela do aparelho e ler mais uma das quinhentas mil mensagens de pêsames que começaram a me mandar desde sexta-feira. O dia da morte da Jade. E eu sinceramente não sabia de onde vinham tantas mensagens. A maior parte delas era dos nossos colegas de escola que nunca falaram conosco antes. De repente eles parecem se importar comigo e em como eu estava enfrentando a minha perda. Eu não respondi nenhuma delas. Minha mãe me repreendeu, dizendo que eu agradecer a preocupação de todos, mas na verdade eu queria todos se danassem. Eles não estavam preocupados comigo ou com Jade Nunca estiveram. Eu simplesmente as apagava e a maior parte delas, eu não me dava ao trabalho de ler. Nem sabia como eles haviam conseguido o meu número. Talvez no meu perfil do Facebook. Tateei às cegas a mesinha a procura do maldito telefone, quando um barulho me despertou por completo. Olhei o chão em volta à procura do eu havia deixado cair. Um livro. Nem precisava pegá-lo pra saber qual era.

Dom Casmurro.

Lembro-me do dia em que Jade o emprestou a mim como se fosse ontem. Machado de Assis era seu escritor favorito. Ela havia me dito que havia lido o livro dezenas de vezes, o que despertou a minha curiosidade. E o livro, apesar de ser romântico – que garoto gosta de romance?- era realmente muito bom.

Folheei-o rapidamente e meu coração apertou. Olhar para aquele livro nunca foi tão doloroso. Ele me trazia lembranças incríveis de momentos que passei com ela, mas também me traziam as ruins, como as da noite em que ela morreu. Na noite do baile de formatura.

Abri a capa do livro e vi a tulipa vermelha que comprei, ou o que restara dela. Eu deveria ter entregado a Jade naquela mesma noite, e tê-la pedido em namoro. Não. Ela não era a minha namorada. Graças a minha estupidez descomunal. Passei tanto tempo me sentindo um imbecil por gostar da minha melhor amiga que acabei me esquecendo de fazer as coisas acontecerem.

A tulipa que antes tinha uma textura aveludada, agora não passava de um conjunto de pétalas amarronzadas e ressacadas. Que antes continha um aroma doce, agora cheirava a.. A coisa velha. Não tive coragem de jogá-la fora. Era uma das únicas lembranças que me restaram dela. Como o livro, que era o único vestígio que ela deixara. A única prova de que ela tinha sido real. De que não tinha sido só fruto da minha imaginação fértil.

Eu a conheci no meio do ano, quando eu achava estar no fundo do poço. Meus pais haviam acabado de se separar, eu havia me mudado com a minha mãe pra uma cidade nova, onde não conhecia ninguém e as minhas notas, que não tinham como piorar, pioraram. O divórcio dos meus pais realmente tinha me pego de surpresa. Se você parar pra pensar, separação não é essa coisa horrível que as pessoas imaginam. Hoje em dia chega até ser normal, mas eu sempre achei que os meus pais se davam bem. Sempre vi os dois como um exemplo a ser seguido, e agora estavam em pé de guerra como duas crianças. Não acho que tenha sido um divórcio amigável. Minha vida virou de cabeça pra baixo de repente. A minha sorte foi ter encontrado a Jade na escola nova. Uma garota completamente diferente das outras. O quão clichê isso pode ser? Mas era verdade. Eu odiava ser o garoto apaixonado. Fala sério! Eu agia feito um otário quando ela estava por perto. Bobalhão, completamente rendido. Em exatos 5 meses, construí uma amizade tão forte com ela que eu passava a maior parte do meu dia esperando pra vê-la novamente. Como eu disse antes: otário!

Olhei novamente para o livro em minhas mãos e passei os olhos rapidamente pelas suas citações favoritas, que ela havia destacado de lápis para que eu lesse depois.

A noite do baile deveria ter sido perfeita. Eu finalmente a pediria em namoro. Ensaiei as falas várias vezes na frente do espelho pra não parecer um retardado na frente dela.

– Mantenha a calma! – eu repetia diversas vezes em minha cabeça. Como se fosse possível.

Eu havia chegado cedo. Até demais. Nunca tinha estado tão nervoso. Tinha comprado a tulipa no caminho do ginásio. Assim que vi na vitrine da floricultura me lembrei dela. Tinha certeza que ela iria gostar afinal, qual garota não gosta de flores? Com a sorte que eu tinha, ela diria que era alérgica ou algo do tipo. Esse pensamento não ajudou em nada a me manter calmo. Passei dias juntando coragem pra dizer finalmente o que eu sentia. Estava suando frio. Qual é! O máximo que ela poderia dizer era não, não é? Por que eu estava tão nervoso com isso?

Quando cheguei ao ginásio havia apenas algumas pessoas, tinha tempo de sobra até que o pessoal chegasse, o que me deu ainda mais tempo pra pensar nas possíveis catástrofes que aconteceriam. Como eu iria dançar com ela sem causar danos permanentes aos seus pés? Eu nunca soube dançar e também nunca precisei. Tentei pensar em outra coisa. Eu não deveria ter ido buscá-la em casa com o meu carro, como os caras fazem nesses filmes românticos?

A quem eu queria enganar, eu nem tinha carro! Também não tinha idade pra dirigir. O máximo que eu poderia ter feito é tê-la pego na minha bicicleta enferrujada.

Eu definitivamente, não fazia ideia do que estava fazendo. Estava completamente despreparado. Segurava a tulipa em minhas mãos, mas estava tão nervoso que o caule dela já estava ficando torto. Conforme as pessoas iam chegando o nervosismo ia tomando conta de mim. Será que ela viria? Será que ela estava desconfiando do que eu estava planejando? E pior, será que ela recusaria? Será que ela me daria um toco em pleno baile de formatura e me deixaria lá com cara de otário na frente de toda a escola? Eu estava à beira de um colapso nervoso e a demora dela não ajudava em nada. Quase todos já estavam lá, com suas roupas elegantes. As garotas com seus vestidos chamativos e os garotos com um smoking tradicional. Eu tava parecendo um pinguim de geladeira. Que mico. Por mim eu viria de camiseta e bermuda jeans, mas minha mãe praticamente me obrigou a usar isto.

Deixa de ser idiota, garoto. Você não vai de jeans pro seu baile de formatura nem por cima do meu cadáver!

Essa é a minha mãe. Um amor de pessoa. Mas, falando sério, eu não tinha do que reclamar. Ela sempre fez de tudo por mim. Meu pai também. Depois da separação eu sempre conversava com ela por telefone e por mais que eu odiasse admitir, o divórcio tinha feito bem pra eles. Eles estavam mais descansados. As brigas dos dois realmente os consumiam e agora estavam mais felizes.

Suspirei, olhando pela vigésima quinta vez pro relógio. Jade nunca foi de se atrasar. A tulipa vermelha em minha mão já estava ficando torta e meio murcha. Depois de uma hora eu desisti. Ela oficialmente havia me dado um bolo. Talvez ela tivesse se tocado a tempo de que eu era só um otário. Suspirei mais uma vez, decepcionado. Ela precisava de um garoto de atitude. Fiquei a semanas enrolando para pedi-la em namoro. Agora ela deve ter se cansado de esperar por mim e eu estava lá, plantado feito o belo babaca que eu sou.

Sai do ginásio com a tristeza evidente. Voltei caminhando pra casa. Já estava escurecendo, o tempo estava frio. Agradeci mentalmente por estar vestindo o uniforme de garçom. Pelo menos ele era quente. Será que eu deveria passar na casa dela e perguntar o porquê de ela ter desistido de ir? Achei melhor não. Talvez eu não gostasse da resposta.

Por que você é um imbecil. Por isso que eu não fui. Cansei de esperar uma iniciativa sua.

A única coisa que eu precisava naquele momento era de um baque desses. O bolo já foi difícil o suficiente. Estava perdido em pensamentos derrotistas quando ouvi um burburinho na esquina logo a frente. Quando eu achava que não podia piorar...

Aproximei-me do grande tumulto de pessoas que havia se formado em frente à floricultura em que eu tinha comprado à tulipa vermelha. As pessoas estavam horrorizadas. Chocadas. Atordoadas. Um tremor passou pela minha espinha enquanto me aproximava. Minhas pernas bambeavam. Um péssimo sinal. Algo de muito ruim aconteceu.

Assim que consegui empurrar o máximo de pessoas possíveis pode ver o que tanto chocava as pessoas. Um corpo. Um corpo ensanguentado na calçada da floricultura. Meu corpo pareceu desintegrar quando reconheci quem era. Jade. Meus olhos se encheram de lágrimas e a tristeza que eu sentia antes foi substituída pelo pânico, horror e desespero. Depois de algum tempo que eu havia me tocado de que estava gritando.

– SOCORRO! ME AJUDEM! ME AJUDEM POR FAVOR!

As pessoas ao meu redor também pareciam desesperadas. Vi de relance muitas pessoas com o celular na mão, provavelmente chamando o socorro.

– Alguém viu o desgraçado que atropelou a garotinha? – Um cara gritou atrás de mim.

– Meu Deus, o homem nem parou pra prestar socorro! Devia estar bêbado! – uma senhora disse indignada.

Eu não consegui pensar direito, meu corpo todo tremia. Eu nunca me senti tão mal em toda a minha vida.

As horas que se seguiram foram as piores possíveis. Sirenes. Ambulâncias. Gritos. Choros. Hospital. Espera. Morte.

Eu simplesmente não sabia como as coisas poderiam piorar.

Ela foi como um anjo na minha vida. Eu era um completo idiota quando a conheci. Irado com a vida e com o divórcio dos meus pais, sem me importar com a dor deles. Achava que eles tinham sido egoístas por terem se separado. Achava que eles não se importavam comigo.

“Você realmente acha que o mundo gira ao seu redor? Acha que eles deveriam continuar com um casamento infeliz só porque você quer assim? Deixa de ser mimadinho. E depois diz que os egoístas são eles.”

Ela me fez despertar. Ninguém nunca falou assim comigo antes. E pra um adolescente revoltado, isso foi duro de ouvir.

Ela sempre foi assim. Dizia-me o que pensava sem anestesia, na lata. E isso me fez com que eu me apaixonasse por ela. E não estou falando de paixonites de criança, e sim de paixão, de verdade. Talvez amor. Eu não poderia dizer se era amor realmente, pois nunca havia sentido nada parecido antes, mas minhas pernas pareciam geleia quando eu a via. Meu coração parecia querer explodir quando ouvia a risada fofa dela. Ou quando ela ficava corada quando eu a elogiava. O que eu sentia por ela realmente parecia não ter limites.

“Aos quinze anos, tudo é infinito” disse Machado de Assis. Mas o que eu sentia por ela realmente era. Infinito. Não importa quanto tempo passe, eu sempre vou me lembrar das covinhas dela quando ela ria. Das fitas coloridas que ela usava no cabelo. Do seu jeito fofo e ao mesmo tempo, determinado.

Agora olhando pra essa tulipa murcha e o livro que ela me deixou, eu só consegui chorar. Alguns anos atrás eu nunca me imaginaria chorando por uma garota. Diria que isso não é “coisa de homem”. Mas agora eu chorei até não poder mais. Eu realmente não me importava com o que as pessoas poderiam pensar. A Jade tinha feito isso comigo. Havia me mudado da água pro vinho. E quando ela morreu, me deixou um espaço vazio no peito. Eu nunca tive coragem de me declarar pra ela, mas aos poucos fui me preparando. Pena que tenha sido tarde demais. Queria ter tido, pelo menos uma vez na minha vida, coragem suficiente pra dizer o que eu guardava dentro de mim há tanto tempo, embora eu desconfiasse de que ela já soubesse de tudo. Todos os sorrisinhos furtivos durante a aula, os olhares estranhos que ela me lançava.

Lembro uma vez quando ela me levou pra patinar no gelo. Eu nunca gostei de patinação, mas fui mesmo assim só pra deixá-la satisfeita. Não sei o porquê, mas amava aquele sorriso dela. Fomos para a pista de patinação e eu mal conseguia me equilibrar naquela coisa, já Jade tinha bastante facilidade. Ela ria ao me ver agarrado ao banco sem conseguir me levantar. Ela girava em seus patins só pra se exibir. Levantei pra ir atrás dela e cai no chão. A risada dela ecoou por toda a pista de patinação e em questão de segundos, todos estavam olhando pra mim. Mas eu não me importei. Jade estava radiante, com um sorriso de orelha à orelha olhando pra mim, e isso já era o suficiente. Cai mais algumas vezes arrancando risos e mais risos dela. Era a primeira vez em que eu não me importei em pagar mico em público. Ela se aproximou de mim rodopiando e disse:

– Obrigada por ter vindo. Eu sei que você não gosta muito de patinar, mas eu tô muito feliz por você estar aqui comigo!

Essa frase foi o suficiente pra me fazer sorrir feito um otário pelas próximas 3 horas.

Ela foi, sem dúvida, uma das melhores coisas que aconteceu na minha vida. A dor da perda dela fazia parte e eu sempre carregaria comigo. O espaço vazio que ela deixou no meu peito nunca seria preenchido. Ela era insubstituível. Ela sempre seria a minha melhor amiga e minha ex-futura namorada. Eu não ia guardar as lembranças ruins dela, porque sabia que ela iria odiar isso. Eu iria me concentrar nas partes boas de minha convivência com ela nos últimos meses.

O amor que floresceu aos poucos e que eu não tive oportunidade de viver realmente. Meu primeiro amor.

"Estávamos ali com o céu em nós. As mãos, unindo os nervos, faziam das duas criaturas uma só, mas uma só criatura seráfica. Os olhos continuaram a dizer coisas infinitas, as palavras da boca é que nem tentavam sair, tornavam ao coração caladas como vinham..." (Dom Casmurro - Machado de Assis)

IMRN
Enviado por IMRN em 13/10/2013
Código do texto: T4524074
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