CIRANDA, CIRANDINHA, CIRANDEIRA É A MEMÓRIA

Maria Felomena Souza Espíndola

Julho/Agosto- 2013

Você veio, está no limiar de uma urdidura de palavras, cujo propósito é trazer à vida memórias que rodopiam sem descanso nas minhas cirandas. Dou-lhe boas-vindas e faço um convite: caminhe comigo por entre as linhas da escrita, em enredos de antigos e novos cenários ...

Mas, que distração! Você nem sabe quem sou. Meu nome? TEMPO. Só, sem sobrenome. Ah! mais uma coisa, sou um e três ao mesmo tempo, uma trindade, não a Santíssima, mas uma trindade inseparável: Passado, Presente e Futuro.

O Passado é sempre um turbilhão de memórias derramadas sobre o Presente: doce saudade ou travo de amargura que insiste em não ir embora. O Futuro, de passos incertos, oscila numa rede de temores e sonhos, embalados pela Esperança.

Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar... Levando no alforje este destino de ser cirandeiro, lá pelos idos de 1949, me surpreendo encontrando o passado num lugarejo chamado Rio Areão. É noite: fria, gelada, de um luar deslumbrante. Não há criatura que não se recolha, no aconchego de sua toca.

Na cozinha, uma acha de lenha ainda crepita no fogão, junto ao qual o pai, agricultor, pensa e repensa ... primeiro as águas do rio subindo e devastando tudo ... agora, a geada ... a safra ia ser magra. A mãe, professora, corrige cadernos à luz de uma lamparina de querosene. As crianças eram cinco, e quatro já dormiam. Só a mais velha ainda estava acordada, bordando flores em ponto corrente, num vestidinho de boneca feito pela tia que morava em Tubarão.

— Sabe, — é a voz da mãe quebrando o silêncio — junto com o vestido de boneca que a Maria mandou pelo ônibus, veio uma carta. Mamãe escreveu falando de um curso, o Normal Regional, para professores, e eu não posso continuar só com o Complementar. E também, se a gente se mudar para Tubarão, a angústia dessas incertezas da lavoura acaba. Podes voltar a trabalhar como alfaiate.

— Hum ...

— Na cidade, as pessoas costumam vestir-se bem, és bom de costura e não te faltará serviço. Para as crianças também seria bom, teriam mais oportunidades de estudo e outras coisas que aqui não existem: o cinema, o trem, as lojas, a luz elétrica... E eu preciso estudar mais, ter o diploma de regionalista. Não posso continuar só com a formação de professora complementarista. Os tempos são outros...

O marido dava a impressão de que ouvira tudo sem interesse. Mas um olhar mais atento mostrava um homem em silêncio, meditativo, com os olhos fixos na brasa ainda fumegante aquecendo o fogão.

A mulher, paciente, soube esperar...

Até que ouviu o marido, em voz pausada:

— Mulher, tens razão. Mas é preciso muita cautela. Deixar tudo aqui, ir embora não é simples. Tubarão é tua terra natal, eu também tenho o sonho de ir para a cidade, mudar de vida. Mas... Diacho de noite gelada!!! Já é tarde. Vamos dormir. Sobre este assunto, a gente volta a conversar.

A Menina escutava tudo. Só escutava. Falar, opinar seria desrespeito aos pais. Pelo que ouvira, tinha a sensação de ter sido tragada por um redemoinho. Havia o fascínio da cidade onde passava férias de verão, na casa da avó materna. Mas sentia também uma nostalgia antecipada deste recanto onde tudo fazia parte de sua alma. Era o amargor de uma falta do que ficaria. Era como se estivesse deixando em abandono um pedaço da infância, uma ciranda de imagens que o tempo ia desfigurar, apagar ... quem sabe?

A oração da noite em família já havia sido feita depois da ceia. Agora só os três estavam acordados, e o marido determinara: iriam dormir. À frente dos pais, a Menina deslizava silenciosa. O quarto das crianças era um só. Numa cama estavam os dois meninos, e ela dormiria, em outra, maior, junto com as duas irmãs.

— Bença, pai! Bença, mãe!

Como se flutuasse, aninhou-se no aconchego das cobertas de penas. As duas irmãs dormiam. Os dois irmãos, também. Ela, não.

No quarto do casal, a mulher tentou retomar a conversa, mas reencontrou o silêncio do marido e adormeceu. O dia fora cansativo: dar aulas, cuidar dos filhos, das tarefas da casa, uma rotina que precisava ser reinventada a cada dia, Nisto ela se esmerava. E o marido reconhecia.

O lavrador trouxe de volta a imagem da jovem bonita, que um dia viera de Tubarão para ser professora no Rio Areão... Na tarde em que a encontrou, não teve dúvida. Noivo de uma moça da terra, tirou do dedo a aliança. E versos de amor nasceram, em serenata para a moça da cidade, a morena de olhos azuis:

Eu sabia que ias chegar

e que teus olhos de safira

colocariam matizes de azul no entardecer.

Tive a certeza de que eras a alma de minha alma,

inebriada em rubras noites de amor.

Contempla a mulher. Continuava bonita, de uma beleza que a rudeza das lides em terra de roças não conseguira desfigurar. Um halo de bem-aventurança a iluminava, que esta era a essência do nome com que fora chamada ao nascer...

A noite era um abismo de quietude. Na casa, dormiam as crianças, menos a Menina Dormia a mulher, menos o marido.

De olhos insones, o homem buscava, no escuro da noite, uma seta de luz, inspiração para a resposta aos sonhos da mulher: Salve Rainha, Mãe de Misericórdia ... vida, doçura , esperança nossa ... esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei, e depois deste desterro mostrai-nos Jesus, bendito fruto do vosso ventre... Mãe de Deus, eu te peço, mostra-me o rumo a seguir ...

Também a Menina estava alerta, em rezas, pedidos de proteção divina: Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador... sempre me rege ... governa ... Guia, governa meu pai para que escolha o melhor para todos nós.

E as noites ficaram sempre muito longas, desfiando-se num pensar, repensar, rezar, rezar... rosários de Salve- Rainhas... legiões de Santos Anjos.

Foi embora o inverno, veio a primavera, que também teve seu fim. O verão recém-chegado trouxe manhãs quentes, com cigarras alvoroçadas...

Manhã de dezembro de 1949. A mulher e as crianças já estão acomodadas na carroça de tolda. Para a viagem, tudo cuidadosamente preparado pela mãe: alimentos, roupas, fogareiro, água, produtos de higiene... De carroça, do Rio Areão a Tubarão, a viagem seria demorada, com pernoite à beira do caminho. Era assim todos os anos, em dezembro, quando iam passar o Natal e o Ano Novo em Tubarão, na casa da avó materna, celebrando a alegria esfuziante de tios e primos.

Mas desta vez é diferente. O pai coloca ferrolhos nas janelas e portas da casa, que ali ficará. Estende o olhar pela lavoura, em despedida. A mobília e todos os pertences da casa irão depois. Agora, levam só as roupas e alimentos.

Sentadinha, a Menina espreita os sentimentos do pai. E percebe também que, dos olhos azuis da mãe, descem lágrimas ... brancas contas de rosário. Mais que um adeus, caem, em silenciosa prece, sobre o menino mais novo, adormecido no colo materno.

Um caminho se abre, na outra margem do rio

e por este caminho andaremos, como peregrinos:

meu marido ,

minhas três meninas ,

meus dois meninos e eu .

Porque semeei os sonhos que o caminho anuncia,

porque acenei lenços verdes de esperança,

te rogo, “Pai Nosso que estás no Céu”,

que estejas conosco, abençoando esta jornada,

agora e sempre... Que assim seja!

As rodas da carroça começaram a girar, numa ciranda que remexia raízes. Da casa até o rio o caminho era estreito, e ficavam para trás o cheiro da terra, a cantilena perfumada dos ramos dos jasmineiros, a cantoria das cigarras. Viu as limeiras margeando as águas, e o sabor das frutas impregnou saudades em germinação.

A carroça chegou ao rio. Na travessia, abrindo as águas, as rodas e os cascos dos cavalos resvalavam no leito pedregoso. Era um rumor triste, um amontoado de soluços aos solavancos, como aqueles que a Menina ia engolindo, enquanto observava uma mulher e duas crianças caminhando na ponte de arame. A ponte balançava, como um berço. O berço que a Menina estava preparando na alma, para embalar um pedaço da infância, memórias que levaria para a cidade...

Era quase meio-dia quando chegaram a Grão-Pará. Ali iriam almoçar na casa da avó paterna, italiana de Gênova. Mesa farta, de iguarias e de tios, tias, primos, primas em muitas falas, para não dar espaço ao sem-jeito das despedidas.

A Menina percorreu a casa. Decoradas com arabescos, as paredes guardavam a presença do avô, que os pintara. Era um artista o avô de raízes galegas. No quarto da frente demorou mais. Nascera ali, em manhã gelada de inverno. Depois, desceu os três degraus de uma das portas da cozinha e entrou numa abertura em arco, que levava ao porão da casa. Espaço mágico de brincadeiras: as primas, as bonecas de pano, a arrumação das casinhas ... Também a casa da avó seria embalada no berço das memórias...

A família, imensa, na frente da casa. A mãe e as crianças novamente acomodados na carroça. O pai, ainda não. A Menina tornou a espreitá-lo. Viu-o em genuflexão, diante do avô e da avó, que o abençoavam. Depois se levantou, acenou para os outros, eles fizeram o mesmo, numa ternura solene, calada... E foi acomodar-se para dar partida aos cavalos, levando o fardo de conduzir os destinos da família. Só a Menina percebeu as lágrimas quietas. Nunca tinha visto o pai chorar...

Novamente as rodas da carroça começaram a girar, numa ciranda que remexia raízes.

Anoitece. As rodas descansam. Hora da ceia, o fogareiro aceso. A oração em família, quando as primeiras estrelas apontam. Os cavalos, alimentados e em descanso. Na carroça, a mãe arranjara as acomodações.

— Bença, pai! Bença, mãe! — e a família adormecerá...

Uma aragem benfazeja suaviza o calor. O luar indiscreto bisbilhota pelas frestas da tolda. Só a Menina não dorme. A intensidade do dia ainda a atordoa. Vem-lhe à memória uma boneca de papel-machê, que ganhara no Natal e que uma noite esqueceu no jardim da casa, depois de brincar o dia inteiro. Choveu muito naquela noite. Ao acordar, lembrou-se da boneca. Quando a encontrou no canteiro onde a deixara, inteiros só restavam o vestidinho bordado e as tranças de lã de tricô. Esta lembrança a deixou mais atordoada ainda. Era como o prenúncio de que um dia, bem mais longe, quando eu, o Tempo, já tivesse andado muito e encontrado o Futuro, a ela estivesse destinada a experiência de uma dor extrema.

Saiu da carroça, abriu os braços para a lua e as estrelas e em tristeza, como se interrogasse a boneca ou a alma de sua alma, que um dia iria enclausurar-se no Infinito, gritou, com toda a força da criança que ainda era:

Por onde têm andado teus braços

e os entrelaços do carinho?

Em que mistério te guardas,

que meu abraço, cada vez mais alongado de saudade,

não te alcança?

O pai e a mãe acordaram em sobressalto. Menina não estava na carroça. Lançaram-se à rua e viram a imagem de uma Mulher de braços erguidos, enluarada. Mas, quando se aproximaram, era a Menina que ali estava. Aconchegada aos pais, entrou na carroça e deitou-se. O pai quis explicações, mas a mãe fez um sinal para que nada perguntasse. Sentou-se junto à filha e cantou acalantos.

Mãe-adivinha, sabia que, dali a cinquenta anos, a Menina seria a Mulher de braços erguidos e vazios, num amanhecer de verão, quando o filho mais novo fosse arrebatado ao Mistério, sem tempo para despedidas...

No cenário de um nascer de sol radiante, à beira da estrada, a família fez a oração da manhã e tomou a primeira refeição. Depois, novamente a carroça se põe a girar, mas a ciranda não mais remexe raízes, canta esperanças de colheitas novas, em outras lavouras, as da vida a fazer-se na cidade.

À beira do anoitecer, chegam a Tubarão. O crepúsculo é um frenesi de cores que se derramam sobre as águas do rio correndo sob a Ponte Nereu Ramos. Em travessia, a carroça segue. A Menina contempla a paisagem. Um sentimento entre paz e melancolia parece desprender-se dos prédios suspensos à margem do rio. Ribeirinhas às águas da infância, tinham ficado as limeiras do Rio Areão... Ribeirinhos às águas do Tubarão , hoje, ainda ali estão, numa policromia suave, esses prédios que, naquele dezembro de 1949, trouxeram lágrimas aos olhos da Menina.

Todos estão cansados, também os cavalos. Mas aí está a cidade, a recebê-los, a acolher os sonhos que a mulher desenhou e que o marido acalentou. De mãos dadas, o pai e a mãe balbuciam o Salmo 22:

O Senhor é meu pastor, nada me faltará. [...] restaura as forças de minha alma.

Pelos caminhos retos ele me leva,

por amor do seu nome.

Nos letreiros das lojas, luzes dançam uma ciranda de cores, uma festa de chegada. Sentem-se convidados a entrar na roda, num ritmo novo. Seguem pela Rua Marechal Deodoro e passam pela antiga e majestosa Casa Hoepcke. Numa das vitrines, uma árvore de natal rebrilhava em bolas e velinhas coloridas, coreografias de luz que ficariam para sempre nos olhos da Menina, num misto de encanto e nostalgia.

Na casa da avó materna, na Rua São Geraldo, em Oficinas, uma festa os espera. Nascida em Sete Lagoas, recém-casada, a avó trouxera para Santa Catarina os sabores da culinária mineira e a hospitalidade que reuniu, para recebê-los, não apenas a família, mas quase toda a rua. Abraços, boas-vindas, votos de que fossem felizes. A criançada rodeia a carroça de tolda e vibra com a promessa de um passeio até a Guarda.

Quando os vizinhos começaram a recolher-se, o pai pediu a palavra, agradeceu o carinho de todos e acrescentou:

— Com a bênção de Deus, o novo será lavrado, e a semente lançada, para uma farta colheita.

A Menina, mais uma vez, espreitou os sentimentos do pai e soube o quanto ele vergava sob o fardo de recomeçar tudo, longe das roças e das águas do rio, celeiros fiéis do alimento de cada dia para a mulher e os filhos.

Na manhã seguinte, a vida começou a encontrar caminhos. A casa da avó, por algum tempo, depois, moradia própria. O pai não teve sua alfaiataria. Encaminhou-se para o ofício na construção civil, que trazia a novidade do concreto armado, e ajudou a edificar prédios e moradias. E vibrava, quando dizia que estava ajudando a erguer um castelo e um moinho.

O castelo foi demolido, não faz muito tempo. O moinho ainda está entre nós, recheado de doçuras e lembranças...

O pai cumpriu a promessa de um passeio à Guarda, com a criançada, na carroça de tolda. Mas chegou o dia em que as rodas da carroça voltam a girar em retorno ao Rio Areão, cantarolando cirandas de imagens da cidade. É que a carroça e os cavalos tinham sido vendidos, e lá ia o novo dono, a assobiar uma modinha, sem se dar conta do olhar da Menina estendido em saudade.

As crianças acompanharam a carroça até a curva da rua. E voltaram quietas. Naquele entardecer, ninguém brincou .

1950, Ano Santo. A mãe o recebe como uma jornada de bênçãos: voltará como aluna ao Grupo Escolar Hercílio Luz. Fizera a matrícula no Curso Normal Regional. O diploma de Professora Regionalista era um sonho muito perto de realizar-se.

Início do ano letivo. Menina gostava de ver a jovialidade da mãe trajando o uniforme azul e branco. Também as crianças da Rua São Geraldo vão à escola. Os meninos de camisa branca, calça azul curta e suspensório. As meninas de blusa branca e saia azul pregueada. A maioria, como calçado, usa tamanquinhos com sola de madeira. Sapatos, só no Natal e na Primeira Comunhão. No desfile de Sete de Setembro, tênis e meias brancas. Caminham em bandos, em algazarra, até chegarem ao Grupo Escolar Mauá, hoje com setenta anos.

Carregando o material escolar numa bolsa de pano a tiracolo, de tamanquinhos, a Menina e a outra irmã em idade escolar chegam ao Mauá. Escola grande, bem diferente daquela do Rio Areão, com uma única sala e onde a única professora era a mãe. Bate um sinal: alunos em fila, canto do Hino Nacional, com a mão direita ao peito. Em qual fila a gente deve ficar? No começo, tudo era confuso, um atordoamento.

Mas a ciranda girava. Na severidade das professoras, foram aprendendo a descobrir sinais de ternura. Nas outras crianças encontraram amizade, companheirismo. Em 1977, quando voltou ao Mauá, como professora, a Menina teve a impressão de que ainda era a criança fascinada pelo Clube Agrícola e pela caneca de sopa à hora do recreio. E precisou falar destas e de outras lembranças para seus alunos...

Era cheia de encantos a Rua São Geraldo dos anos 50. Sem calçamento nem meio-fio, não parecia uma rua, era uma praça, onde, durante o dia, transitavam pessoas, carrinhos de mão, carros de boi, carroças, as carrocinhas do leite e do pão e raros caminhões e automóveis.

À noite, na frente das casas, fervilha o tagarelar animado da vizinhança acomodada em cadeiras. Crianças dançam e cantam cirandas, brincam de passa-anel, de pega-pega, pulam corda e, sentadas no chão, em rodinhas, contam histórias de assombração, no que a Menina passa a destacar-se. É que encontrara na fala mineira da avó, em contos e racontos, um manancial para seu imaginário.

— Conta, Menina, conta mais uma!

— Tá bem, vou contar, e é verdade, foi minha vó que contou, aconteceu com minha mãe, quando tinha uns onze anos. Bem de manhã, estava no quarto, penteando os cabelos, quando, no espelho, em lugar do seu rosto, apareceu o de uma mulher muito bonita. Minha mãe tremeu de pavor, mas a mulher disse: Não fica com medo. Me ouve: no pomar, mais longe da casa, embaixo daquela árvore bem grande, está enterrada uma panela de ouro. É tua, vais encontrá-la. Mas não conta pra ninguém. Vai hoje, sozinha à meia-noite, cava bem fundo e desenterra a panela. Aí sim, chama teus pais, conta tudo e pede que te ajudem a guardar o ouro, que é muito.

— Ai, que medo!

— Que arrepio!

— Eu não ia.

— Ela foi???

— Foi, sim — continuou a Menina. Mas não foi sozinha. Foi com o pai e dois agregados, à meia-noite. De longe, a árvore parecia estar pegando fogo, mas quando chegaram perto não era nada.

— Uiii... que medo!!! – foi o grito da turma.

— Posso continuar?

— Continua, continua!!!

— Tá bem. A mulher voltou a aparecer no dia seguinte e disse tudo de novo. E outra vez o pai e os agregados, junto com ela, cavaram, cavaram e nada... Na terceira manhã , a mulher apareceu mais uma vez e tudo aconteceu como nas outras noites, com uma diferença: depois de cavar muito e nada encontrar, uma voz de mulher gritou: Não fui obedecida. A panela há de ser encontrada por alguém mais corajoso.

O cenário desta história foi uma propriedade que a família da avó materna chamava de “casa da fazenda”, lá para os lados da Passagem. A Menina nunca viu esta casa, mas, nas histórias fantásticas e nos fatos da realidade da família, que a avó contava, consegue, ainda hoje, percorrê-la com amorosa intimidade. A casa não existe mais, deixou o legado de um realismo mágico... A panela de ouro? Terá sido encontrada por alguém que teve a coragem de empreender uma grande obra, cavando o solo aos pés daquela árvore, velha e misteriosa fênix? Quem sabe ...

O que se sabe é que, nas noites da Rua São Geraldo, a certa hora, o silêncio começava a tomar conta da “praça”. Na casa da avó e noutras onde havia um rádio, iam ouvir o “Direito de nascer”...

Nove anos passados desde aquele dezembro de 1949, já não eram cinco os irmãos: um bebê, um garotinho veio ao mundo, cercado dos cuidados dos pais e de cinco irmãos agora crescidos, laboriosos, somando esforços para o bem-estar da família... E outros três anos passados, mais uma criança, uma garotinha ... Sete filhos, sete bênçãos ... A Menina não precisou espreitar os sentimentos do pai. Deixavam-se ver no carinho com que afagava a mãe e a irmãzinha recém-nascida. Era como se estivessem em beatitude, passado o medo dos primeiros anos na cidade. Era a certeza de que muito tinham reunido neste celeiro de paz e de amor.

Foi na adolescência que a Menina deixou Tubarão, para viver em outras cidades. A estrela-guia? Um sonho ... Mas na Rua São Geraldo, sem que ela soubesse, um Menino estaria a esperá-la:

— Ela vai voltar, e eu vou casar com ela — dizia o Menino, e os outros achavam que era impossível. Afinal, um rapaz tão namorador ficaria esperando pela Menina que se enclausurara num sonho, longe de Tubarão?

Enganavam-se as pessoas. Um dia ela voltou, e o Menino quis encontrá-la: namoro, bailes no Clube Onze de Janeiro e no Sul Catarinense, sessão das moças no Cine São José, noivado, casamento na Igreja Matriz de São José ... A tia de Grão-Pará bordou o enxoval e trouxe, da terra natal da Menina, doçuras antigas mescladas aos sabores do bolo de noiva...

Mais um lar nascia na Rua São Geraldo... vida nova, cotidiano a dois, companheirismo numa trama de felicidade, dor e coragem ... Era um lar, um ninho seguro para os três filhos.

A Menina lembra a casa de cada uma das avós e os encantos de que se povoavam. Será avó, algum dia? Será também sua casa um universo cirandeiro, rodopiando em recordações na alma dos netos e bisnetos? Casa feita de cantinhos com ressonâncias da magia do faz-de-conta... Casa com uma árvore e, na árvore, um balanço... E a vida em lições de equilíbrio, vencendo o medo do balanço que ia muito alto... Relembra a ponte de arame embalando a infância...

A Menina, agora anciã, fica falando dessas e de outras coisas. Diz sentir tristeza ao ver o Cine São José decrépito, ultrajado pelo abandono que o cerca. E se lembra dos filmes acariciados pela voz de Elvis Presley.

Ainda mora na São Geraldo. Rua de casas quase sem jardins. Em alguns dos poucos que existem, falta aquele conviver de flores e arbustos na liberdade dos quintais das casas antigas. Agora cada planta deve obediência aos limites traçados pela geometria dos canteiros — imposições da moderna jardinagem.

Vem de longe a melodia da voz do rapaz apaixonado, em serenata para a moça bonita da São Geraldo antiga. Acordada e silenciosa, a Menina ficava ouvindo, com uma vontade danada de também abrir a janela e receber uma rosa... Calaram-se as serenatas, mas não as lembranças guardadas em retalhos de canções: Francisco Alves... Francisco Petrônio... Nelson Gonçalves...

Ao som da melodia apaixonada / Das cordas do sonoro violão

Confessa o seresteiro à sua amada / O que dentro lhe dita o coração...

Acorda minha bela namorada / A lua nos convida a passear...

A deusa da minha rua / Tem os olhos onde a lua

Costuma se embriagar...

Eu vi numa vitrine de cristal / Sobre um soberbo pedestal

Uma boneca encantadora / No bazar das ilusões, no reino das fascinações,

Num cenário multicor todo de amor

Desfeito o ninho a saudade/ Humilde que era ficou / Mostrando a felicidade

Que o destino desfolhou...

A Menina, recostada na cadeira de balanço, depois de um silêncio com ressonâncias de serestas, espraiou o olhar pela janela e disse:

— Cumprindo uma determinação do chefe da família, casaram-se, a moça bonita e o rapaz seresteiro. Mas não foram felizes. Me contaram que a noiva não provou um doce sequer da festa de casamento. Nem mesmo do bolo. Era a amargura da renúncia a um primeiro bem-querer. Era a felicidade que o destino desfolhou...

Um silêncio curto, e Menina voltou a falar:

— Faz um bom tempo que não vejo a moça bonita. A última vez foi na procissão do Encontro, na Semana Santa. Acompanhávamos Nossa Senhora das Dores, que iria encontrar Nosso Senhor dos Passos, no largo da Catedral. A moça bonita envelhecera, estava curvada carregando as cruzes de um filho vergado de culpas. Tinha um rosário nas mãos e chorava, um pranto solitário. Mater Dolorosa...

Novamente o silêncio, mais longo. A cadeira balançava, balançava... Estranhei o mutismo e aproximei-me: Menina adormecera. Que memórias estariam enredando cirandas nas estradas dos sonhos?

Eu sei de muitas outras lembranças que a Menina guarda em preciosas imagens amorosamente emolduradas pela memória. Nossas conversas duram longas horas. Mas, se a Menina adormeceu, é porque também preciso silenciar. Um dia, quem sabe, a gente volta a conversar.

Que estranho! Ao vê-la adormecida, senti vontade de acordá-la com uma seresta, aquela que nunca lhe ofereceram. Não há tempo a perder: um violão, uma rosa, uma canção tangendo as cordas da alma da Menina, com letra e música de Carlos Galhardo. No jardim, junto à janela, agora, quem vai cantar, em ressonâncias de outrora, sou eu, o Tempo. Dedilho a canção e trago uma rosa. Minha voz escorre sobre o entardecer, manancial de cores...

Beijando teus lindos cabelos / Que a neve do tempo marcou

Eu tenho nos olhos molhados /A imagem que nada mudou

Estavas vestida de noiva / Sorrindo e querendo chorar

Feliz, assim, olhando para mim /Que nunca deixei de te amar.

A Menina abre a janela. Os olhos cintilam lágrimas em torrentes de águas tão claras como as que corriam sobre o leito pedregoso do rio que um dia ela cruzou, acreditando nos sonhos da Mãe e na coragem do Pai.

Pela janela aberta, ofereci-lhe a rosa. Sorriu, jogou-me um beijo e depois, como se deslizasse, numa leveza de juventude reencontrada, foi desaparecendo no interior da casa.

Ah! só mais uma coisa: quero pedir desculpas se embaralhei os tempos verbais. Não pode ser de outro jeito, sou cirandeiro, esférico, Passado, Presente e Futuro em simultaneidade,

TEMPO.

Só, sem sobrenome.