A Teoria da Vida em Solidão
Seu professor costumava dizer que uma teoria social é como uma ferramenta: algumas são alicates, outras são martelos, e não há como fazer de um alicate um martelo(mesmo que você queira muito ou sua pesquisa dependa disso).
Mas aquele jovem estudante, recém iniciado nas ciências sociais, passou a duvidar seriamente do seu professor quando encontrou a Teoria da Vida em Solidão; ela não era uma ferramenta, era uma caixa delas.
A tudo explicava, nunca deixava de se encaixar. Todos aqueles lenços chorados, as fotos rasgadas, horas e horas de filmes melosos e catárticos, porres de fazer vomitar a última gota do orgulho próprio; tudo isso a Teoria da Vida em Solidão desmistificou.
E se a psicanálise curou os as pendengas infantis do século XX, era a Teoria da Vida em Solidão que vinha de ajuda a todos os males do nascente século XXI e suas relações afetivas fragmento-descompassadas.
Pena no Brasil ainda ser de pouca divulgação, lamentava o jovem estudante. Noutros países até políticas de habitação a teoria inspirava – algo como Meu Kitnet, Minha vida.
Pena mesmo.
Muito teria o Brasil e os brasileiros a crescer se adotassem o axioma de que estar só é estar bem, e apostassem na hipótese de que a felicidade a dois é impossível.
Preferir morar sozinho a casar, máquinas a gente; substituir conversas por leituras, azaração por meditação; trocar filhos por gato, jantar à luz de velas por delivery sozinho em frente à TV: dá-lhe Teoria da Vida em Solidão, esse canivete-suíço da teoria(e prática) social.
E com ela o jovem estudante resolveu sua vida. Com ela fez monografia. Com ela entrou no mestrado e saiu do doutorado. Com ela chegou às listas dos mais vendidos da Veja(mesmo sendo livro acadêmico). Com ela tornou-se, afinal, um intelectual midiático, com direito a casaco tweed e portentosa estante de livros como pano de fundo em toda entrevista.
Então, a essa altura, olhando para trás, o agora ex-jovem estudante, via um legado teórico só seu: também a academia brasileira se viu curvada diante da sofisticação da Vida em Solidão. Graças a ele, ser solteiro era cult também no Brasil, e só o que IBGE indicava era a solidão reinante...
Tudo corria a contento para que o ex-jovem estudante não saísse jamais do seu cálido kitnet ou abandonasse seu gato nas noites de sábado.
Mas sempre há um mas. E neste caso o mas aconteceu na noite mais fria dos últimos anos, quando a madrugada antecedeu o gelo.
Pois no frio das horas insones o ex-jovem estudante ligou o rádio. E do silêncio se fez instrumentos, e dos instrumentos melodia, e depois surgiu a voz, e da síntese inevitável fez-se a dúvida. Pois o ex-jovem estudante soube(sentindo), na hora, que a Teoria da Vida em Solidão tinha sérios problemas, e podia jurar ali mesmo, para o frio e para a música – dois culpados, duas testemunhas – que nunca vira um axioma nem uma hipótese mais furadas do que aquelas.
Que nada daquilo tinha empiria – a voz dos sujeitos perdeu-se em abstrações filosóficas fiéis aos belos sistemas lógicos, totalmente distantes da factualidade dos dados.
Que nunca fora tentada uma interpretação compreensiva da realidade – e que não contassem aquelas pesquisas quantitativas que acumulavam gráficos e porcentagens, pois colunas e números não captam profundidade alguma.
Que nunca foram consideradas variáveis cruciais – como a intersubjetividade emocional-afetiva que nunca, nem sequer em rodapé, foi citada.
Que toda análise da contradição estava negativamente viciada – e se da contradição dos sentimentos surgissem dinâmicas com finais potencialmente satisfatórios para ambas as partes envolvidas?
E que sempre, todo o sempre, havia o a priori da longa duração como critério – seriam precisos estudos Pós-Vida em Solidão para descobrir que a felicidade a dois não se mede pelo tempo cronológico?
A teoria não se sustentava, não mais.
Então o ex-jovem estudante lembrou do velho professor e das teorias-ferramentas. Deu-lhe razão tardia e agora pagava o preço por tentar usar alicate onde era preciso martelo, e martelo onde só um alicate serviria. Vivera uma vida toda construída por ferramentas trocadas - e que bugiganga saíra no final!
Agora, tanto o que fazer: retratar entrevistas, escrever artigos em revisão, lecionar novas aulas, fazer dum novo livro uma nova ruptura do seu próprio pensamento. Tanto, tanto o que corrigir...
Mas nada disso lhe pareceu tão importante quanto dar aquele telefonema que há décadas vinha sublimando.
Tirou o gato do colo e foi até o aparelho.
(Porque madrugadas frias de geada, somadas à Etta James cantando At Last - para além do comercial de margarina - provocam convulsões paradigmáticas em espíritos até então entorpecidos pelos modismos do campo acadêmico)