O Último Dia do Inverno

Abriu as cortinas da sala de estar. Manhã de inverno, frio impiedoso lá fora - e dentro de si também. A ausência do seu amor agravava as baixas temperaturas, estava congelando lentamente. Talvez por isso não conseguisse mais derramar lágrimas: provavelmente já haviam se solidificado em algum lugar. Um mês, enfim, desde a partida do seu mais verdadeiro e intenso amor. Partida esta para um destino incerto, e sem qualquer possibilidade de retorno. Foi com a eterna despedida que seu inverno começou.

Não mais sentia os raios solares ao abrir as cortinas; não mais ouvia a doce e singela orquestra ensaiada pelos pássaros todas as manhãs. Aquela casa nunca fora tão grande; o silêncio fazia eco em todos os cômodos, a cada dia mais vazios e escuros. Não tiveram filhos – não compartilhava desse desejo. Mas agora compreendia o receio do seu amor: não ter alguém para lhes fazer companhia em seus últimos dias. Teimou sempre, enfatizando que não tinha paciência para cuidar de crianças, e agora se via só, sem ter a quem deixar todo o patrimônio que construíram e as experiências que viveram. Tomou o pouco de coragem que lhe restava e rumou para o banheiro, a passos arrastados.

Olhou-se no espelho e se espantou com o que viu: um rosto desfigurado pelo tempo e pela solidão. Rugas profundas denunciavam a idade. Teve rápidas lembranças de sua juventude, agora muito distante. Recordou-se de quando se juntava ao seu amor em banhos ousados e demorados, naquele mesmo banheiro. Entretanto, não mais se reconhecia naquele corpo. Tocou o espelho, tencionando sentir a própria pele no reflexo que se apresentava e acariciar aquele rosto digno de pena. Frustrada a sua tentativa, conformou-se e seguiu para o quarto.

Contemplou a cama de casal, uma imensidão para apenas um corpo. Lembrou-se do livro preferido do seu amor, foi até o armário, abriu uma das gavetas e o retirou, muito empoeirado. Marcando uma das páginas estava a rosa que outrora lhe dera, seca como a própria pele. Mais à frente, noutra página, um papel dobrado, já amarelo: uma partitura – a “Moonlight Sonata”, de Beethoven. Era a música que seu amor costumava tocar quando precisava relaxar. Tomou para si a partitura e decidiu voltar para a sala.

Aproximou-se do piano, sentou-se, posicionou a partitura, sentiu o teclado. Suspirou profundamente e então tentou reproduzir a melodia que seu amor costumava lhes proporcionar. Outra tentativa em vão: seus dedos, agora trêmulos, não dispunham da destreza necessária. Triste, reconheceu que o melhor a fazer era voltar para a cama. Não sentia fome, não sentia dores, nada sentia. Nada além de uma saudade devoradora, cruel, que o inverno e a solidão potencializavam.

Agora na cama, olhou fixamente para o teto do quarto. Estava completamente só. Melhor assim, não notariam sua ausência. Poderia partir em busca do abraço que tanto lhe fazia falta sem causar sofrimento a outrem. Fechou as pálpebras. Depois de todos aqueles dias, foi a única vez em que uma lágrima tímida brotou de seus olhos. Repentinamente, começou a sentir o perfume do seu amor. Aquele doce perfume era inconfundível. Mesmo sem abrir os olhos, tinha certeza de que estava ali, cada vez mais perto, e não conteve o sorriso. Seu amor tinha vindo ao seu encontro. Rezou muito por isso, e finalmente poderia se reencontrar com quem mais lhe importava.

Sem qualquer receio, deixou que o perfume guiasse sua mente. Sentiu o corpo leve, cada vez mais leve... até não mais senti-lo. Partiu, enfim, sem se levantar, com uma expressão plenamente serena e um leve sorriso no rosto; porque sabia que encontraria seu amor. Não sabia como, sequer imaginava onde, mas encontraria. Neste exato momento, talvez, já estejam se abraçando bem longe dali.

Originalmente publicado no blog pessoal "Devaneios na Ponta do Lápis": http://devaneiosnapontadolapis.blogspot.com.br/