Amor de domingo

Quase duas da tarde, a lasanha ainda descendo, e ele lá, estirado no sofá; ameaçava um cochilo preguiçoso quando o estalar do fogão acendendo o trouxe de volta. Ela já preparava o chá, e na certa já tinha separado os biscoitos de melado que sobraram do natal. Todo preguiça, mas bem treinado, ele levanta do sofá e vai juntando o que lembra: protetor solar, repelente, bonés, óculos de sol... Óculos?

- Mô, cê viu meus óculos?

Ela cheira a grande sacola, do tipo retornável, vistosa em sucessivas faixas coloridas. Cheirinho azedo, não foi lavada desde a última vez. Azar. Ajeita lá dentro o pote com os biscoitos, dois panos de prato, um potinho menor com duas facas, algumas frutas e também o adoçante. Deixa um cantinho para a garrafa térmica contendo o chá. Olha indecisa para a caixa de bombom, esse agrado inesperado feito pela sogra que não sabia que os dois estavam de dieta – não sabia mesmo, aquela falsa? Olha a bendita, faz cara de indecisão. Mas aí lembra das frutas e do adoçante, do chá no lugar do refresco, da promessa de emagrecer que fizeram no ano novo, e que já está levando os biscoitos do natal; melhor deixar a caixa para algum desses dias em que a vida se mostrar azeda demais. A água ferve e nisso ela põe a erva para curtir. Grita lá em direção ao quarto.

- Tá pronto, benhê?

Dia de sol no parque tem algo de infância imemorial. E os dois se refestelam. Sentados sob a sombra das árvores, um vento suave varre o calor do verão e faz o chá fumegante parecer menos despropositado e dietético. Em público é mais gostoso se mostrar casal, e assim curtem fazer carinhos e afagos. Claro, tudo muito comedido, afinal, se é bom ser assim visto, há o bom senso – e há o tempo suficiente para que o comedimento não seja exatamente um suplício na vida do casal. Então brincam de ciúmes, porque a fulaninha do trabalho dele insiste em ficar curtindo tudo o que ele posta no Facebook, e porque o marombinha do andar debaixo quando fala com ela gesticula mais que italiano sindicalista, desfilando aqueles braços sem manga de camisa e de constituição muscular exemplar. Mas brincar de ciúmes refresca a paixão e sempre acaba em beijo dengoso.

Então lembram do passado, das histórias. Lembra disso? Foi um sarro! E lembram também do futuro imaginado, da viagem das férias e do cachorro – ou gato? - que iam arranjar, porque a experiência com peixinhos já deu o que tinha que dar, e vamos combinar, com peixe ninguém se apega nem ninguém cria responsabilidade alguma. E eles já estavam juntos há algum tempo, era hora de treinar a responsabilidade. E quando tudo isso é dito, como que faltando o que mais dizer, pousa um silêncio entrecortado só pelo mastigar seco do biscoito e pelo sorver do chá quente. Arrependida, ela vê boa hora para se desculpar por ter esquecido de pegar xícaras de verdade; era tão ruim tomar chá naquele copo-tampa da garrafa! E o silêncio volta. Uma laranja sendo descascada faz um barulho gozado, e em algum lugar do passado um deles notaria isso, comentaria, e ririam. Em algum lugar do passado. Porque agora ele vê um cidadão obeso, encharcado de suor, correndo sofregamente debaixo dum sol escaldante, e lembrando da lasanha que ela fez no almoço - como se ignorasse a promessa de regime que os dois levariam até emagrecerem mais que o Ronaldo - externa uma ranzinzice que veio ali da última semana no trabalho, difusamente misturada com detalhezinhos sempre presentes da vida a dois, e que esperava um momento de espetar o que quer que fosse.

- Ó, de lasanha em lasanha eu fico assim, e você também. Leve mais a sério nossa dieta, né?

Finalzinho de tarde, o sol indo embora leva uma multidão junto. E os dois caminham para o poente, ele com a sacola colorida em mãos agora mais fedida pelo acidental vazamento de chá. Cena bonita, talvez valesse uma foto para o Instagram. Ele dá a ideia, tentando compensar o azedume de quando falou da lasanha, mas ela diz que está com pressa para chegar em casa, e ainda tem que passar na padaria lá da esquina, que a essa hora vive apinhada de gente – e isso foi a ranzinzice lá duma outra semana de trabalho, outro quebra-cabeça de descontentamentos, também aguardando sua brecha muito humana.

No apartamento, jogam as coisas num canto da cozinha. Vai primeiro ou eu vou? Ela vai pro banho e ele se esparrama no sofá. Sente a preguiça que sentia às duas da tarde, mas agora já não é bom cochilar. Amanhã é segundona e perder o sono às custas dum cochilo não é bom. Liga a TV, troca de canal, vê os gols da rodada, assiste o depoimento molhado e orgulhoso da professora de primário do galã da novela das oito que, com cara de passado, parece não lembrar muito bem da tal professora. Chega sua vez de ir pro banho, mas antes desliga a TV , pois ficou combinado que iam tentar contar em 10% o consumo de energia, do jeitinho que o especialista em finanças domésticas do Fantástico sugeriu e garantiu ser possível.

Com a toalha enrolada na cabeça, vestindo um roupão domingueiro daqueles que visita não pode ver, ela liga a TV. Não que queira assistir. É só que o apartamento, pequeno que é, e com aquele estúpido aquário vazio sobre a mesa da sala, fica triste pra burro em silêncio. Isso justifica uns watts a mais na conta. Ela pega uns pratinhos e põe sobre a mesa de jantar. Ajeita a sacola do pão, e acha no fundo da geladeira o requeijão light e o peito de peru fatiado. Corta um tomate. Então pensa em cortar um segundo, pois assim que ele sair do banho vai fazer um sanduíche também, e certamente vai querer um tomate. Mas certamente não é certeza, e tem hora que o cansaço fala mais que a união. Ela deixa o segundo tomate de lado.

Jantados, em frente a TV, os dois assistem o domingo entrar nas derradeiras horas. Ao longe se escutam motores de carros e motos, e até eles parecem derradeiros, como se saíssem de um lugar oculto e fossem embora para não mais voltar. Nessa hora domingo é chato demais. Se aninham no sofá, mas sem colar muito porque está quente e os dois já não tem mais público. A tela traz uma sucessão de imagens, rajadas de sons diversos; as vezes os dois riem, as vezes comentam algo como se economizassem palavras ou estas tivessem sido subtraídas. Mas na maior parte do tempo ficam em silêncio, agitado só pelas embalagens dos bombons que os dois estão comendo e não lembram quem, sem justificar perante a dieta, trouxe a caixa e abriu – seria um daqueles dias de vida azeda? E mesmo a TV ligada parece, inexplicavelmente, perder o sentido. E o apartamento vai ficando triste pra burro, aos pouquinhos, como se alguma coisa entrasse pela janela da área de serviço e contaminasse todo o resto, lentamente, como um bolo assando, estufando pelo calor e pelo fermento.

Ela tem um sobressalto. tira a cabeça do ombro dele. O que foi, ele pergunta. A sacola, é melhor por de molho e amanha de manhã pendurar no varal, senão domingo que vem não dá pra aguentar o fedor. Ele puxa a cabeça dela com a mão, indicando o ombro como travesseiro. Deixa pra lá, domingo que vem é domingo que vem, quem sabe chova e a gente fique por aqui mesmo.

Por aqui mesmo, pensam os dois. Por aqui mesmo, já há algum tempo. Por aqui mesmo por muito mais tempo.

Cesar Bueno Franco
Enviado por Cesar Bueno Franco em 24/06/2013
Reeditado em 24/06/2013
Código do texto: T4356391
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.