Bodas de tinto

O sino badalava às dezoito horas, como de costume. O grave ecoava em todo o povoado e fazia vibrar as madeiras de itaúba que se prestavam como parede da igreja, uma discrepância suntuosa aos dourados e nobres templos de Roma.

Ante a toda simplicidade daquele antro de devoção, estendiam-se longos e singelos cordéis de orquídeas brancas que davam ao lugar uma aparência celestial, vista pelos duzentos e trinta e seis presentes na igreja.

Lá estavam como nobres, tais quais se encontravam os cavalheiros da corte, todos com as suas melhores roupas, algumas nunca antes vestidas. De fato, sem o perfume irradiante das flores, a naftalina seria a única variação sentida pelo olfato da congregação.

O povoado estava atento e aflito diante das badaladas que anunciavam os noivos que não chegavam. O primeiro casamento a ser oficializado pela Santa Igreja em Cuiabá não tinha os protagonistas do ritual. A falta era uma quebra em todo o clima de celebração que tomava os arredores da cidadela: seriam sete dias de festa e algazarra financiados pelos familiares da noiva.

Como num rito, numa performance coletivamente ensaiada, toda a igreja se levantou, e pôs-se em marcha para a casa da noiva. À frente iam os seus três irmãos, homens de aparência rústica, porém dotados de um olhar sensivelmente triste. Eles diferiam-se, um do outro, pela magrura, amargura e pelas barbas estranhas.

A casa ficava a oitenta metros e logo foi alcançada. O portão permanecia fechado, as luzes apagadas, e o restante do sol que se despedia ao longe fazia-os entender que não havia nenhuma alma habitando o lugar naquele exato momento.

Um por um os irmãos adentraram o casebre. A porta, que não estava trancada, e uma foto do casal ascendente, já finado, foram deixadas pra trás pelos passos vorazes dos três, que logo se encontraram ante ao último quarto, à direita, depois do banheiro. O mais velho então viu a noiva. Coberta de um cetim branco que escondia os braços, os pés e o pescoço, junto ao véu que sobre a cabeça revelava toda a pureza virginal, jazia. Antes brancos, vestido e véu, estavam agora tingidos por um tinto já morno que corria dos pulsos da cabocla, então pálida. O sangue esvaído formava de leve uma poça que tinha por limite a bota do seu familiar mais próximo.

Aqueles punhos retalhados retalharam impiedosamente os corações dos que contemplaram aquele quadro. Quadro de uma perversidade minimalista que exorcizaria os mais puros sentimentos que tais peitos poderiam portar. Enquanto o mais novo se debatia contra o armário de madeira e, o mais velho se banhava em sangue e lágrimas ao abraçar a noiva defunta, o do meio continuava parado na porta sem as expressões características que denotariam a dor em sua alma. Este foi o único a enxergar a carta sobre a mesa, ao lado da navalha vermelha que um dia fora de seu pai.

Uma carta de uma folha só, marcada por uma única lágrima no seu canto inferior esquerdo, a baixo da assinatura. Era também uma carta de uma face só, só frente, sem o verso, uma carta curta que datava de sete dias. A multidão horrorizada já adentrava o quarto quando o irmão começou a ler em voz alta:

"Minha amada, minto ao chamar-te de amada, perdoe-me. Já é nítido para mim que não a amo mais como dantes amei e não tornarei a respirar o ar da minha própria mentira. Ainda hoje vou embora, não para amar outra mulher, ou mesmo várias outras mulheres. Não irei para privar-me da vergonha de vê-la em desonra, partirei para minha solidão, para ser só, sem ti, sem ninguém, até que eu, com a morte venha ter. Seja feliz como eu não seria ao teu lado."