Passado Presente

Eu estava parado diante de uma placa com meu nome e admito que não imaginava que veria isso em vida. Uma homenagem de um dos meus alunos fez erguer o complexo arquitetônico Professor Roberto Alves. Era irônico, afinal, eu havia reprovado este tal aluno e ele nunca terminara o curso. Poucos anos depois ele entraria para a política e se tornaria deputado seguindo os passos do pai.Enquanto ele discursava em minha honra e agradecia os colegas políticos ali presentes eu pensava se havia alguém ali inteligente o suficiente para perceber o sarcasmo e a ironia das palavras dele. Enquanto eu tentava sair do meio da multidão concentrada no Hall a voz dele bradava das caixas de som chegando aos meus ouvidos. Um aplauso estrondoso se seguiu e eu disse num sussurro: "Parabéns André, você se tornou um imbecil bastante influente."Queria aproveitar ao menos um pouco daquela idiotice e me dirigi ao buffet de frios.

Uma pequena caminhada de poucos metros, mas ainda assim apta a gerar surpresas.Uma surpresa na forma da mulher mais linda que já pus os olhos, com um caminhar tão hipnotizante e suave que parecia se mover fora daquela situação tão monótona.

Fiquei tão fascinado por ela que por alguns instantes não percebi que ela vinha também em minha direção. O vestido negro se balançava como uma brisa num movimento que trazia mistério ao caminhar, mas que não era capaz de esconder as curvas de seu corpo. O decote na parte superior deixava nus apenas o ombro direito e os braços revelando a brancura da pele de quem não gosta de se expor ao sol. No ombro esquerdo havia uma rosa de seda, negra como o vestido contrastando e destacando o suave rosto.

Ela me estendeu a mão:

- Professor Roberto, faz tempo que queria lhe reencontrar.

De perto pude olhar mais atentamente seu rosto. Era de uma beleza rara, como se tivesse sido pintado por um dos mestres da renascença. Seus cabelos loiros ondulantes pareciam refletir a beleza de um anjo ou de uma deusa antiga.

- Desculpe, mas acho que não me lembro de você.- Respondi.

- Pensei que não se lembrasse. É um mal dos homens inteligentes terem má memória para certas coisas mais triviais.

Eu sorri. Ela também. Parecia haver alguma ligação entre nós. Normalmente enquanto converso com uma bela mulher costumo olhar para seus olhos, mas assim que ela sorriu fiquei encantado. A ultima vez que isso havia acontecido, foi um pouco antes da minha vida começar a mudar.

Ela me convidou a sentar e juntos conversamos durante toda a noite. Apesar de meus pedidos, ela não me disse seu nome. Misteriosa, disse que se eu não me lembrasse dela só teria a resposta depois que ela se divertisse. Falamos de nossas carreiras, de nossas famílias e de nossas ambições. Tudo sem nomes para que segundo ela, isso não me ajudasse a lembrar. Eu sabia que não devia falar tanto a alguém que não conhecia, mas ela não parecia estranha, e o que eu tinha a perder realmente. Me sentia como se a conhecesse.

Ela me perguntou se eu já havia me casado.

- Por que a pergunta? Pareço velho demais?- Retruquei.

- Não por isso. Mas eu já te conhecia, ou se esqueceu.

- Se já me conhece deve saber a resposta. Você está jogando comigo?

- É claro que estou, depois que eu me divertir um pouco te contarei quem sou. Mas gosto de ouvir histórias, mesmo que possa já saber como elas terminam. E não digo que sei.

Eu sorri, apesar da postura e da beleza de uma mulher madura, ela parecia ter alma de criança. Tudo parecia mais simples perto dela. Eu disse isso e comecei a contar a história da minha esposa:

- Seus olhos me lembram os dela. Não pela cor ou pela forma dos olhos. Mas pelo jeito forte de olhar. Me apaixonei por ela através desse olhar...

- Estou em perigo então? - Ela perguntou.

- Certamente, mas acredito que eu esteja em maior. Para a Márcia, bastava um olhar para que eu fizesse qualquer coisa que ela quisesse.

- Como você a conheceu?

- Fomos apresentados por um amigo ainda na faculdade. Não tive muito trabalho para convencê-la a me beijar pela primeira vez, afinal, éramos muito jovens e não levamos a sério o que tínhamos a princípio. Foi só depois que ela terminou comigo que eu passei a dar valor naquilo que eu tinha.

- E o que era, Roberto?

- Alguém decente que sabia valorizar a verdadeira dedicação. O amor pode até ser tratado como uma coisa juvenil, mas deve-se ser muito maduro para realmente vivenciá-lo.

Menti enquanto dizia isso. Na verdade me considerava um homem pouco apto a falar de amor, no fundo estava apenas tentando parecer um homem mais atraente através da minha sensibilidade. Agora vejo o quanto fui tolo, caindo como um adolescente dentro dos jogos de sedução de uma mulher muito mais jovem do que eu. Até hoje me pergunto o que ela teria vivido para saber conduzir tão bem um homem.

Independente da resposta que hoje eu desejo, naquela noite ela me levou a imaginar meu passado vivo em minha alma. Seu sorriso, que lembrava tanto o sorriso com o qual Márcia me presenteou quando aceitou se casar comigo. Era como ver minha esposa jovem de novo, mas com a força e imponência que só adquiriu depois de se tornar uma mulher feita.

A mulher misteriosa se levantou e seu vestido balançou magicamente de novo, enquanto um garçom passava por nós percebi que ela não hipnotizava apenas a mim. Notei novamente que estava diante de uma verdadeira deusa, mas agora minha admiração surgia de uma forma diferente dentro de mim. A chama de desejo deu lugar à uma pedra que começava a doer em meu estomago.

- Me acompanha até meu carro? - Ela me perguntou sem olhar em meus olhos, assenti que sim e me pus a andar pelo salão ao seu lado.

Estava mais próximo dela agora então podia sentir seu perfume. Um leve aroma floral mas com algum acréscimo artificial. Não parecia ser algo tão requintado.

Comecei a pensar em como aquela noite terminaria, e admito que meus pensamentos foram no mínimo carnais. O silêncio imperou por alguns instantes até que ela perguntou, quebrando minha linha imaginária:

- Teve filhos com a Márcia?

- Ah, Não. A Márcia não pode ter filhos. Infelizmente, devido a uma doença quando tinha 22 anos, ela teve que retirar o útero.

- Entendo. Mas depois que se separou dela? Nunca...?

- Tive algumas mulheres sim, mas não para serem mães. Isso é importante demais.

- Seu tom de voz mudou. - Ela disse de forma concisa.

- Como assim?- Perguntei.

- Não parece mais tentar me convencer do que está falando.

Admito que ela me atingiu com esta frase, nunca pensei que uma mulher mais jovem que eu estivesse tão a minha frente no jogo da conquista. Comecei a pensar que ela estivesse jogando comigo. Ela continuou:

- Então, imagino que preze por boas companhias. Tem família por perto?

- Não, uma pena que não. Minha família vive em Manaus, bem longe para que eu possa visitá-los com frequência. A família de Márcia que mora aqui por perto. Sempre convivi com eles.

Saímos do salão e caminhamos pelo jardim, queria mudar de assunto, perguntar o que ela iria fazer depois dalí. Mas sentia um incomodo no estomago, ela continuou a me interrogar.

- E como é a família dela?

- Bom, os pais sempre foram ótimos. Antes do pai dela falecer eu sempre ia na casa dele. Mesmo depois da separação. Ela tinha um primo que vivia com eles e que também já faleceu em um acidente de moto.

- Mais alguém? Não parece ser uma família grande.

- Ela tinha uma irmã. Mas nunca a vi, a não ser em uma foto dela ao lado da Márcia quando eram crianças. Ela foi para a França antes que eu conhecesse minha ex-esposa e as fotos dela foram perdidas em um incêndio poucos dias antes de eu pedi-la em namoro.

- Que história interessante, se não fosse seu tom sério pensaria que está brincando comigo. - Ela disse.

Chegamos ao carro, ela pegou as chaves e as levou a tranca da porta. Ao tocar nela sentiu o frio da noite que estava impregnado no carro. Rapidamente ela levou as mãos próximas a boca e com um sopro suave aqueceu os dedos. Minha ex-esposa fazia o mesmo.

A sensação dentro de mim cresceu de súbito, se tornando exatamente a sensação de levar um soco na barriga. Me lembrei de vários momentos que há muito havia trancado no fundo de minha mente.

Olhei para a frente, a porta do carro estava aberta e a dama parada olhando para mim.

- Gostaria de ir comigo? - Ela perguntou.

- Não acho apropriado. - Respondi.

Ela não recusou, nem se expressou. Apenas sorriu, e foi embora.

Hoje, sinto-me diferente. Depois de abrir um envelope que chegou pelo correio e receber aquela mesma foto onde estão minha ex-esposa e de sua irmã. Nunca havia dado atenção àquela foto, senão perceberia que as irmãs tinham o mesmo sorriso. No verso havia uma frase interessante, ela me dizia que eu a tinha convencido e que ela estava errada. Que sempre havia uma esperança e que a irmã dela nunca soube o que queria de fato. Eu sorri depois de ler, pensei em pegar o telefone mas já estava atrasado para o trabalho.

Quando contei aos meus alunos sobre o ocorrido, eles me disseram que em tempos de internet e computadores nos celulares isso nunca aconteceria. Eu respondi que isso tiraria toda a graça de um bom conto. No fundo da sala um garoto virou os olhos e voltou a ouvir música em seu fone, não tenho dúvidas de que ele se tornará alguém muito influente.