TRAMA DO DESTINO

É uma sexta-feira que está findando. A tarde sonolenta vai adormecendo. Uma suave penumbra desce, envolvendo a cidade que nela se aconchega. Chego à janela e minha visão se estende pela avenida onde trafegam, já de faróis acesos, carros, ônibus, motos e outros tipos de transporte. Dentro deles, ou neles, estão pessoas que vão e vêm, talvez as mesmas de todos os dias, a esta mesma hora, algumas conduzindo e outras, entediadas, se deixando conduzir. De onde estou não dá para ver seus rostos, mas, a essa hora, é provável que a maioria esteja com a fisionomia carregada, seja pelo cansaço, seja pelas preocupações ou pelas frustrações de uma vida que considera vazia e complicada, pela azáfama cotidiana, que corrói suas fantasias e, até, os seus destinos. Há também aqueles que já se conformaram com o irremediável e – tanto se lhes dá quanto se lhes deu – deixaram-se levar, indiferentes a um destino que não lhes foi propício.

Observo as silhuetas dos vários edifícios que se erguem em frente, já alguns acendendo suas luzes, e, em seguida, contemplo o céu, onde algumas nuvens se dispersam levadas por um vento invisível. A estrela vespertina, a pequena Vênus, já há muito tempo desvirginada pela Ciência, já adiantada em sua trajetória, é a que mais se destaca no firmamento; ressurgirá na manhã do dia seguinte, como luminosa Estrela d’Alva.

Normalmente, à chegada da noite, o comércio, as repartições públicas, bancos, escritórios, oficinas e construtoras vão encerrando as atividades do dia e fechando suas portas, exceto os shoppings, bares e restaurantes. Fregueses, funcionários, donos de lojas, trabalhadores, todos, extenuados da faina do dia calorento, procuram, em bandos, seus meios de transporte, a fim de retornarem aos respectivos lares para o repouso noturno. Uns buscam seus apartamentos, outros suas casas, a maioria talvez seus casebres periféricos. É a hora do corre-corre, dos congestionamentos, do inevitável e estressante rush. O desejo maior é chegar em casa para repousarem os corpos cansados e aliviarem a mente das preocupações.

Acontece, porém, que hoje, como já disse, é uma sexta-feira, quando, para muitos, se encerra a semana. Sendo assim, em vez da casa, há os que procuram os bares para uma cervejinha com os amigos ou os que combinaram encontros com suas namoradas ou amantes, a fim de curtirem o fim de semana.

Mas, Joaquim mora só, num pequeno quarto de uma pensão a pouca distância do centro. É um bancário ainda em início de carreira, que veio do Norte para Mossoró. Jovem ainda, vinte anos, sente falta da família, dos amigos, dos costumes, do sossego de sua cidade, sobretudo da namorada, Zélia, dezoito anos, pele de azeitona, cabelos negros, doces olhos verdes que escondem um temperamento um tanto forte, uma paixão que o domina e absorve seu pensamento, ausência que lhe provoca no peito muita saudade.

Trocam telefonemas todos os dias, não lhe importando em quanto vai dar a conta. Sempre, após o jantar, vai ao saguão da hospedaria assistir ao noticiário na TV, após o qual se recolhe ao seu quarto para ler um pouco. Sua leitura é muito selecionada. Costuma ler a Bíblia, alguns filósofos ou bons romances. É cristão, mas não frequenta nenhuma igreja. Dado às reflexões sobre a vida, sentia falta de alguém com quem pudesse conversar. Certa vez, deparou-se, numa festa de batizado do filho de um colega, com um padre a quem foi apresentado. Conversaram um pouco e gostou do diálogo. Perguntou-lhe, então, se poderia procurá-lo outras vezes para dialogarem. O padre concordou de bom grado e combinaram encontrar-se em sua casa em dias que, depois, acertariam por telefone.

Mas, naquela sexta feira, estava entediado, sem ter o que fazer. Ficar só, no quarto da pensão, sair por aí ou ir a um cinema? Nenhuma dessas alternativas lhe apetecera naquela noite. Ainda não pudera comprar uma televisão, por isso, após o banho, vai ao refeitório para o jantar habitual e demora-se esperando o noticiário da TV.

Naquela noite resolve sentar-se um pouco na calçada para ver o movimento da rua, o que raramente faz. Já passando das oito da noite, é menor o trânsito de veículos e os transeuntes são poucos. Preparava-se já para retornar ao seu quarto quando um carro passa, mas, logo adiante, pára, dá marcha à ré até em frente à pensão, e Daniel, colega de banco, desce e o chama para dar uma volta. Não tendo mesmo o que fazer e sendo um fim de semana, aceitou o convite. A princípio, andaram sem rumo, apenas conversando. A certa altura, viram um restaurante com vários casais nas mesas e um conjunto musical animando o ambiente. Daniel indagou se não gostaria de descer e tomar uma cervejinha. Não tinha costume, mas naquela noite topou.

Ocuparam uma mesa e pediram uma cerveja, que sorviam atentos ao som e ao vozerio dos presentes. A certa altura, chegam duas garotas, amigas de Daniel, que as convidou para sentar. Tomam, também, uma cerveja. Joaquim as observa, chamando-lhe a atenção a voz de Tânia, que lembra a de Zélia. Não só a voz; também o cabelo, os olhos, o formato sensual dos lábios.

Isso foi motivo para que, aumentando a saudade de Zélia, decidisse mergulhá-la na bebida. Desabituado a isso, tornou-se alegre e loquaz e quis saber mais sobre Tânia: se estudava, quais os seus gostos, onde morava e foi-se deixando impressionar pelo seu jeito meigo, a fala mansa e envolvente, sobretudo pela coincidência de predileções e sua inteligência. Já passava da meia noite quando combinaram levantar-se. Joaquim, sem saber por que, sentou no banco de trás com Tânia, passando o braço em torno do seu pescoço, gesto que ela aceitou com prazer e correspondeu achegando-se mais a ele. Não se disseram nada: olharam-se e seus rostos foram-se aproximando, ele sentindo o perfume agradável que emanava do seu corpo. Aconteceu, então, um beijo curto e carinhoso. Então o instinto pediu um outro, mais prolongado. Teria sido esse imprevisto encontro uma cilada do destino?

Acordou no outro dia ainda com uma certa ressaca, mas conseguiu reconstituir todos os acontecimentos da noite anterior. Então se perguntou: meu Deus, o que foi que houve? E agora, o que fazer? Pensar que havia combinado novo encontro com Tânia, de cuja companhia realmente gostara, preocupava-o. O que fazer, então? Contar-lhe a verdade sobre seu compromisso, quase noivado? Estava num dilema, pois amava Zélia e seu projeto era se casarem dentro de um ano.

Mesmo assim, não resistiu à vontade do novo encontro, que aconteceu no final de semana seguinte. Até lá, falaram-se algumas vezes pelo telefone. Desta vez, Joaquim preferira outro local, só os dois. Quando Tânia chegou, pareceu-lhe ainda mais bonita. Mas, esse seria o momento decisivo. Em sua mente se alternavam as duas figuras: Zélia e Tânia. O que fazer, já que gostava de Zélia, embora, às vezes, tivessem algumas brigas causadas pelo ciúme dela? Numa atitude digna, resolveu contar tudo a Tânia. Esta o ouviu calada e, durante toda a história, não esboçou nenhuma reação. Fez-se, então, um longo silêncio. Ao final, ela lhe disse:

- Joaquim, gostei muito de você. Mesmo nos poucos contatos que tivemos, observei em você as qualidades de um rapaz que seria o meu ideal. E o que acaba de me relatar revela o seu caráter. Resta-me perguntar: - por que o destino nos pôs frente a frente, se você já ama outra pessoa? Considero que ele me pregou uma cilada e, de certo modo, a você também. Não vou fazer drama, que não é do meu feitio. Só lhe digo que foi muito bom conhecê-lo e lhe pergunto: você acredita em amor à primeira vista?

Dos seus olhos deslizavam duas lágrimas. Joaquim ficou atônito com a reação de Tânia. Estava pasmo com a serenidade com que se comportara. E isso transformou, de repente, a atitude que pretendia tomar naquela ocasião. Seu pensamento retornou a Zélia. Reviu seus olhos tranquilos, mas, nos muitos momentos em que estiveram juntos antes de sua vinda, sabia que ela seria incapaz de reagir tão serenamente como Tânia o fizera.

Resolveu, então, conversar com o padre que se tornara seu amigo. Contou-lhe tudo e lhe pediu um conselho. O padre ficou num dilema. Pensou bem e foi franco na resposta: orasse muito e pedisse a Deus que o inspirasse a tomar uma decisão que o tornasse feliz.

Pensando nos conselhos do padre, foi dormir e, no outro dia, decidiu confessar a Tânia que estava surpreso e emocionado com a sua sensatez. Que sua reação calara fundo em seu coração. Não iria tomar nenhuma atitude naquele momento. Gostara muito dela e lhe pedia mais um tempo para uma decisão; ela respondeu que esperaria o tempo de que ele precisasse, na esperança de que ela lhe seria favorável.

Joaquim deixou Tânia em casa e retornou ao hotel caminhando. Embora já fosse tarde e as ruas estivessem escuras e quase desertas, preferiu assim. Andava lentamente, as pernas lhe pesavam como chumbo. Em que situação se metera apenas porque aceitara o convite do amigo Daniel, naquela sexta-feira, e que deixava, agora, sua mente em ebulição. Como explicar, como tentar justificar a Zélia a decisão que acabara de tomar? Não poderia ser pelo telefone, nem se atreveria a ir lá pessoalmente. A única solução era escrever-lhe. Passou a noite um tanto perturbado, pensando na carta que iria escrever a fim de resolver a situação. Atribuía ao destino o que acontecera, pois todos os lances pareciam ter tido uma força a dominá-lo.

Ficou dias ansioso, aguardando a resposta. Uma noite, o telefone toca. Era Zélia. Disse-lhe que não aceitaria a decisão impensada que tomara. Como poderia um relacionamento de mais de um ano, tantas juras de amor, toda a fidelidade que lhe dedicara, porque o amava, terminar assim, por uma paixão inconsequente? Dava-lhe um tempo para pensar melhor e continuaria aguardando sua resposta.

Joaquim ouviu tudo quase sem dizer nada, mas prometeu ligar-lhe novamente. Ao fim da conversa, ouviu dela apenas um seco “adeus”, que o assustou, mas deixou nele uma sensação como que de alívio. Pensou, então, consigo: está tudo decidido. E foi dormir tranquilo e feliz.

Obery Rodrigues
Enviado por Obery Rodrigues em 28/09/2012
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