O voo de Caroline Casulo
O voo de Caroline Casulo
Onde há flores com certeza encontraremos várias espécies de borboletas, que batendo suas asas coloridas e lindas nos olhos do poeta se transformam em um jardim suspenso no ar, tal qual fossem flores voando para adoçar o olhar do mundo.
O mundo oferece uma enormidade de maneiras de encontrarmos a felicidade e mesmo parecendo impossível Caroline conseguiu encontrá-la.
Vamos tentar entender o que aconteceu com Caroline. Para isso teremos que penetrar profundamente na história, até chegarmos a um pequeno sítio com uma casinha humilde e simples, mas muito bem decorada por estar rodeada com uma extensa plantação de flores e é entre essas flores que vive correndo e brincando três meninas felizes.
Como nem tudo é o que parece. Se prestarmos bem atenção na brincadeira, veremos que apenas duas meninas correm. A outra apenas corre no pensar por sofrer sequelas de uma paralisia violenta que levou grande parte dos movimentos de suas pernas, mesmo com essa dificuldade ela ainda consegue caminhar devagar e se juntar ao carinho das irmãs que dedicam uma atenção especial constante a ela por ser a mais nova.
Cuidar do extenso jardim de flores exige muita atenção e força de vontade, tanto que as meninas dedicam uma grande parte do dia trabalhando nos canteiros. Julia, a irmã mais velha manuseia a terra e a poda das plantas, enquanto Mariah rega as flores mantendo-as hidratadas e belas. Com tanto cuidado e carinho das meninas o perfume floral é levado pelo vento atraindo uma infinidade de espécies de pássaros e insetos.
Não pensem que Caroline está fora da árdua tarefa de cuidar do jardim. Se nos aproximarmos delas veremos a pequena menina fuçando na terra e ajudando Julia na plantação de flores. Junto com o dia o trabalho também termina e a magia brilha naquele local com a felicidade das meninas, tanto que até Caroline caminha entre as flores apoiada aos ombros das irmãs que arriscam uma pequena corrida com ela. Risos altos e gargalhadas de satisfação total do amor das irmãs são lançados às flores e no grande jardim.
A paixão tem suas fórmulas secretas, às quais não conseguimos entender, apenas somos vitimas diretas de sua poção, assim, mesmo as meninas vivendo todo tempo juntas e compartilhando o mesmo ambiente, ainda conseguem se apaixonar por coisas diferentes. Preste atenção em Julia, a irmã mais velha, também a mais apaixonada ama de loucura as flores vermelhas, nem pensem que ela despreza as outras flores, basta conferir o colorido diversificado do imenso jardim.
Mariah é apaixonada pela diversidade de cores, de plantas e de flores, tanto as cultivadas, quanto as silvestres, aquelas que a natureza cultiva com suas próprias mãos e é essa paixão que faz dela uma amante de arranjos que decoram a pequena casa. São arranjos de flores cultivadas e silvestres contemplando suas belezas e perfumes, que dão uma harmonia especial nas mãos da bela menina de cabelos longos e olhos castanhos.
Vamos deixar a paixão de Caroline para depois!
Para melhor compreender como elas chegaram a esse ponto de entender tanto de flores, temos que sintonizar o tempo um pouco mais ao passado e dar uma pequena pincelada em toda essa arte de viver.
Os pais das meninas cultivavam e vendiam diversas espécies de flores, com isso, desde garotinhas, elas já viviam sujas ajudando a cultivar e cuidar dos canteiros. Menos Caroline, que só veio a atuar nessa arte muito tempo depois e para chegar a tal ponto, ela teve que impor uma coragem impressionante na superação dos movimentos deficientes das suas pernas, que não conseguem acompanhar os desejos da alma.
Realmente o passado lhes ensinou muitas coisas, entre elas que tanto pode dar como tirar, já que um surto de uma doença desconhecida passou rapidamente por ali e levou seus pais embora deixando para elas apenas a experiência de tudo o que aprenderam com eles.
Logo após a fatalidade familiar, Julia assumiu o comércio das flores e hoje além delas também negocia os arranjos atraentes que Mariah faz com tanto carinho.
A vida não é só trabalho e uma das diversões preferida das meninas é pintar quadros, mas nem todos levam muito jeito para esse tipo de arte, ainda mais sem nenhuma instrução, mesmo assim Julia compra uma variedade enorme de tintas e é assim que passam horas se divertindo.
Chegamos à paixão de Caroline!
Enquanto as irmãs rabiscavam uma quantidade enorme de telas sem a paciência desejada pela arte, Caroline passava horas em um pequeno detalhe, tanto que até o momento havia pintado apenas dez quadros. Um mais lindo e mais perfeito que o outro se tornando um orgulho para as meninas, que os mantinham expostos na parede.
Toda vez que Caroline se preparava para começar uma nova pintura falava:
- Vou pintar uma borboleta!
Mariah logo retrucava
- Borboleta de novo. Você só sabe pintar borboletas, qualquer dia vai acabar voando! Mas tudo terminava com gargalhadas.
Há dias Caroline focava toda sua atenção na pintura de uma grande mariposa preta que estava pousada na parede perto de um velho lampião. A insistência da menina levou dias até chegar ao foco da luz perfeita, tanto que parecia iluminar a tela.
As irmãs ficaram admiradas com tanta perfeição, pois parecia que estavam vendo a cena na tela, porém com um leve toque de envelhecimento, depois penduraram o quadro no mesmo lugar onde a mariposa pousara.
O destino coloca um ponto de partida para tudo e é só detalhar com atenção que chegaremos ao ponto inicial de cada detalhe da nossa vida.
Numa manhã chuvosa e fria Julia deixou suas irmãs dormindo e rotineiramente saiu para entregar uma encomenda de flores no armazém do senhor Leal. Um armazém situado numa área estratégica de passagem de turistas e muitos conhecedores de arte.
Naquele dia chuvoso, Julia entrou no armazém e entre tantos objetos viu um quadro exposto para venda. Logo percebeu que a pintura era muito inferior às feitas pela sua irmã, tanto que percebeu muita pobreza nos detalhes da pintura, então aproveitou a oportunidade e perguntou ao Sr Leal:
- O Sr está vendendo quadros?
- Um cliente deixou exposto aqui para venda.
- Eu posso trazer um quadro para expor também?
- Pode! Mas quero cinquenta por cento do valor como comissão da venda.
- Eu vou conversar com minhas irmãs e se elas estiverem de acordo, eu trago uma pintura amanhã.
Julia voltou para casa ansiosa para contar a novidade às irmãs e saber qual seria a reação delas quanto a se desfazer das telas, mesmo porque nem tinha ideia de qual seria o valor que receberiam por cada pintura, além de que as telas eram de Caroline e só ela poderia dar a decisão final, então decidira que seja qual for a decisão da irmã, não iria retrucar.
O dia se mantinha horrível e frio com uma chuva fina e continua, sem as mínimas condições de trabalhar no jardim, com isso as meninas permaneceram num longo sono preguiçoso.
Elas logo perceberam que misturado ao som da chuva estava barulho da irmã chegando e levantaram rapidamente para saber sobre as novidades da pequena cidade, então Julia falou:
- Eu trouxe leite e chocolate. Vamos tomar um chocolate quente que eu preciso conversar com vocês!
As três meninas caminharam para a cozinha e enquanto esquentava o leite, as ideias também começaram a aquecer.
- Hoje, depois que entreguei a encomenda de flores e arranjos no armazém do Sr Leal, ele fez um novo pedido. Agora ele quer uma grande quantidade de arranjos para decorar a cerimônia de um casamento e para cumprir um prazo tão curto de entrega das mercadorias, teremos que ajudar a Maria na montagem dos arranjos, dessa maneira ela pode se dedicar exclusivamente com aos detalhes e enfeites dos ornamentos. Mas não é só isso que eu quero conversar com vocês! Tem mais uma coisa.
- Quê coisa? Perguntou Mariah muito curiosa.
- Vocês sabem que a loja do Sr Leal trabalha com uma enorme diversidade de mercadorias e a maioria delas são produtos de artesãos da região. Mesmo com tanta mercadoria diferente, eu nunca havia visto um quadro exposto, porém hoje tinha um, então perguntei diretamente ao Sr Leal se havia alguma possibilidade de também colocarmos uma de nossas pinturas exposta para venda. Nossas não! As pinturas que estão enfeitando as paredes da casa são de Caroline e só ela pode decidir o que fazer. Você decide Caroline!
- As pinturas não são minhas! Tudo que existe aqui é nosso! Não quero nada só para mim! Temos que decidir juntas e o que a maioria decidir está decidido.
- Então vamos levar apenas um quadro como experiência e ver o que acontece, já que nós nem sabemos se alguém irá se interessar pela pintura, muito menos quanto cobrar por ela.
Julia olhou para os quadros expostos na parede e perguntou:
- Qual deles eu devo levar? Mesmo sem saber já estou com saudade! Isso é você que decide Caroline! Qual quadro eu levo amanhã?
- Leva a mariposa.
- Então escreve “A mariposa” antes de sua assinatura.
- Vou escrever hoje, assim você leva amanhã.
- Mas, quanto peço pelo quadro?
- Você decide na hora.
Caroline passou horas detalhando um tom profundo na tela. Como se a palavra mariposa estivesse fundida a fogo na parede.
A chuva fina e o vento gelado acusavam uma queda sensível de temperatura, que desenhava um dia de acomodação no aconchego gostoso da cama e foi direto para lá que elas correram se acomodando bem juntinhas, aquecendo uma à outra, até serem devoradas pelo sono.
Caroline dormia deitada entre as irmãs e aquele calor de amor e afeto em um sono profundo a lançou para longe, em um sonho predestinado, no qual ela era uma grande ave mergulhando para fora do ninho em um voo mágico. Planada em pleno voo, levava as duas irmãs em suas garras. O voo era muito alto e mesmo com a cabeça entre as nuvens, as mantinham sempre ao alcance dos seus olhos.
A pequena casa se tornara um aconchegante ninho de amor para as garotas, que ali trabalhavam, se protegiam e eram felizes. A luz entre as frestas da janela sinalizavam que o dia chegou e daquele dia em diante, como num toque mágico da vida tudo naquela casa iria mudar.
Como era de costume, Julia acordou bem mais cedo que as irmãs. Pegou o quadro da mariposa e saiu rumo ao armazém do Sr Leal. A garota caminhava com seu vestido amarelo rodado balançando a cada passada, enquanto seus cabelos longos se agitavam misturados a um pensar confuso, torturados pelo peso da indecisão da consciência que não dava paz, pois toda aquela situação parecia pincelar sua vida em um ato que jamais seria capaz de consertar.
Aquela manhã gelada transformava o caminho numa trilha quase deserta, já que à sua frente caminhava com dificuldades um homem idoso com uma longa barba branca. Ao se aproximar, Julia logo se lembrou da deficiência da irmã e perguntou ao homem:
- O Senhor precisa de ajuda para caminhar?
- Um pouco de companhia para conversar seria muito bom, já que esse caminho é muito solitário e acaba torturando nossos pensamentos e tornando os passos cada vez mais pesados. Acho que conheço você do passado!
- O senhor deve estar enganado ou me confundindo com outra pessoa.
- Você deve ser a filha do finado Casulo!
- O senhor conheceu o meu pai?
- Eu trabalhei para ele quando você ainda era uma menininha e vejo que se tornou uma linda mulher. Meu nome é Tobias.
- Agora estou lembrando vagamente do senhor e se não me falha a memória, naquela época correu um boato na cidade de que o senhor teria morrido.
- Besteira! As pessoas falam demais.
- Realmente deve ser! Já que o senhor está aqui.
- O que você está indo fazer na cidade? Só de olhar percebo que está preocupada e insegura.
- Estou levando uma pintura da minha irmã para vender, mas não tenho certeza se isso é o melhor a fazer.
- Sua irmã confia em você?
- Sim!
- Então é o melhor para as duas. Não fique se remoendo em dúvidas e faça o que é certo. Agora me ajude a sentar nessa pedra para descansar e pode seguir em frente.
- Quer que eu espere o senhor?
- Não! Pode ir.
- Fique com deus!
- Obrigado.
Julia caminhou alguns passos e ao olhar para trás, o homem havia desaparecido. Repentinamente um calafrio fez seu corpo tremer e sua pele arrepiar, mas todas suas dúvidas pareciam ter sumido instantaneamente. Agora ela se tornara decidida e muito corajosa.
Incrível como a vida é capaz de transformar o ser humano e fazer dele apenas uma parte integrante de uma pintura natural pincelada pelas mãos minuciosas do destino.
Julia chegou à loja e ao entrar colocou o quadro da mariposa junto ao outro que já se encontrava exposto. Em seguida caminhou até o Sr Leal e falou:
- Eu trouxe o quadro que prometi e coloquei ao lado daquele que está na vitrine.
Olharam para a vitrine e já havia um homem muito bem vestido usando óculos escuros apreciando a arte da pintura. O homem logo tirou os óculos escuros e se aproximou bem pertinho da pintura, como se estivesse procurando algum defeito, até que pegou a obra de arte na mão e se aproximou perguntando:
- Quem é Caroline Casulo?
O Sr Leal tomou a frente e respondeu:
- É uma cliente que deixou esse quadro para vender. Ela nem me falou o preço que quer pela obra!
- Estou interessado nessa pintura e quero comprá-la. Como podemos estabelecer o preço?
- O Sr faz a proposta e se o valor for interessante, eu vendo.
- A decisão tem de ser imediata, pois viajo esta tarde para Paris e se eu fizer a aquisição desta obra vou levá-la comigo para uma exposição.
- Então arrisca uma oferta por ela, se for convincente fazemos o negócio.
- Eu ofereço quinhentos dólares pelo quadro!
O Sr Leal olhou para Julia esperando alguma reação positiva e ela concordou movimentando a cabeça.
- Negócio fechado! A pintura é sua! Eu vou emitir uma nota fiscal e embrulhar o quadro.
- Não! Eu não quero que toque na pintura. Ela é uma perfeição nos detalhes e com o passar do tempo ficará cada vez mais perfeita. Eu nunca vi uma iluminação em pincel tão convincente. Viajo hoje para Paris e vou apresentá-lo em um dos mais importantes museus de artes, mas volto no fim de semana e faço questão de conhecer essa pintora. Fique com o meu cartão e me telefone imediatamente se ela trouxer outra pintura. Se isso acontecer guarde a pintura com todo cuidado e evite tocar nela, pois compro todas dela.
O homem pegou a pintura com um cuidado impressionante, colocou no carro e foi embora. Sr Leal escondeu o cartão para Julia não ver o nome e o número do telefone do comprador e falou:
Vamos dividir o dinheiro, mas preciso tirar uma porcentagem para cobrir os gastos com impostos. Ele fez umas contas confusas e deu apenas duzentos dólares para Julia. Depois falou:
- Amanhã você me trás os outros quadros que sua irmã pintou. Lembre-se! Antes de fazer qualquer coisa. Primeiro me trás os quadros.
Julia não gostou daquele interesse exagerado do dono da loja pelos quadros da irmã, mesmo porque precisava consultar as irmãs antes de tomar a decisão, então resolveu voltar para casa. Antes de sair perguntou ao Sr Leal:
- O Senhor conhece um homem velho chamado Tobias?
- O único Tobias que conheci era um velho benzedor de barba branca que curava as pessoas e que um dia foi encontrado morto junto a uma pedra preta no caminho de sua casa. Por que você está perguntando isso?
- Não é nada! Apenas curiosidade.
Naquele dia Julia saiu do armazém com a sensação de ter sido enganada pelo Sr leal e definitivamente decidira que não iria vender mais nenhuma das pinturas da irmã. Ela guardou o dinheiro no bolso e voltou caminhando tensa entre a curiosidade e o medo.
Logo avistou a pedra preta, a mesma em que o velho sentou para descansar e lá parou fazendo uma silenciosa oração em conforto daquela alma, depois continuou a caminhada para casa.
Julia chegou a casa aparentando muito cansaço. Onde estaria aquela felicidade cotidiana estampada que ela sempre trás para casa? Preocupada com a irmã Mariah perguntou:
- O que aconteceu? Você parece preocupada.
- Hoje tudo aconteceu muito rápido, tão rápido que eu ainda estou confusa nas decisões que tomei e isso me deixou com uma ligeira sensação de que fui enganada.
- Aconteceram duas coisas, mas primeiro vamos conversar sobre o quadro da mariposa.
- Conta sobre o quadro, mas também quero saber o que mais aconteceu.
- Parece até inacreditável! Foi eu colocar o quadro e logo apareceu um comprador. Ele parecia entender muito de arte e elogiou cada traço da pintura. Além de comprar o quadro, ainda falou que voltará no final de semana para conhecer Caroline. Porém um detalhe me deixou muito desconfiada, pois o homem deu um cartão com seu nome e telefone, mas o Sr Leal escondeu de mim e depois insistiu para que eu levasse os outros quadros de Caroline para ele vender amanhã.
- Por quanto foi vendida a pintura da mariposa?
- Vocês não vão acreditar! Foi vendida por quinhentos dólares.
As meninas gritaram de felicidades e surpresa, mas Julia continuou falando:
- Outra coisa também me deixou muito chateada. O Sr Leal fez uma mistura de contas dizendo que tinha que pagar impostos e me deu apenas duzentos dólares. Eu não gostei do que ele fez e decidi que não venderei mais nenhuma pintura para ele, prefiro tê-las aqui pertinho de nós, tanto que já estou com saudades da mariposa. Tome! O dinheiro é seu Caroline!
Julia quis dar o dinheiro para Caroline, mas ela se negou a pegar e falou:
- O dinheiro é nosso! Tudo aqui é nosso. Todas essas pinturas são nossas e se você acha que não devemos vendê-las, então não venderemos. Vamos sair e comprar roupas com esse dinheiro. Faz de conta que é um presente meu para nós.
As duas irmãs agarraram Julia com tanto amor e carinho, que aquele calor humano penetrou no coração dela como uma poção mágica e logo ela se recompôs daquele desgaste. Com lágrimas nos olhos ela sorriu escutando Mariah perguntar:
- O que mais aconteceu? Você falou que eram duas coisas! Não só estou curiosa, como também estou preocupada.
- Nem sei se devo contar isso para vocês! Pode ser apenas uma ilusão da minha cabeça.
- Agora não tem mais jeito! Não podemos viver com essa dúvida.
- Primeiro preciso saber se vocês acreditam em fantasmas, melhor dizendo em espíritos? Caroline falou:
- Você esta me deixando com medo.
- Por isso mesmo que eu não queria contar!
- Se você tem medo vai para o quarto Caroline, assim ela conta só para mim.
- Não! Eu também quero saber o que aconteceu.
- Vocês querem saber, então vou contar! Eu caminhava pela pequena trilha de terra e logo à minha frente seguia lentamente um homem velho apoiado a um pedaço de madeira. Vendo que ele tinha muita dificuldade para caminhar, lhe ofereci ajuda, porém ele falou que precisava apenas de uma companhia para conversar, então diminui o ritmo das passadas e caminhei ao lado dele, atenta ao que ele tinha para me falar. A voz do homem era muito baixa, parecia estar muito distante daquele lugar, mesmo assim escutei com atenção tudo o que ele falava. Ele falou que me conheceu em um passado distante, mas eu não iria me lembrar, pois naquela época ainda era criança. Falou também que conheceu o papai. Incrível! Mas de uma maneira inexplicável ele percebeu a minha preocupação com a pintura de Caroline e em poucas palavras me tranquilizou. Depois que conversei com ele, repentinamente tudo parecia resolvido e as dúvidas desapareceram como fumaça levada pelo vento. Conversamos até chegar a uma grande pedra preta, onde ele sentou para descansar dizendo que eu deveria continuar. Depois de algumas passadas olhei para trás e o homem não estava mais lá.
- Você esta me deixando com medo.
- Eu falei para você ir para o quarto!
- Ele também falou que se chamava Tobias. Depois na loja, Sr leal me falou que o velho Tobias era um benzedor que um dia fora encontrado morto ao lado daquela pedra preta.
- Chega de falar dessas coisas Julia! Vamos cuidar do jardim que as flores me deixam feliz.
Julia se surpreendeu com a diferença de atitude das irmãs, pois Mariah se mantinha atenta ao assunto, enquanto Caroline mesmo com toda dificuldade pegou uma pá de jardinagem e seguiu silenciosa para os canteiros.
- Vou com ela! Também preciso trabalhar com as flores para descansar de todo esse estresse.
Como era de costume Julia levou um banquinho para Caroline sentar quando ficasse cansada. Ao se aproximar dos canteiros percebeu que Caroline estava chorando.
- Por que você esta chorando Caroline?
- Fiquei com medo de te perder.
- Não seja boba! E para de chorar que agora é hora de se sujar na terra.
As meninas só voltaram dos canteiros à noite com uma grande quantidade de flores para montar os arranjos que já estavam encomendados.
Enquanto Julia preparava uma deliciosa refeição, as irmãs trabalhavam na confecção dos arranjos. A comida carinhosa parecia possuir um propulsor energético que fez o trabalho avançar pela noite até as primeiras horas do amanhecer e ao clarear do dia quase toda a encomenda estava pronta. Esgotadas pelo cansaço do trabalho as meninas atravessaram toda a manhã dormindo.
No contrafluxo de todo aquele trabalho das meninas, estava o Sr leal esperando ansioso que Julia trouxesse mais pinturas de Caroline para vender. Desta vez ele seria muito mais cauteloso e esperto, pois faria toda a transação distante delas, fazendo assim um papel de atravessador no negócio, mesmo porque apenas ele tinha acesso ao comprador. Julia não apareceu e a espera deixou o homem muito impaciente e nervoso.
Ao acordarem, as meninas decidiram terminar os arranjos e pedir para o vizinho que tem um carro velho levar a entrega, que era uma grande quantidade de flores e juntas aproveitar a oportunidade para comprar roupas com o dinheiro do quadro.
Tudo parece bem resolvido por aqui! Agora vamos seguir o voo da mariposa, que já se encontra exposta em uma grande galeria de artes de Paris.
Exposição das obras do pintor Frances Heitor Pena D’oro. Um especialista muito conceituado nos traços, originalidade e foco de luz produzido na tela por meio de pinceis. Impressionado com o resultado alcançado no quadro por Caroline, fez com que ele o levasse para uma avaliação entre os sete juízes que fazem parte da cúpula da arte europeia. Desta maneira seriam analisados tanto os detalhes como o conteúdo e expressão artística da tela.
Esse foi o exato momento em que a mariposa voou levando Caroline junto. O resultado foi unânime. Todos os jurados ficaram impressionados com o resultado obtido e premiaram a obra com o valor de vinte mil dólares por dar mais sentido à arte, deixando-a cada vez mais perto da realidade.
Imediatamente Heitor ligou para o aeroporto e reservou um voo naquela mesma noite para São Paulo, pois sabia que a noticia iria explodir como uma bomba na mídia e os repórteres sairiam como cães farejadores atrás da pintora. O melhor seria ele encontrá-la antes deles.
A mariposa voltou para a exposição de Heitor, mas agora era destaque pelo prêmio com uma medalha de a tela do ano.
A notícia atravessou o oceano como um relâmpago, trazendo apenas o nome de Caroline Casulo, uma pintora desconhecida que ganhou o prêmio do ano pela arte no continente europeu.
Horas depois Heitor desembarcou em São Paulo num voo fretado. Foi descer do avião e já percebeu que estava sendo seguido por jornalistas aguçados pela noticia. Ele se negou a dar qualquer entrevista antes de encontrar Caroline, mesmo porque ele não sabia se aquele era o verdadeiro nome da pintora, poderia ser apenas um nome artístico.
Voltamos à cidade.
Foi chegar à igreja onde as flores seriam entregues e o Sr Leal chegou também. A primeira coisa que ele perguntou para Julia foi sobre as pinturas, parecia nem se preocupar com os arranjos. Julia respondeu que ela e as irmãs decidiram não mais vender as pinturas. Se decidissem vender, procurariam por ele.
Foi uma tarde feliz, há muito tempo elas não saiam juntas, sem preocupação e sem pressa. Caroline comprou uma calça e uma blusa por sentir muito frio. Julia escolheu uma calça e um vestido amarelo, já Mariah parecia não ver limites nas compras, além de ficar muito tempo no provador, comprou duas calças e três camisas. Caroline comprou até uma camisa para o vizinho que as levou para fazer a entrega e ainda teve paciência para esperá-las fazer as compras. Depois tomaram sorvetes, o dinheiro finalmente acabou e foram embora.
O telefone da loja tocou e o Sr Leal atendeu:
- Alo!
- Eu sou o Heitor, comprador da mariposa. Lembra-se de mim?
- Sim!
- Eu quero lhe dizer que estou seguindo para sua loja agora . Se aparecer alguém perguntando sobre Caroline Casulo não dê informações.
- Certo!
- Logo estarei aí.
Foi ele desligar e chegou um repórter de uma revista semanal perguntando:
- O senhor que vendeu há uns dias atrás um quadro de uma mariposa?
- Sim! Mas não posso falar mais nada.
- Pode ser muito bom para o senhor.
- Por que vocês estão aqui?
- Nós precisamos falar com Caroline Casulo. O senhor a conhece?
- Sim! Conheço.
Enquanto ele respondia as perguntas chegou outro jornalista de uma revista muito mais conceituada e tomou a frente na entrevista. Chegou a puxar o Sr Leal de lado querendo exclusividade. A loja repentinamente encheu de pessoas curiosas e à medida que o repórter tomava a exclusividade, seus seguranças afastavam os concorrentes.
O tumultuo foi formado, já que a entrevista estava disputadíssima e quando chegamos a esse ponto o suborno é a melhor estratégia. Ofereceram dinheiro ao Sr Leal e ele prometeu passar todas as informações, inclusive a levá-los até a casa de Caroline.
No momento em que saiam do armazém rumo à residência de Caroline Sr Heitor chegou. Como ele era uma pessoa de suma importância todos deram passagem sem o mínimo obstáculo. Ele pegou no braço do Sr Leal e puxou para dentro do carro falando:
- Agora não tem mais jeito! Vamos todos juntos. O Senhor indica o caminho a seguir.
O local era bem próximo à cidade e logo chegaram à entrada do sítio que tinha uma placa com o desenho de uma linda borboleta e escrito embaixo:
“Família Casulo”
Mariah viu aqueles carros chegando juntos e não entendeu nada. Pessoas saindo com câmeras, máquinas fotográficas e todas as pessoas vinham na direção dela.
- Você é Caroline Casulo?
- Não! Ela é minha irmã.
- Onde ela está?
- Nos canteiros de flores.
- Então nos leve até ela.
- Vamos por aqui!
Eles chegaram ao canteiro e encontraram Júlia podando as flores e logo perguntaram:
- Você é Caroline Casulo?
- Não! Caroline é a minha irmã.
Caroline estava sentada na terra com a roupa toda suja e logo começaram a tirar uma enormidade de fotos. Tinha emissora que queria colocar a notícia imediatamente no ar com exclusividade, mas houve a intervenção do Sr Heitor que falou:
- Ninguém coloca uma notícia no ar antes que eu tenha uma pequena conversa em particular com as meninas. Depois faremos uma entrevista em grupo para atender todo mundo. Julia não entendia o que estava acontecendo e perguntou?
- Por que vocês estão procurando a minha irmã?
- Todo esse movimento é devido à pintura da mariposa, que ganhou um prêmio na Europa.
- Que prêmio?
- Vamos para casa! Lá vocês saberão de tudo e depois conversaremos com a reportagem.
O que os repórteres não esperavam era a deficiência de Caroline, que precisou ser amparada para levantar e só conseguiu se locomover até a casa apoiada aos ombros das irmãs.
Dentro da casa, enquanto as garotas se ajeitavam para a entrevista, o Sr Heitor as preparavam explicando todo o acontecido com o quadro da mariposa, até chegar ao prêmio final. Depois pediu o número de uma conta bancária delas para que fosse depositada a quantia de vinte mil dólares.
O homem que era um conhecedor profundo da arte não conseguia tirar os olhos daquela coleção de pinturas expostas na parede. Chegou a se aproximar do quadro “Pensamentos” No qual havia um gafanhoto e uma borboleta tocando suas antenas Pintado por Caroline e sussurrar baixinho: “Que maravilha”. Olhou o outro chamado “Asas”Onde uma única borboleta se lançando ao ar aparecia em muitas posições diferentes. Pensou baixinho: ”Movimentos perfeitos”
- Que pinturas maravilhosas!
- Tem outras nas paredes do quarto.
- Depois eu as aprecio com calma, mas agora evitem falar para os jornalistas sobre essas pinturas. Se eles souberem, vão deixar vocês loucas. Peguem essas pinturas e guardem no quarto, mas muito cuidado, nem ousem tocar na tela.
Sr Heitor chamou os repórteres para dentro da casa, onde seria feita a entrevista e cada um pudesse trabalhar sua matéria da melhor maneira possível.
Na sala humilde da casa Caroline permaneceu todo o tempo agarrada ao braço de Julia, que respondeu todas as perguntas por ela e na maior parte do tempo deixou claro que aqueles canteiros de flores eram a vida delas. Dali elas tiravam o sustento e ali eram felizes.
A fama de Caroline correu o mundo atravessando fronteiras. Sua foto suja de terra no canteiro de flores apareceu estampada nos mais diversos idiomas. Junto à foto dela estava sempre estampada, uma frase de um poeta conhecido como o criador de vaga-lumes que dizia o seguinte: “A menina que não sabia andar, mas aprendeu a voar” Todos os dias chegavam estudiosos de arte do mundo inteiro para conhecer o seu trabalho e ficavam dias ao seu lado, na casa, nos canteiros e sujos de terra como ela.
Surgiam propostas aos montes para sair do país e trabalhar em galerias renomadas, mas nada fazia a menina de olhos castanhos deixar a pequena cidade de Baguaçu em São Paulo onde nasceu.
Numa visão oportunista da situação. Sr Leal insistia que a metade do prêmio recebido pela pintura fosse dele, pois alegava que o prêmio seria resultado da venda feita por ele, mas recuou em suas reivindicações ao saber que o sítio seria transformado em um laboratório de estudos para o desenvolvimento da pintura em tela, além de um espaço de visitação e estudo das pinturas feitas por Caroline Casulo. Como presente de inauguração o sítio receberia a mariposa de volta.
A circulação e permanência de turistas estrangeiros traria um fluxo grande de dinheiro localizado e essa era uma oportunidade imperdível para ele ter bons lucros. Tanto que montou toda a infraestrutura para acomodação dos visitantes admiradores da arte em tela.
Interessante como a rotina vivida pelas meninas nada mudou. As pessoas que ali se hospedavam, além da pintura também participavam no plantio e cuidado com as plantas equilibrando a tranquilidade e a ansiedade na pintura. Os artistas chegavam e se ambientavam com a paz local tornando assim difícil a sua partida. Essa atitude dos estudantes fazia com que formasse uma lista interminável de nomes à espera de uma vaga.
Os estudantes ficavam impressionados com a paciência dedicada nos traços feitos por Caroline na tela. Cada pequeno detalhe levava semanas para ser concluído. A menina de olhos castanhos que só desenhava borboletas agora vivia em frente a um espelho desenhando seu próprio retrato. Anos demoraram em sua própria pintura e quando pensaram que a obra estava pronta, ela começou o traçado de outra menina ao seu lado. Tratava da figura de sua irmã Mariah que quando terminada os estudantes perceberam que as figuras olhavam para cima, onde levou uma enormidade de tempo para com perfeição surgir a figura de Julia, ambas com as roupas compradas naquela tarde feliz com o dinheiro da mariposa.
A tela já parecia pronta. Nela Caroline aparecia sentada com um pincel na mão olhando para Julia, mas foi aí que surgiu a grande surpresa da arte, pois havia uma tela desenhada na própria tela, onde Caroline desenhou a figura de um velho de barba branca. Com isso todo o contexto da obra finalmente criou vida, como se as irmãs estivessem esperando uma confirmação de Julia referente àquela figura expressada na tela. Foram anos de trabalho, até que a pintura ficasse pronta e por fim o nome da obra “O benzedor”Caroline Casulo.
Se pedissem a opinião de um sábio, ele diria que a arte é uma expressão viva e capaz de modificar o mundo. Também diria que “A mariposa” apenas se lançou em um voo longo, bem além do oceano, encantou olhares com sua beleza e depois retornou pousando na mesma parede. Como na arte esta a alma do artista, Caroline voou junto, muito além de sua imaginação ou a própria vontade, já que nunca aceitou sair nem que fosse por uma única vez da pequena cidade chamada Baguaçu, localizada na linha noroeste do estado de São Paulo.
Paulo Ribeiro de Alvarenga
O criador de vaga-lumes