Uma cantiga na noite
E chegariam os ares da primavera, e Ancila recobraria um pouco aquele tom de amanhecer dos olhos. Esta era a esperança da matriarca. Mas,seria esta esperança um desejo verdadeiro da felicidade de Ancila, ou a matriarca estaria apenas colocando uma venda nos olhos e no coração, para livrar-se do remorso de condenar a filha àquele destino que se derramava sobre a alma da moça, como se fosse uma avalanche que a sufocaria pelo resto da existência?
Flávio aparecera numa tarde de agosto. Cassandra, a matriarca, o introduzira na vida de Ancila, sem compaixão. Floresciam as laranjeiras. Entretanto, dilacerava-se o sonho de amor na alma da moça.
Cassandra não fazia concessões. Inútil seria, portanto, a revolta. Aquele segredo pairava entre as duas, e Ancila jamais trairia a promessa feita ao pai, porque isso determinaria o desespero, a condenação ao abismo.
E foi assim, em tempo de primavera, num pôr-do-sol de outubro, que ela se vestiu de noiva. Caminhou tristemente pela nave da igreja, até o altar. Flávio, entretanto, não a esperava, não viera.
Ancila, vagarosamente, retornou sobre seus passos, o olhar fixo na porta da igrejinha. Não se importou com as pessoas, nada importava. Saiu da igreja, ainda olhou a noite, por um instante. O sol era um braseiro no horizonte. Jogou véu e grinalda na escadaria da igreja e fugiu.
Nunca mais se ouviu falar de Ancila. Mas, no pomar da casa de Cassandra, sempre que a primavera chegava, quando as flores de laranjeira prometiam fazer-se frutos, a noite trazia uma canção:
Tecida de flores eu queria a grinalda,
Mas tornou-se de espinho meu sonho.
Contra o desejo de meu coração,
Minha mãe me fez noiva.
Ai flores de laranjeira, quantas dores
em minh’alma são causadas.
Fui noiva coroada de espinhos,
e, para minha liberdade,
não me esperou no altar
aquele que eu não amava.
Ai flores de laranjeira, quantas dores
em minh’alma são causadas.
Mas, minha mãe, eu te pergunto:
_ Que destino deste ao amor
que eu procuro em desespero,
nestas andanças sem fim?
Ai flores de laranjeira, quantas dores
em minh’alma são causadas.
Maria Felomena Souza Espíndola