Por Siempre (Parte 2 - Lembranças de Bariloche)

A noite passou. O sol foi chegando e com ele, estava chegando a hora de irem para o aeroporto. As amigas já estavam com as malas prontas e só tiveram de esperar a mãe de Marcela para que ela as levasse. Chegando lá, com toda a turma, embarcaram. Férias. Bariloche. Amigos. Seria um sonho, Alice sabia que seria. Mesmo se não pudesse ter nada com Gustavo. Mesmo se Thais tivesse algo com ele. Não se importava. Ia se divertir, esquiar e comer muito, por que afinal de contas, férias é época de engordar.

Apesar de não quebrarem nada dentro do avião – jovens – todos se divertiram muito durante a viagem. Todos menos Alice. Gustavo além de não ter falado com ela a evitou o tempo todo no aeroporto e sentara no lugar mais longe dela sem nem ao menos olhar pra ela. “Por que eu ainda me importo?”, pensava de braços cruzados.

A chegada em Bariloche foi a mais tranqüila possível. Alice conseguiu descansar e compensar o que não dormiu à noite dormindo durante o vôo. Era hora de sair do avião e pisar em solo argentino. No pacote de viagem, a turma alugou pelo aluguel de um ônibus para que todos pudessem andar juntos pela cidade sem ter de abrir mão do conforto e um meio de transporte para uso exclusivo deles. Pagaram também um motorista para dirigi-lo. Seria no mínimo imprudente deixar que alguém menor de idade dirigisse um ônibus. Imprudência maior seria fazer isso na Argentina sendo um brasileiro.

Foram para o chalé onde fizeram as reservas. O lugar era lindo. Não luxuoso como esses hotéis costumam ser ou querer ser. Era um bangalô engraçadinho e coberto de neve. Eles correram pra ver como era dentro. Após a porta de entrada, vinha uma sala com alguns sofás e cadeiras de embalo, um balcão com uma senhora. Deveria estar com os seus 60 anos e seus cabelos eram branco-azulados. Foram falar com ela.

- Por aqui, chicos! – Falou um garoto que estava na parede lateral sentado a frente de um computador.

Os amigos foram. Estavam rindo e falando mil coisas. Adolescentes falam mil coisas ao mesmo tempo. Mil vozes.

Chegando mais perto, Alice pode ver o garoto com mais precisão. Tinha olhos muito verdes e o cabelo muito preto. Caiam para os lados como um típico argentino que vemos nas partidas de futebol. Era lindo. Era mais velho.

Pablo era o filho da dona do chalé e aquela senhora era sua avó. Foi o que ele disse num sotaque carregado de argentino. Alice era a única do grupo que era fluente no idioma e consequentemente teve de explicar todas as exigências e recomendações que Pablo se referia. Ele, além de estar recepcionando as pessoas naquela temporada, estava guiando algumas excursões e ensinando alguns aprendizes a esquiar. Tinha aprendido muito ao longo da vida vendo como os pais recepcionavam os hospedes que sempre iam no começo do ano em grande massa para o lugar e isso o inspirou tanto que ele já não via outra opção de carreira que não fosse a de turismo. Se formou no ano que se passou e ficou um tempo em Buenos Aires trabalhando num grande hotel. Aprendeu muitas coisas, mas queria fazer uma visita à família. Esperou para que chegasse junho e com ela a grande fonte de renda de sua cidade natal para que, além de fazer uma visita e matar a saudade, dar uma força pra família. Pablo não esperava que fosse encontrá-la novamente.

Alice tinha boas lembranças daquele lugar. Era onde sempre passava as férias do meio do ano com seus pais quando eles ainda eram casados. Aprendera a andar de esqui e se interessou muito pelo espanhol. “É uma língua bonita, papai”, era o que dizia sempre para convencê-lo a matriculá-la em um curso de espanhol. Aprendera facilmente e nas férias seguintes, mesmo estando apenas há um ano fazendo as aulas, já conseguia falar fluentemente. Lembra-se que chegou até a fazer amizade com um garoto gordinho que vivia naquele chalé. Não lembrava seu nome agora, mas pensou nele durante um bom tempo. Ele a ensinou a esquiar e travou inúmeras batalhas de neve com ela. Acabava perdendo todas, mas Alice sabia que ele perdia de propósito para ela não se sentir fraca ou perdedora. Era um bom amigo apesar da diferença de idade. Alice sempre o tivera como uma pessoa que não tinha muitos amigos, por que se os tivesse, não iria querer brincar com uma menina de doze anos. Foram férias boas aquelas. Foi a última vez que passou as férias naquele lugar. As últimas sem ter de se dividir entre seu pai e sua mãe antes de ter a sua guarda partilhada entre os dois.

Mas naquelas férias, Alice não ia ter de passar por isso novamente. Estava com seus amigos no lugar onde tanto amava. Mal via a hora de ir esquiar. Neve. Quanto tempo não via neve? Seriam as férias que ela queria fazer valer.

Haviam dez quartos naquele bangalô. Um ficava para os donos, um para a senhora idosa, mãe do pai de Pablo e um para o próprio Pablo. Sobraram sete. Três estavam ocupados com outros hospedes. Sobraram quatro. Eram vinte. Tiveram de se dividir em grupos de cinco para dormirem no mesmo quarto. Alice ficou feliz, pois assim poderia ficar no mesmo quarto que suas amigas e seria perfeito. Thais estava aliviada. Poderia ficar de olho em Alice até a noite e isso seria muito útil.

Pablo, deitado em sua cama, tentava dormir. Não conseguia. A verdade é que Pablo pensava demais. Pensava em muitas respostas pra uma única pergunta. “Por que Alice não o reconheceu?”. Claro que ele mudara muito nos últimos sete anos, mas ainda assim, esperou que ela fosse mais esperta. Ou ela não se lembrava daquele lugar? Não lembrava de ter um amigo de lá? Será que havia se esquecido de tudo? Ou será que só havia se esquecido dele? Era difícil responder. Ainda assim poderia ter mil respostas mais grave. Ela poderia ter sofrido um acidente e não se lembrava ou poderia estar fingindo não se lembrar dele. Pablo já não queria mais pensar.

O segundo dia em Bariloche foi muito agitado. Os estudantes tomaram café-da-manhã depressa e estavam cada vez mais nervosos e ansiosos para começarem o dia de verdade. O chalé, embora simples, possuía em seu “quintal” uma das mais íngremes pistas de esqui do lugar. Pablo não ensinava ali. Era perigoso e, embora para ele, fosse natural e fácil, ele sabia que não era prudente fazer aprendizes andarem naquele lugar.

Com isso, para ensinar os muitos estudantes que não sabiam esquiar e, tirando o entusiasmo e empolgação de alguns garotos, Pablo os encaminhou à pista que ficava à frente. Durante a aula, Bruna e Marcela foram as que mais deram trabalho. Elas não conseguiam se equilibrar de jeito algum e Pablo teve de ficar atento nelas. Gustavo, Thais e Carol estavam indo bem, aprendiam rápido, mas nada se comparava com o exímio desempenho de Alice que, em muitas vezes, ajudava Pablo a ensinar os demais. Assim, Alice passou de hóspede a interprete e pouco depois já estava sendo chamada de assistente de Pablo pelos amigos.

Alice estava esgotada. Ajudar os amigos com a comunicação e com o esqui a deixava feliz por ajudar, mas o cansaço era inevitável. Além disso, Gustavo ainda não estava falando com ela e isso a deixava preocupada.

Pablo estava cada vez mais contente com aquelas férias, mas o fato de Alice não lembrar dele não deixava a sua cabeça em paz.

Thais era a única que estava se divertindo como nunca. Pela primeira vez, ela não era a ultima a aprender algo e Gustavo sempre a ajudava em algumas manobras que aprendia primeiro. Alice já não estava a incomodando. Claro, isso se devia ao fato de ela estar mais ocupada que nunca e não sobrara tempo para que ela fosse arrastar as asas para seu futuro namorado.

Assim foram os primeiros três dias na gelada Bariloche. Tudo o que estava previsto para acontecer,acontecia. Aulas de esqui e chocolate quente no fim de tarde. Vinicius levou o violão e ficou cantando na sala enquanto todos descansavam do tempo frio que estava lá fora. Em um canto da sala foram colocados – por idéia e Pablo – jogos de tabuleiro e baralho para distrair e animar os hóspedes. Funcionou. Todos se divertiam e Dona Mercedez nunca tinha visto tantas pessoas felizes no seu chalé. No canto a sala, Pablo apenas observava com uma expressão satisfeita no rosto. Não era felicidade plena. Era satisfação momentânea. Dona Mercedes analisou o filho antes de ir em sua direção.

- Qué se pasa, Pablito?

- Nada, mama. Estoy muy bien, porqué?

- No és nada, yo sé. No tentes engañarme. Veo que estás molestado por algo.

- Ya dijo, madre. No tengo nada, sí?

- Muy bien, Pablo Nacul! Cuentas mentiras a su madre.

Virou-se chateada e foi-se para o quarto. O jantar já estava pronto e já não precisavam mais dela. Recolheu-se para pensar. Não apenas para pensar, Mercedes foi por achar que o filho iria atrás dela e pedisse desculpas. Não foi o que aconteceu, claro. Mas era o que ela tinha em mente.

Pablo, contrariando o que disse à sua mãe, estava olhando atentamente os olhos de uma certa garota para um certo garoto que não era ele. Buscava em sua expressão algo que a entregasse, algo que falasse “yo sé quien és, yo recuerdo de tí”. Não o achou em nenhum dos muitos olhares que Alice tinha e distribuía para todos.

Alice estava feliz. Sentia-se uma velha jogando buraco com os amigos e tomando chocolate quente. Queria poder ir lá fora e apreciar a noite de inverno. Perdeu o jogo. Não estava com cabeça para continuar ali. Gustavo já não a olhava e Thais não falava direito com ela havia tempos e estava cansada de não ter as coisas como eram antes. Esperava mais daquelas férias. Esperava muito mais. Retirou-se. Foi em direção a escada, mas teve a impressão de que logo encontraria pessoas, já que dividia o quarto com suas quatro amigas. Quando chegou no segundo degrau, Alice resolveu descer. Virou noventa graus e foi em direção a porta que estava imediatamente à sua frente. Foi rumo ao que tanto queria e ficou lá. Seus esquis estavam num armário, na entrada. Os pegou e seguiu em frente, rumo ao teleférico que avistara pela tarde.

Alice estava arrastando seu esqui e percebeu alguém fazendo o mesmo atrás dela. Assustada, virou para ver quem era. Aliviou-se.

Pablo a seguiu. Não por ter esse costume, nem por curiosidade, mas por precaução. Não ia deixar uma menina andando por aí, num inverno como aquele e num país que nem era o dela.

A menina o esperou e perguntou se ele também gostava de sair e se divertir numa noite como aquela. Pablo não quis dizer que o motivo para sua saída tinha sido ela mesma e aliviou-se ao saber que ela não tinha percebido tal pensamento. Disse que sim. Eles foram conversando coisas bestas sobre esqui e inverno até o teleférico. Alice estava animada pela companhia. Pablo era tão tímido que se tornava sociavelmente engraçado e conhecia muito sobre tudo naquela cidade.

- Dónde aprendeste andar em el esquí? – Pablo não se conteve.

- Cuando chiquita, mis padres siempre veníam aquí passar las vacaciones. Ya estoy acostumbrada com los esquís. – respondeu Alice sem se dar conta.

- Debe ter tido um maestro muy bueno, sí?

- En la verdade, aprendí con un nino. Mejor dijo, debes a conocerlo, no?

- Tal vez – Pablo não sabia o que falar.

Antes que Alice descrevesse o garoto que a ensinara a esquiar, chegaram ao teleférico e subiram, lembrando-a de uma vez que tinha vindo com o garoto e seus pais ficaram assustados com o que podia ter acontecido com ela. Estava se lembrando de coisas que há muito tempo não pensava.

Pablo ficou calado e sorriu. “Ella recordase de mí”. Embora soubesse que ela não o tinha reconhecido já era gratificante saber que ela lembrava dele, contava as aventuras daquele inverno.

A subida foi marcada por conversas sobre a cidade e as aventuras vividas por Alice e seu amigo quando crianças. Pablo manteve-se com o olhar fixo nela. Encantado. Havia se esquecido de como ela falava tanto. Isso não o chateava, claro que não. Isso o encantava.

- Yo no paro de hablar, no? És um gran defecto – deteve-se Alice, revirando os olhos.

- No, no. A mí me gusta mucho oír tu voz.

Alice sorriu sem graça enquanto enrolava uma mecha de cabelo. Olhou para baixo e agradeceu sem jeito. Pablo estava bobo. Sim, bobo é a palavra certa. Mal conseguia falar alguma coisa. Poderia ficar ali. Olhando-a a noite inteira. A vida toda. Pensou por um tempo na sala cheia de gente – amigos dela. Pensou em como Alice olhava para Gustavo. Procurou achar qualquer outro significado para aquele olhar que não fosse o que estava pensando, mas era difícil. Estava na cara que ele só era uma companhia e nada mais. E estava na cara de que Gustavo sim, era algo a mais. Ou pelo menos era assim que Alice queria que fosse e era só com Alice que Pablo se importava.

Alice também pensava. Pensava muito em muitas coisas ao mesmo tempo. Sua mente era algo confuso, sua mãe sempre dizia isso a ela. Enquanto falava para Pablo todas as suas histórias de invernos infantis, pensava em como Pablo era bonito e atencioso. Pensava em perguntar para ele se ele conhecia o tal garoto, se esse garoto morava ou freqüentava a cidade. Mas também pensava em quantas pessoas a família de Pablo havia hospedado ao longo dos anos e então desistiu.

Então, como quem dá uma deixa, o teleférico chegou a pico. Era hora de esquiar.

~~CONTINUA~~

A B Queiroz
Enviado por A B Queiroz em 22/06/2012
Código do texto: T3738911
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