Filhos do Crack – Giselle Sato



Hoje caminhando pelos corredores do velho shopping ,  vi tanta gente apressada atrás de presentes de última hora que confesso que senti uma ponta de inveja daqueles  que tinham alguém especial para  agradar.
Aquela ânsia em descobrir alguma coisa bonita, útil ou simplesmente tocante. Podia ser uma tia, madrinha, irmã mais velha ou  mãe, a verdade é que quem cria quer  ser lembrada e este  afago  pode vir na  forma de uma rosa ou um perfume da moda, mãe quer mesmo saber que existe  e é importante.
Minha ansiedade atingiu o pico máximo quando compartilhei os  risos e planos de um  trio de moças, fui abalroada por  pacotes e sacolas, e fiquei tão sem graça por não ter nada nas mãos que acabei entrando em uma loja de departamentos.
Escolhi  pratinhos, paninhos de prato  e canecas coloridas, enfrentando uma fila enorme sem a menor necessidade, meus armários estão repletos de louças mas eu queria fazer parte daquilo, sei lá..
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Com certeza é porque sei que não existe qualquer comemoração lá em casa, meus filhos estão longe demais e  não posso partilhar nada além de lembranças. Desta forma, seleciono as melhores e quase sempre são da fase em que eu podia protegê-los em meu mundo com cheirinho de lavanda e alecrim.
Dias de roupas secando no varal, papinhas com legumes fresquinhos, saudades do tempo em que  a maior preocupação era a melhor pomada pra assadura.
Mas os  meus bebês cresceram e foram para a vida, e ela os engoliu tão de repente que mal me dei conta do quanto podia ter sido melhor, se não tivéssemos nos perdido em acusações mútuas e picuinhas sem sentido.
No  início eles eram dois  adolescentes lindos, meninos zona sul cheios de vida e  só  querendo experimentar e aprender. E  eu, a mãe que  exigia demais,  preconceituosa com os amiguinhos deles, sempre fuçando gavetas e mochilas, um verdadeiro cão farejador.  

Eu só queria continuar sendo a mãe amiga e parceira de sempre mas  eles sentiam vergonha dos meus cuidados e me mandavam voltar a trabalhar, fazer academia, arrumar uma ocupação... logo eu, que havia desistido da enfermagem para ser mãe em tempo integral. Tantos anos de faculdade desperdiçados porque não queria cumprir plantões e ver meus filhos criados por babás ou em creches, e na ocasião havia sido uma decisão conjunta.
Mas nada disso importava e  o pai deles achava graça, e apoiava as gaiatices,  dizia  que eu estava sendo exagerada e ficava repetido que  ele já  tinha sido hippie e  que atualmente  era um grande empresário, isto estimulava os garotos a ir adiante.
Para todos o comportamento desregrado dos meus filhos, fumando  um baseado de vez em quando,  sumindo sem dar a menor satisfação era apenas uma fase. Eu  precisava relaxar e parar de ser paranoica, disso eu nunca vou esquecer-  Fernando me sugerindo fazer análise para aprender a cuidar dos nossos filhos, ter vida própria era o meu problema .
Nesta época eu ainda não entendia  que eles mal  haviam começado, mas já tinha a famosa intuição alertando e infelizmente não segui o instinto.

Mas eles não pararam por aí, a fase rebeldes sem causa  foi ficando mais ousada  e destemida.  No alto de seus vinte e um anos, foram premiados pelo pai com um carro zero caríssimo. Os meus rapazes lindos, louros, festeiros estavam  agora bem equipados  diziam que eu era opressora, sufocante, autoritária e que não os deixava em paz. Finalmente me transformaram em uma chata mesmo, que todos evitavam contar o que acontecia e só servia para providenciar comida de vez em quando, roupa lavada e dinheiro para as necessidades.
Engraçado que nesta época eles e Fernando, o pai camarada viviam pra cima e pra baixo, viajavam,   faziam programas feito adolescentes e não incluíam a bruxa má que haviam me transformado. Eles ‘’zoavam’’ e eu assisti calada até que o pai não aguentou mais fazer o papel de amiguinho e quis puxar as rédeas, mas sabem como é... liberdade demais gera completa falta de respeito e meu marido soube que eles não tinham nenhum respeito por ele, pior que isso, eles achavam o pai fraco e idiota.
Eles sim, eram espertos, e assim ficamos os dois acuados por nosso filhos e a casa que deveria ser um lar  virou um campo de batalha. O dinheiro não bastava para as despesas, nossos ajudantes pediram demissão não sem antes nos alertarem sobre sumiço de rádios, som, dvds  e até de jogos de talheres e taças. Minha bolsa que antes eu simplesmente deixava em cima da primeira cadeira que encontrasse, começou a ficar trancada no meu quarto junto com  tudo que ainda tivesse algum valor.


Finalmente quando as coisas ficaram feias demais, todas as tentativas fugiram ao controle e nada mais funcionou. Meus meninos estavam irremediavelmente vivendo na fumaça azul e  a culpa recaiu sobre a mãe de todos os erros, a mesma pessoa  que cansou  de avisar, sinalizar, implorar para que fossem evitados . A família apontou  o dedo, os milhões de amigos desapareceram  e o casamento acabou  porque Fernando  não aguentou assistir a destruição que ele mesmo ajudou a acontecer.

Mas o inimigo estava lá desde sempre porque mãe sente a índole de sua cria, sabe das fraquezas e intui que o caminho torto já foi traçado. Um levou o outro, educação a gente oferece tanto quanto lar e estrutura familiar.  Não sou árvore podre,  meu fruto nasceu fraco  balançou perdido  e não amadureceu a tempo e caiu.
Mesmo assim  me sinto culpada, mas não quero que me acusem, perdi e só isso já é um grande castigo. Lá fora existe um universo colorido onde a sedução das cores, luzes e sons é forte demais, tem que ter muita determinação para não cair na ilusão.
Começam somente relaxando, afirmando  que nunca ficarão viciados em nada, mas é mentira e como mãe eu tinha o direito de ter tentado impedir quando ainda podia. Tudo tem seu tempo e  quando o vício entranha não há jeito, eles vendem bens, corpo, dignidade e por fim, a alma.
 
Trouxe ao mundo meninos gêmeos perfeitos, devolvi à terra dois trapinhos de gente consumidos pelo crack em meses de muita dor e luta onde nada deu resultado.  Não se pode curar quem não quer ser salvo e sempre existem formas de fugir e conseguir burlar seguranças e hospitais.
Dia das mães é uma data linda, que deve ser comemorado por todas as mães sem exceção, mães com famílias grandes e alegres, mães guerreiras com suas crias que lutam para sobreviver, mães que se doam em prol de uma vida melhor para seus  bebês, mães que têm, não têm, tiveram e ainda terão seus filhos.
 Todas as mulheres que carregam dentro de si este sentimento materno, seja pelos próprios ou de outras mães e que sempre serão filhos. Porque a gente pode escolher um filho e hoje eu sei isso muito bem, demorou e foi preciso um caminho longo para aprender a amar novamente.

Há dois anos recomecei a trabalhar  em  uma instituição onde tenho oportunidade  ter contato com  muitas crianças, posso falar à vontade e elas me ouvem com atenção, gostam do meu toque e cuidados. Foi  neste espacinho que comecei a me encontrar, tratando  de crianças abandonadas  filhos de pais viciados, ciente que muitas dificilmente serão adotadas porque fogem do estereótipo as pessoas normalmente traçam. Algumas destas pessoinhas tem  necessidades especiais e acabei desenvolvendo  um carinho por  um garotinho  que encontrei lá em estado tão complicado que achei que não fosse sobreviver,  mas ele é um guerreiro e cada dia é uma vitória. Ele algumas vezes fica nervoso e agressivo, chora muito e é nesta hora que penso em como é injusto um inocente pagar pelo vício dos pais, e  só me resta passar um pouco de carinho  a este filho  do crack.

 A vida segue adiante e eu vou em frente porque é assim mesmo. Queria muito que não existissem drogas, vício, gente vendendo e comprando ilusões, pessoas fingindo que o mal não está nas esquinas mas é impossível e eu faço minha parte do jeito que posso.
 Reaprendendo a amar e a ser mãe de quem nunca teve ninguém.
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 10/06/2012
Código do texto: T3716288
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