Pintura em Negro

Debaixo do ipê nu, cujas flores brancas cobriam a terra roxa, mas que tornara-se negra pela chuva que caiu por toda a madrudaga, durante todo o tempo em que estive sentada ao lado de seu corpo imóvel. Dentro da velha casa somente eu o velei, somente eu estive junto de sua carne fria e enrigecida. Ninguém chorou sua ida, nem a familia que há muito o tinha renegado, muito menos os companheiros que um dia lutaram ao seu lado. Ninguém esteve junto de Henri depois que ele voltou da guerra, e a maior parte de seus companheiros que com ele lutaram também não. Sua familia o renegou após seus constantes ataques de pânico, medo e visões dos que morreram no fronte. Mas eu estive ali com ele. Não me importava se ele estivesse louco, ou se alguma força tivesse levantado o véu de seus olhos.

Mas depois de tantas vozes em sua mente, depois de tantos solfejos acumulados, ele se cansou. Eu também estava cansada, porque o amor dilui com o cansaço, mas os soluços dos choros escondidos também o fortificam. Porém quando entrei naquela manhã em sua fazenda tão descuidada que mais parecia abandonada, visão que era intensificada pela poeira que a falta de chuva no oeste causava. Naquela manhã pude sentir mais do que o vento seco embaranhar os anéis castanhos de meus cabelos, senti o cheiro da poeira misturar-se aos murmurios e solavancos que vinham da varanda, e o encontrei pendurado.

A visão mórbida e enegrecida fedia com o sol quente, que apenas queima a beleza e intensifica o fedor da morte. Depois que o vi não me lembrei de muita coisa.

Mas enquanto eu caminhava sobre a grama do cemitério, seguindo os dois coveiros que levavam o corpo de Henri, desviei os olhos da barra de meu vestido roxo, suja pela lama, para contemplar o crepúsculo que a chuva, feito milagre, fez cair mais cedo. Mas eu não chorei pelo corpo de Henri, pois jamais pude compreender a ligação entre um pedaço de carne que irá se desintegrar com os abraços quentes dados. A composição da carne poderia ser tão efêmera quanto o tempo, que dilata e passa a congestionar as memórias. E memórias eram apenas o que restariam.

Assim que fiquei sozinha ajoelhada sobre a terra umida, senti que os finos pingos de garoa molharem minha pele, meu vestido rodeava-me como se eu fosse uma bailarina de algum porta-joias esquecido. Quando olhei para o céu cinzento, e senti o cheiro das flores de ipê encharcadas ao meu redor, fechei os olhos para me lembrar do rosto de Henri. Porque lembranças são o que sobram quando as palavras saltam em esquecimento pelo tempo. Com os lábios molhados pela garoa chamei o nome de Henri enquanto a memória de seus olhos timidos e deslumbrados com a noite vinham até mim. Então senti o toque frio de um vento palpável em meus ombros. Quando abri os olhos, o espectro de Henri estava diante de mim, tentei me levantar, mas ele me segurou, enlaçando suas mãos em meus cabelos que caiam solitários na brisa fria. E eu queria poder acreditar que aquele toque era real, porque eu o sentia, apesar de saber que Henri estava morto. Então me lembrei que ele me disserra que se despediu de seu amigo na infantaria depois de ele já ter sido velado. Somente naquele instante pude crer que o que acometera Henri em seus ultimos dias não era loucura, porque se fosse eu também estaria louca.

Ele se abaixou, eu senti seu cheiro fresco mais uma vez, e seus labios frios beijando minha testa, para depois apenas tocar de leve meus labios, somente o suficiente para que eu pudesse sentir seu hálito de relva. Fitei seus olhos verdes orvalhantes, que me disseram com a tristeza de uma noite sem estrelas, mas com a tranquilidade do farfalhar das árvores escuras.

_Não me siga Eny.

Então ele partiu, por entre os túmulos, e tudo o que me restou foram as gotas de chuva, as flores de ipê e a noite que caia, e sempre me traria sua memória que jamais seria enterrada em meus dias.