Um rosto entre as dobras do jardim

Ametista olhava a tarde que se desdobrava em cores, contrastando com o verde pesado da montanha. Não saíra do quarto, mas a madrugada daquele dia ficara muito longe, perdera-se na distância da felicidade, como se tivesse caminhado por muitos séculos. Ela e os outros sabiam que o abismo era inevitável.

E Jordão, o velho português recém-chegado do tempo, reacendeu na alma as cantigas que o mar trazia do passado, das noites galegas. Ele sabia que as festas de Natal retornariam. Faria de novo finas tranças coloridas de papel crepom e entrelaçaria guirlandas. Iria até a mata, colheria bromélias e com elas cercaria o berço do Menino. Mas agora tudo era diferente, para Ametista e para o velho. De repente, tornou-se triste, longínquo. Deixara o mar. Se abandonasse os búzios, esqueceria as vozes, a música? E Ametista? Agora estava ali, e os outros também estavam. Mas havia o abismo.

Jordão chegara pela manhã. Nada trouxera, mas parecia curvado sob o peso de imensa bagagem. Quando chegou perto da fotografia, abriu um sorriso largo. Ametista percebeu que ele estava feliz, naquele instante, que foi breve. Embora permanecessem silenciosos na moldura, os olhos de Liana deram-lhe boas-vindas.

Os outros falavam de coisas que não entendiam. Na rua, o nevoeiro sufocava o jardim e, dentro da casa, aquelas vozes me asfixiavam. Eu sabia que desejavam que me aventurasse na neblina, embora os caminhos fossem ameaçadores. Quando se reuniram em torno da mesa, desejei estar entre eles. Repeliram-me, para que me afastasse daquela estranha ceia.

Ametista chegou devagarinho e colheu o breve sorriso de Jordão. Depois juntou as mãos em reza, como se fossem um relicário onde guardaria a flor preciosa que o marido lhe ofertava, naquele quase imperceptível esboço de felicidade. O casamento percorrera tantos anos, conhecera primaveras e invernos. Lembrava alegres noites de verão, quando a rua antiga cantava, ao mesmo tempo, boleros, sambas, canções de ninar. A voz de acalanto era da mulher, a vizinha, mãe de tantos filhos. O rosto de Gabriel também surgia, trazendo as melhores lembranças. Gabriel, luz inesperada, intensa e precária felicidade. E havia o abismo.

Na sala, nos vasos sobre as mesas, as rosas gargalhavam, porque a ceia era hilariante. Se alguém pensasse em maciez de rubras pétalas amorosas, estaria enganado. Jordão, ao retornar, preparara a estranheza daquela comemoração, e Ametista conhecia os espinhos da aliança. Sabia que precisava de um lampejo de compaixão. Mas nenhuma palavra, nenhum gesto viera mudar a trajetória, e ela enlouquecia, e as rosas riam, riam...Ametista e eu sabíamos que havia o abismo. Jordão estava ali.

Voltara como se quisesse mostrar que nunca se esquecera do arco-íris que jurara guardar na retina. Seguira rumos longínquos, perdera caminhos familiares, apagara rostos amigos. Quisera desfazer laços. Mas o arco-íris insistira, e Jordão agora retornava e emaranhava-se em raízes. Se pudesse, rasgaria sua história, aqueles enredos do mar. Se a maldição não o perseguisse, quebraria a jura. O mar, os búzios... Havia o abismo.

Às vezes tinha aquela sensação benfazeja, como se mãos muito leves derramassem paz. Nestes momentos, sentia que a alma se aquietava. Aconchegava Ametista nas recordações, elas eram cálidas e fortes, tinham a imensidão de um útero. Mas não se esquecia do rosto que espreitava no jardim.Vinham também os rostos dos remadores e traziam as linhas salgadas do mar, como se nelas estivesse escrita a história milenar dos caminhos das águas. Neles escrevera enredos de solidão, decifrara segredos. Mas o rosto espreitando no jardim?

A água salgada e verde e azul rebrilhava, vinha vindo rendilhada de espumas, invadia o jardim, apagava o rosto. O sussurro dos búzios emudecia as vozes da ceia. Jordão não resistiu à sedução do infinito. As últimas estrelas anunciavam o dia, quando o velho português acariciou a face adormecida de Ametista, deixou uma lágrima sobre o retrato de Liana. Viera sem bagagem, mas agora levava na alma um lampejo da precária luz de Gabriel.

No jardim, desfizera-se o rosto-ameaça. Quanto a mim, colheria rosas, para que não se esmagassem as pétalas. Mais que os caminhos ameaçadores, era perigoso ficar. Não partiria. Quando o rio ameaçasse transbordar, desceria o barranco, estenderia os braços curtos e guardaria flores ribeirinhas no avental azul. Elas seriam colocadas nos olhos silenciosos de Liana, junto ao sorriso e à lágrima de Jordão. E, na roda cansada dos dias, tentaria abraçar Ametista, amparando-a à beira do abismo....

Maria Felomena Souza Espíndola