Um dia, três outonos. (26/10/2011)
Quando se foi, passei três dias sem levantar da cama. Mal conseguia me mexer, tinha que apertar minha mão forte contra o peito toda vez que me virava, para estancar aquela dor que não parava nunca. E ela ali permanecia, até que eu adormecesse, acordasse e tudo recomeçasse de novo e de novo. Minha cabeça estava vazia, e preferia assim, às vezes forçava um olhar para o teto fingindo interesse quando ela começava a maquinar qualquer coisa que saísse desse ponto zero. Não queria lembrar de nada. Meu corpo estava rente à parede, dopado de remédios e mais remédios que me fizessem suportar a dor de ficar tanto tempo deitado – muito menor do que a dor de tentar ficar de pé, aguentar todo o peso de sabe-se-lá como exatamente definir isso, algo próximo a o peso da sua ausência.
Ao fim de três dias tive que levantar, reagir. Levantar e reagir porque assim me obrigou minha irmã, ao entrar no meu apartamento aos berros, depois de dias e dias sem notícias minhas. Obrigou porque aqueles olhos de súplica e preocupação dela tinham aquela força feminina que a gente não consegue nunca não ceder - mesmo estando nesse estado. Levantei e reagi, pelo menos aparentemente.
Saímos para andar, tomar um sorvete na Jóia, talvez, quem sabe, dizia ela, já que estávamos pela Cidade-Baixa aproveitar para ir a algum bar afinal, já estava anoitecendo. Eu disse que o sorvete já bastava. E eu odiava sorvete. Mas naquele momento eu odiava tantas coisas, que o sorvete me passou despercebido. Odiava aquelas ruas cheias de gente, e que pra mim era como se estivessem desertas; odiava meu corpo, porque ele pesava mais do que minhas pernas conseguiam sustentar, e tinha que vir segurando meu peito discretamente, porque a dor ainda não cessara, e eu não queria que minha irmã percebesse nada. Odiava principalmente minhas pernas, por me obrigarem a uma caminhada que eu não tinha condições de dar e, ainda sim, não cediam para me fazer cair no chão e voltar a posição horizontal que tanto me acostumara nesses últimos dias. Foi então que fiz uma coisa, que jurei para mim mesmo nunca mais fazer novamente. Imaginei que minha irmã, do meu lado, andando, sorrindo e conversado coisas que eu não conseguia ouvir, ou ouvia e não tinha poder de decifrar aquele conjunto de sons... não sei e, no fundo, não importa... fingi que ela era você. E que vínhamos andando os dois, você rindo e falando coisas que eu não conseguia ouvir, ou ouvia e não tinha poder de decifrar aquele conjunto de sons... porque eu estava preso ao seu olhar, as suas feições, aos seus passos, ao seu sorriso. Íamos andando em direção a sorveteria, e eu já não odiava tanto o sorvete. Porque eu sentaria e tomaria ele com você do meu lado. E eu poderia provar o de morango que você certamente ia pedir, e te obrigar a comer um pouco do meu de chocolate, porque você odiava sorvete de chocolate. E nós iriamos rir e eu ia te convidar para ir a um bar da Cidade-Baixa porque, afinal, já estava anoitecendo. E, depois de algumas vodcas para você, porque você adora vodca e eu não suporto nem o cheiro, e depois de alguns uísques para mim, que você beberia sem muito gosto só pelo prazer de partilhar um copo comigo, nós iriamos voltar para o meu apartamento, e enquanto eu procurava meio tonto a chave da porta de casa, você me abraçaria e beijaria minha nuca, fazendo com que os pelos por todo meu corpo se arrepiassem. Sentaríamos um na frente do outro, eu ficaria admirando sua silhueta nua, enquanto você me testava para ver até que ponto eu aguentaria ficar ouvindo seus sussurros ou olhando seu sorriso, seus cabelos longos caindo sobre os ombros, seu olhar intenso e sedutor. E pela primeira vez poderíamos encenar com a mais pura verdade de dois atores que se amam aquelas duas poesias eróticas que escrevemos para um Sarau qualquer que fui a muitos meses atrás. Aquelas poesias tão somente nossas, e que tanto sonhamos em escrevê-las um no corpo do outro. Então eu te abraçaria e dormiríamos assim, como se fossemos um só corpo. Eu acordaria muitas vezes durante a noite só para ficar vendo sua respiração tranquila do meu lado, na minha pele. Talvez você fizesse o mesmo. E ficaríamos assim, mentindo as olheiras de noite mal dormida com desculpas esfarrapadas no outro dia...
Não. Eu parei. Não, não podia adivinhar nada, nem seu jeito de andar, nem se você realmente sorriria e me beijaria a qualquer hora. Não conseguia nem adivinhar o seu sorriso. Não conseguia trazer nada dessas imagens difusas para a realidade, porque não sabia como você andava, não sabia como você se sentava – se cruzaria as pernas, se deixaria seu corpo inclinado... ou qualquer detalhe ridiculamente insignificante para qualquer um, menos para mim – ou até mesmo qualquer coisa minúscula que era um mundo a descobrir - como como você seguraria o pote do sorvete, ou como era, realmente, seu sorriso, ou qual era, exatamente, a nossa diferença de altura e o quanto isso iria ter que fazer você ou eu ficar na ponta dos pés ou abaixar um pouco a cabeça. Essas coisas que só são importantes para quem ama, que a gente não comenta com ninguém, mas não deixa de perceber. Eu não poderia saber, eu nunca poderia adivinhar. Porque jamais tinha te tido em meus braços. Nós ficamos tão distantes, entre duas telas e milhares de sequencias binárias, palavras, fotos, msn, mensagens, ligações, cartas, presentes por correio. Nunca olhos, nunca mãos, nunca respiração. Nos amamos sem nos termos, e, ainda sim, amamos fieis um ao outro. Centenas de quilômetros entre minhas mãos e as tuas – meus braços não eram tão longos para poder te alcançar assim.
Como eu podia amar alguém que nunca vi, sempre me perguntavam. Como não, eu dizia. E milhares de aviões partiam daí. E milhares de aviões pousavam aqui. E você não estava em nenhum deles. E eu não podia chegar no aeroporto e invadir qualquer aeronave que anunciasse sua cidade, mesmo sem saber se você estaria me esperando do outro lado do mundo. Acho que estivemos sempre esperando um pelo outro. Há muitos anos. Como se vivêssemos em tempos diferentes, sem nunca podermos nos alcançar. Como se fossemos almas sem corpo, não tínhamos nada a sentir um do outro, apenas esse vazio e esse amor acima da vida. A tela do computador também cria barreiras entre as pessoas, ao mesmo tempo que tenta nos provar que não existem barreiras nenhuma. Nós podíamos nos falar, nós podíamos nos amar - entre milhares de milhas, ainda sim estávamos dividindo um mesmo tempo, um mesmo segundo. E, assim, estamos juntos de alguma forma. Entre abismos no espaço. E agora isso tinha se tornado insuportável para nós dois. Mais para você do que para mim. Por isso, dissemos adeus.
“Um dia, três outonos.”
Quê, perguntou minha irmã. Nada, disse eu. Sorri, me despertando daquele transe que vivia paralelamente a realidade, na sua própria realidade distante e intocável. E repeti baixo: um dia, três outonos. Era um ditado chinês, significa que um dia sem alguém, é como se três outonos tivessem passado. Sentei na sorveteria e pedi um sorvete de morango.