Revivescências

A Leandro que meu coração chama Gabriel.

Veio aparecendo numa curva do tempo, com olhos de aconchego e sentou-se às margens da solidão da anciã. Era um jovem. Ela não conseguia vê-lo inteiro, mas os olhos eram bem definidos, e um sorriso tornava-se luz inebriante.

A solidão da mulher embriagou-se no aconchego do olhar e na luz do sorriso. Sentados à beira da vida, contemplavam paisagens antigas. A casa e a escola abriam as portas e as janelas para um jardim, onde havia um canteiro de miosótis em forma de coração, um coração azul cercado de verde.

Atravessaram a rua estreita. Ladeavam-na alguns jasmineiros. Inebriaram-se no perfume antigo. Chegaram ao milharal. O silêncio dava mais claridade às memórias, mas de súbito, revivesceram as gargalhadas das crianças, em meio ao barulho que o pai e os agregados faziam para espantar os gafanhotos. Era uma linda manhã de sol, que os insetos-praga transformaram numa festa inusitada na verde quietude da roça.

A carroça atravessava o rio, resvalando rodas e cascos do cavalo nas pedras. Carregado, o rosto dos pais. Viu o irmão menor, doente. Fora sempre assim o irmão, frágil. Uma cena fez-se rotina: a mãe e a colher de remédio, bolinhas brancas diluídas no leite. Era preciso recuperar as perninhas do menino, paradas de andar.

No quintal da casa, revivesceu a imagem da tia, moça bonita a quem fora ordenado romper com o noivo, para entregar os sonhos de amor ao homem maduro, recém-chegado, com aparências de prosperidade. Passados anos, a tia enviuvada, o noivo antigo voltou para reatar os fios da mocidade, em amoroso envelhecer.

Mas o casamento fizera deserto a alma da noiva antiga, e não houve ternura capaz de novo encantamento. Da moça de outrora restou apenas o retrato emoldurado de saudade e guardado entre as páginas do Missal, marcando o domingo em que tinham sido trocadas as alianças de noivado.

Sentados à beira da vida, a anciã e o rapaz, até aí, tinham ficado em silêncio, na contemplação das memórias. Mas chegou o momento da palavra. E o que ele dizia, ela escutava, sem retorno ao presente. Era melodia aquela voz de rapaz quase menino, a evocar ressonâncias do passado. Insinuou que ela estava bonita, elogiou-lhe os cabelos brancos, confessou que sabia a história de cada uma das rugas. Não era uma fala estranha, era apenas distante, vaga, quase um acalanto para uma mulher velha na precariedade da audição.

Se ao menos pudesse vê-lo com nitidez,talvez então reconhecesse o dono da fala. Mas os olhos, também ameaçados pelos anos, só viam com nitidez o olhar-aconchego e o sorriso-luz surgido de um tempo de sempre. Do que não fosse olhos e sorrisos, via apenas tênues contornos.

E foi então que, sem pressa, o rapaz levantou-se sem despedida. Sussurrou apenas um “até mais”, num murmúrio em que ela, inebriada de tristeza e saudade, reconheceu a voz de Gabriel.

Mas a estrada e a curva estavam ali, como um abismo ...

Maria Felomena Souza Espíndola – Novembro /2009

IMariazinha
Enviado por IMariazinha em 05/04/2012
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