Um apaixonado casal
Toda noite ele os ouvia. Era uma voz de homem, outra de mulher. Eram duas, mas muitas vezes viravam uma só: uma risada, uma conversa, um suspiro. Daí ele deduziu serem um casal. E um apaixonado casal. Sim, deles vinham pedacinhos sonoros de paixão, de romance, de brincadeira, sons cheios da leveza de quem descobriu o segredo. Não um segredo qualquer, mas aquele que só os que estão perdidamente misturados com uma outra pessoa sabem qual é. E por isso ele, vizinho a pouco mudado para ali, do seu apartamento ouvia o casal e sentia algo de sublime naqueles dois.
Às vezes, o barulho incomodava seu sono. Mas nunca teve coragem de reclamar com eles ou com a síndica. Seria falsidade. Afinal, quantas vezes escutara os dois e rira emociado frente ao sentimento que desconhecia por completo, rira da graça que eram aquelas confissões e diálogos enamorados. Ria sem maldade ou escárnio. Sentia inveja daquela pieguice permitida a quem se ama. Ria desejando que alguém um dia risse assim dele e de sua namorada - essa ainda na fase dos sonhos.
E se ele escutava tanto não era por ser um vizinho xereta dado a indiscrições. A culpa era toda do próprio apartamento. Se mudara a pouco para ali. Aluguel barato, o prédio era velho. Localizado no centro da cidade. Já carregava a desvalorização imobiliária e foi isso que o atraiu para lá. E quando se mudou não deu pelas paredes. Eram finas e feitas de um material estranho que mais lembrava gesso hospitalar do que um consistente cimento. Em nada surpreendia que pudesse escutar tudo que se passava com seus vizinhos.
Se arrependia um tanto por esse descuido; devia ter dado atenção a seus instintos que o alertavam para aqueles corredores escuros infinitamente repintados – e ainda assim descascados e com infiltrações -, na certa um sinal de que os apartamentos não seriam muito melhores por debaixo das aparências. Mas o aluguel era barato, muito abaixo da média, e isso parecia fator de incondicional compensação. No mais, o estilo arquitetônico de décadas passadas conferia um ar nostálgico ao ambiente. Quantas pessoas passaram por aqui, viveram aqui?, pensava ele vagamente.
Não era, pois, um vizinho que escostava orelhas nas paredes. Ainda assim, inevitalmente, foi conhecendo os trejeitos de seus vizinhos apaixonados. Deliciou-se principalmente com suas brincadeiros e joguinhos favoritos, como fingirem-se algum casal famoso dos cinemas, literatura ou mesmo da mitologia. Disso vinham os mais cotados: Bonnie e Clyde, Romeu e Julieta, e Tristão e Isolda. Ou ainda, já noutra diversão, as cócegas que ele ia fazendo nela, na certa aumentando a intensidade, até que ela, entre risos contraditórios e esbaforidos, pedia para que ele parasse. Parecia tudo um tanto bobo para quem escutava. E ele, o vizinho ali posto por acidente, também achava tudo um tanto bobo quando parava para pensar sobre essas manias. Mas, afinal, o que é o amor senão fazer coisas das quais as pessoas que estão de fora juram nunca fazer igual, e isso só até se apaixonarem e repetirem todas as bobeiras antes discriminadas?
Ele também entendeu logo o significado de umas risadas mais baixinhas, mais abafadas. Então os sons viriam em um outro nível, suave mas bem mais carregado; transformariam-se em rumores ofegantes por uns instantes, algo ritmado, algo perpetuamente interrompido, até que um silêncio transpirado em paixão baixava sobre os dois. Ele ouvia, depois parou de ouvir, intencionalmente tapando os ouvidos ou aumentando o som da TV. Aquilo já era invadir demais a privacidade do casal.
Porém os dois também travavam brigas horrendas. E eram periódicas, feitas com intervalos quase que regulares. E o vizinho, se fosse um juiz, não saberia a quem dar a razão. Era evidente que todas as ofensas e amarguras eram filhos rebeldes daquela relação tão apaixonada. Ela cismava com os amigos com quem ele vivia saindo. Ele enciumava-se todo pelo colega de trabalho dela, que vivia telefonando fora do horário de serviço. Surgiam então despropérios e um amplo uso das figuras de linguagem: metáforas criativas, hipérboles intensas, eufemismos irônicos. O final da celeuma só vinha com uma porta batida violentamente e um choro logo a seguir. Ele sempre ia embora e a deixava em soluçõs tão doloridos que o vizinho ali do lado, escutando tudo, também ficava com o coração apertado pensando que dessa vez ele cumpriria a promessa de nunca mais voltar; coração duplamente apertado quando entendia que o choro dela era porque ela também pensava que dessa vez a promessa seria cumprida.
Mas ele voltava. Depois de dias de silêncio ele voltava. Não se ouvia nada vindo do apartamento vizinho, mas ele voltava. E então, pulando qualquer conversa de reconciliação, o casal voltava à normalidade de sempre: brincadeiras, joguinhos, risos, Romeu e sua Julieta. E o vizinho dormia um pouco mais tranquilo nesses dias: eles faziam as pazes num passe de mágica, como se nunca houvessem discutido.
Quando o vizinho reparou que seu sono era mais leve em tais ocasiões, reparou também na alegria íntima, de etérea e suave consistência, do despertar de certas manhãs. Não todas manhãs, só algumas. Somente naquelas em que tinha de ir trabalhar e quando pisava no corredor, ou mesmo antes, ao abrir a porta do apartamento, era tomado por um perfume longo, floral, feminino. Vinha do casal e só podia ser o perfume dela, pensava. Um dia, como para tirar a dúvida sobre a origem do aroma que lhe botava sorridente, o seguiu e deu com o nariz na porta de seus vizinhos. Sim, era mesmo o perfume dela. Também sentia-se contaminado por qualquer coisa de espectral quando entrava no elevador e um cheiro forte e marcante, em algo amadeirado, lhe tomava uma segunda vez. Suspeitava ser o perfume dele, talvez a loção pós-barba. E tudo misturava-se, símbolo sensorial máximo da união daqueles dois. E só não era mais perfeita aquela recepção olfativa quase diária pois um suspeito cheiro, em algo podre, como de coisa morta ou gás de cozinha, impregnava periódicamente aquele velho corredor tão dado a mofos, bolores e outras desagradáveis consequências da umidade.
Mas o vizinho ficou incomodado com essa situação. Já sentia-se tão íntimo dos dois mas nunca os vira. Já morava ali há meses, os escutava quase diariamente, dividia com eles tanto que eles sequer imaginavam e, ainda assim, típicos vizinhos de uma cidade grande morando num poleiro de concreto qualquer, não se conheciam. Ele não os conhecia em nada. Rosto, nome, idade, não sabia. Em que trabalhavam? Eram namorados ou casados? Já teriam filhos, talvez? Por isso, ao começar de uma semana, pôs-se resoluto, vou falar com eles!
Com curiosidade foi até a porta. Seus punhos ansiosos vacilaram um instante. Deu-se conta que fantasiara tanto como eram eles que, de repente, poderia ter um choque caso fossem muito distantes da imagem projetada em seu íntimo. Lutando para não recuar, bateu três vezes. Coração acelerado ante à expectativa. Quando ninguém atendeu, bateu de novo. E de novo. E mais uma vez, até que desistiu. Deviam ter saído.
Tentou novamente no dia seguinte, no mesmo horário. Sem sucesso. No outro dia, um pouco mais cedo, bateu. E nada. Num outro dia foi de noite, bateu algumas vezes. E nada novamente. E ele já tinha várias desculpas para que aquela súbita aproximação não parecesse suspeita; pediria açúcar, perguntaria do sinal da TV que andava ruim, questionaria se por acaso eles não saberiam de alguém a quem pudesse chamar para consertar a máquina de lavar roupas. Mas todas as desculpas ficaram apenas engatilhadas. A porta nunca se abriu. E desde que tentara falar com eles um completo silêncio reinava no apartamento. Teriam viajado ou o que?
Com um incipiente sentimento de contrariedade, foi atrás da síndica. Bateu na porta dela e, sem rodeios, perguntou pelos vizinhos. Os descreveu como um casalzinho apaixonado, um tanto barulhento, mas nada que incomode, não é isso, são bem comportados até. A síndica ouviu e fez cara de quem não entendeu. Quais vizinhos?, perguntou. Ele voltou a descrevê-los enquanto casal, provavelmente novos e... ora!, só havia o apartamento deles e o seu próprio ocupados naquele andar! Como diabos a síndica não sabia de quem ele falava? Perguntou se ela não saberia se teriam viajado, talvez férias, doença na família. A síndica suspirou fundo, olhou-o piedosamente como quem olha um louco, e pediu que aguardasse um instante, retornando então ao interior do seu apartamento. Da porta, ele ouviu o barulho de papéis remexidos, e foi quando a síndica, uma senhora velha e enrugada, voltou com um recorte em mãos. Deu o recorte para ele e insistiu que não sabia de quem ele falava, todos os apartamento lá estavam vagos, era sempre um esforço em vão tentar achar alguém que morasse por ali. E fechou a porta como quem não suportaria prolongar a conversa.
O prévio sentimento de contrariedade aflorou com força. Sentia-se contrariado e ofendido. Ser tratado daquele jeito, onde já se viu. Queriam enganá-lo ou o que? Se divertiam a suas custas? Será que o casal estava envolvido? Claro!, pensou. Devem ser amigos da síndica e estão tirando uma com a cara do vizinho ainda novato. Pisando bravo, cruzou aqueles escuros e velhos e descascados corredores até voltar para seu apartamento. E só quando entrou é que lembrou do recorte que a síndica lhe dera. O contato com os dedos denunciavam um papel já velho. E realmente era: o recorte se tratava de um pedaço de jornal datado de seis anos atrás. Foi quando ele, já mais calmo, distinguiu o título de uma reportagem. E ao fazer isso um frio lhe correu a espinha, prevendo o que estava prestes a ler. Sentiu que precisava sentar, pois as pernas lhe fugiam completamente. Deixou-se cair na poltrona e pôs-se a ler.
“Jovem comete suicídio após briga com namorado”, dizia o título. Era narrado sucintamente que naquele prédio, no exato apartamento ao lado, uma jovem havia cometido suicídio. Testemunhas ouviram uma briga intensa protagonizada por ela e seu namorado, após o que o namorado a deixou. As mesmas testemunhas relataram que a garota chorou por horas, até que veio o silêncio. Foi quando sentiram, no corredor, o cheiro de gás. Ao arrombarem a porta, encontraram a garota com a cabeça dentro do fogão. No fim da reportagem mencionava-se ainda que o namorado foi encontrado no dia seguinte. Trazia um ferimento à bala na cabeça, o que também indicava possível suicídio. A polícia ainda investigava. Nem amigos nem família diziam entender aquela tragédia, pois era evidente que muito se amavam...
Foi difícil manter o pedaço do jornal em mãos; elas tremiam. Tudo a sua volta perdia o foco e rodopiava. Aquilo não era possível, não podia ser possível!, dizia em seu íntimo. Sentiu que afundava cada vez mais para dentro da poltrona, involuntariamente encolhendo os membros, contraindo o rosto já um tanto apavorado. E de repente, num sobressalto, ouviu uma risada. A velha e conhecida risada. Eram eles. Estavam de volta. Riam, brincavam, conversavam, fingiam ser um casal famoso. Transpiravam leveza, paixão, e faziam-se sentir pelos seus perfumes, faziam-se ouvir com suas vozes vindas de longe, e ainda de tão perto. Viviam o amor de quem não sabe de remorsos nem da própria perdição. E o homem, preso à poltrona, suando gelidamente, esperou até que o silêncio voltasse, o que só aconteceu horas depois. E então começou a fazer as malas.