Estranhos

Eu poderia ter mudado tudo. Mas não o fiz. E agora eu estou lhe escrevendo uma carta. Quem diria! Mas fluiu demais, sabe? Saiu de dentro pra fora; e eu só queria é lhe dizer que você foi a experiência mais insuportável e maravilhosa da minha vida. No começo eu pensei que você seria aquela pessoa chata, e foi. E foi malvada demais de me deixar sentir essa ternura toda. De me fazer parecer um estranho pra tudo. E de verdade? Éramos estranhos desde o começo e ninguém teve medo dessa aproximação. Você pegou na minha mão, foi se sentar comigo quando eu achava que nada mais fazia sentido. Caramba, eu fiquei estranho, ninguém esperava. Isso comprova a teoria de que fomos extremamente estranhos. Atípicos. Você veio com aquele olhar de quem tinha esperança num monte de coisas e me pegou na hora em que eu pensava sobre todas as coisas perdidas e incompletas. E te aceitei por isso. Na verdade, eu também insisti pra que você ficasse. Você era uma estranha, mas tinha o cheiro tão gostoso. E depois o abraço, o beijo, o calor, a cama.

Nem te conhecia e, me desculpa, mas isso era o melhor, porque ninguém tinha culpa. Estranhos são sinceros quando vão pra cama. Você poderia ter mentido seu nome, se quisesse. Mas não o fez. Descobri isso depois, descobri que você foi sincera. Vi sua foto e tinha um nome nela.

Naquela altura, quando te conheci, a idéia de me relacionar com uma mulher ia muito longe do que eu imaginava. Eu poderia imaginar qualquer coisa, mas não você. E eu era impenetrável, estava totalmente impermeável. Era pra ser um tempo de libido. E não dava pra prever nada. Você apareceu. Eu sei que na sua parte da história foi eu quem aparecei do nada, no meio do nada em que vivíamos. Mas essa é a minha parte da história e você vai ter que se contentar com os fatos, porque, no mais, hoje eu sou o mais perdido.

Eu estava cansado até você aparecer. E eu pensei várias vezes em te ligar durante a noite, durante a insônia e te recitar “I’m so tired”, dos Beatles : “I'd give you everything I've got for a little peace of mind”. Só pra te irritar, porque você ficava pra cima e pra baixo exibindo aquele disco duplo do White Album.

Éramos também estranhos, porque acreditávamos que havíamos nascido na época errada e havíamos perdido tudo pelo que valia a pena viver. A gente inventava o que queria, essa era a verdade. E eu me preocupava com você, como nunca antes. No meio de tudo, nada importava; e você foi também a experiência mais dolorosa da minha vida. Nessa “estranheza” toda te encontrei triste por ai, e não dava pra ser diferente. Você caiu em mim. E foi uma queda boa. Você lia e escutava umas músicas legais e eu tinha o hábito de dissertar sobre minha dificuldade de escrever. E você dizia que eu fumava demais, e eu te chamava de louca demais. Você, certa vez, me disse algo sobre remar o nosso barco. Disse que era pra eu largar o remo e deixar que você guiasse. Mas no fundo você sabia que alguém estava de passagem. Não éramos fixos ali, embora a cidade fosse linda. Só restava saber quem partiria primeiro. Adiávamos todas as partidas, não havia porque ir. Éramos uma dupla de lascar juntos. Ninguém era capaz de se atrever a ir embora.

Terminávamos todas as brigas na cama. O grandioso é que sempre tínhamos a sensação de estranhos. Você foi perfeita e tinha “todas as cores” – eu sei que sempre cito o Chico, mas é que me ocorreu aqui e pareceu pertinente. Éramos bons nos lençóis, e eu até te achava uma desvairada, tarada. Lembra quando você apareceu daquela vez com os cabelos vermelhos? Me disse “vou fazer você se perder nesse pôr-do-sol.”. Nessa bagunça e confusão eu ainda tenho algumas peças de roupas suas. Tem seu cheio. Dava até um poema.

Você foi insuportável porque vivia me dizendo que eu pensava que você queria fazer sexo com todo homem que conversava. E me dizia que eu não fazia com você, às vezes, durante a noite porque eu bebia demais. Tudo bem, eu era ciumento, mas você era neurótica. E ai? Você me seguia vezenquando. Eu bem sei! Naquela vez que descobri seus planos eu te deixei lá sozinha na praça, no frio, e era agosto. Parti o carro e você ficou pra trás. Você só não sabia que naquela hora eu olhei pelo retrovisor e te vi lá, recolhida pelos braços de frio e pensei, “como eu amo essa mulher.” Eu me arrependi de não ter voltado. Mas só porque era agosto, em outros casos você merecia mesmo. Eu também fui um filho da mãe quando tudo que você queria era minha companhia e eu ficava lá, inutilmente, tentando escrever qualquer coisa e enchendo a cara de uísque. Eu sei que eu te deixava falando sozinha e ia longe ao que estava na minha cabeça. Não dava pra construir nada sozinho.

No final você tava ácida, e ainda dói demais daquela vez quando disse: “eu conheço suas palavras. Você nunca vai ver de frente, sempre vai ter alguma coisa errada, e você nunca sabe. Cheio de 'não sei'. Você é bom demais pra chutar o balde. E eu só queria que insistisse, mas vai continuar a tentar limpar a sua barra.” E você saiu. Saiu, mas eu sei que naquela hora passou todo aquele filme de todo nosso tempo. Não foi muito tempo, mas foi algo. E era amor demais. Não posso acreditar que você não me amasse, eu sei que amava, eu sentia. Mas você com toda sutilidade se virou e se mandou. Eu fiquei com a casa. E você não voltou. Nunca mais. Por mais que eu esperasse. Doeu pra nós, mas a gente sempre soube que alguém iria partir, cedo ou tarde.

E, sabe, pra te falar a verdade, eu também me mandei. É claro que eu te esperei primeiro. Mas a casa vazia era um tédio. Nessa porrada de tempo eu levei todas as mulheres que você imaginar pra lá pra ver se te encontrava. Nenhuma era você e muito menos cheirava você. Me mandei. Ouvi algumas vezes, de conhecidos, que você tava trabalhando numa livraria não tão longe dali. Segui um monte de rastros, e onde quer que eu fosse quase chegava perto de você, mas não encontrava. Na livraria me disseram que você era louca e tinha sumido do trabalho sem dar notícias. Cada um que te via me dava uma pista. Mas depois desse tempo eu nunca te achei. Eu só tinha um varal de coisas estendidas pela vida, sobre nós dois. A maioria já seca. Tinha também uma saudade e um amor enorme.

Parei e pensei: a gente não sabia nada um da vida do outro. Você seria capaz de ter mentido pra mim esse tempo todo? O que mais vai ficar incompleto pela vida a fora? Eu estava fazendo da minha vida um conto, mas eu não sabia da exatidão da realidade, da verdade. Eu tava parecendo um puto metalinguístico. Em todo esse tempo eu incorporei tudo que tínhamos, até o que era sujo. E se essa dor tivesse idade ela seria a minha maior companheira anciã. Ainda mais agora.

E de repente eu te encontrei agora. Colhi todas as flores do nosso jardim, toda roupa do nosso varal da vida e vim lhe devolver. Descobri, também, que você não mentia pra mim. Era sincera. Não queria descobrir que seu cheiro de paz era falso. Li seu nome – é real- e vi sua foto junto. Você não me parece feliz nessa foto. Você era triste, mas não era pra ser por aqui. Te escrevi essa carta aqui mesmo, ajoelhado. Não sei como fazer isso, nunca fui bom nisso, mas é minha forma de prece. Eu não iria conseguir te dizer, por mais que eu quisesse. Mas como eu queria você aqui. Como eu queria te levar pra casa, queria rebobinar tudo e te levar comigo naquela noite de agosto. Você foi a minha estranha. E de forma estranha eu te amei e te reencontrei. E você aqui, sozinha, nada além disso que está ai, deitada, tem como companheira a minha última gota. E minha saudade. Bendita você que dormirá enquanto há dor pela vida. Te escrevo: “Estranha, você se confundiu na própria paz do seu cheiro. Em paz.”.

L Figueiredo
Enviado por L Figueiredo em 03/08/2011
Reeditado em 22/11/2012
Código do texto: T3137915
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