O CADERNO RELICÁRIO

Quando Renata completou quinze anos e vivia às voltas com suas venturas e desventuras do primeiro amor, sua mãe, dona Eliza, querendo tornar-se definitivamente a melhor amiga da filha caçula, incluindo aí a troca de confidências amorosas exatamente como qualquer “melhor amiga” costuma fazer, resolveu compartilhar seu segredo guardado há anos...

O segredo era um lindo caderno de recordações, chamado por dona Eliza de “Relicário”. Ele era uma peça antiga, do tipo que não se encontra mais em lugar nenhum, com capa de madeira e veludo, a figura de uma moça incrustada na madeira, e folhas amareladas pelo tempo com lindas mensagens, poesias e fotos de antigos amigos. Logo ao abrir o caderno, na primeira página, estava uma linda dedicatória daquele, que com amor, havia ofertado o presente à Eliza. Seu nome era Renato.

- Renato? É por isso que meu nome é Renata? – perguntou imediatamente a mocinha.

- Exatamente, minha filha. Seu nome é uma homenagem à lembrança deste homem que muito amei e jamais esqueci.

Então Renata encaixou as peças do quebra-cabeças e entendeu o porquê do seu nome e de seus irmãos serem todos parecidos: Regina, Regiane, Reinaldo, Rebeca e ela, Renata.

- E o pai sabe de tudo isso? Do relicário, dos nomes...?

- Não sabe e nem vai saber! Esse agora é NOSSO segredo! – disse a mãe, dona Eliza. E depois se pôs a contar à filha toda a história de amor entre ela e Renato, acontecida em 1955, quando ela era apenas uma mocinha de quinze anos de idade, exatamente como sua filha agora.

“Renato trabalhava como vendedor, viajava de cidade em cidade, e foi assim, numa de suas visitas à minha cidade no interior do Paraná, que eu o conheci. Na época eu era chamada de “vassourinha”, pois namorava todos os rapazes da cidade, não escapava um! E é claro que também não deixei Renato escapar...” – contou Eliza, com um misto de vergonha e alegria pelas lembranças das ‘peripécias’ do passado. Mas se apressou em deixar bem claro que apesar de ter sido considerada a moça mais namoradeira da época na cidade, o namoro naquele tempo era marcado por uma inocência muito bonita, e o casal se limitava a conversar e pegar na mão. “Se beijasse, tinha que casar!” – ressaltou dona Eliza em seu relato.

“Renato me deu este caderno de recordações de presente no dia dos namorados, 12 de junho de 1955. Ele era uma pessoa muito alegre, muito brincalhão! Uma vez fui para a estação de trem esperá-lo chegar de viagem. O trem chegou, todos desceram e nada dele. Fiquei muito triste por ele não ter vindo, conforme havia avisado que viria. O trem então já estava saindo da estação, já estava em movimento; quando de repente ele saltou do último vagão, rindo muito da peça que havia me pregado! Sabe, ele não era bonito, mas era esse bom humor o que mais me encantava nele!

“Nós namoramos por seis meses, e neste tempo eu o vi no máximo cinco ou seis vezes – só quando ele conseguia vir a trabalho para minha cidade. E devido a isso, sentindo-me muito insegura, e pela primeira vez de fato apaixonada, comecei a imaginar se ele não seria casado, se não teria mulher e filhos vivendo em outra cidade... Fantasiei isso e resolvi colocá-lo à prova: enviei-lhe uma carta fixando uma data, e ele deveria vir me visitar até aquela data. Se ele não viesse, isso era prova suficiente para mim de que deveria haver uma esposa impedindo-o de vir, e que ele só vinha quando conseguia ludibriar a mulher!

“Chegou enfim a data marcada, e nem uma notícia dele. Fui então, logo pela manhã, no posto do correio e postei nova carta terminando tudo com ele! Era o fim de nossa história! Ele nunca mais me enganaria! Ele que fosse cuidar de sua esposa e filhos...

“Era então hora do almoço e meu irmão chegou com notícias de Renato, explicando porque ele não tinha vindo até a data marcada, mas avisando que já estava a caminho. Nem almocei direito! Corri ao correio e tentei reaver a carta que havia postado pela manhã... mas não tive êxito. Escrevi então nova carta contando o mal entendido, desculpando-me... Mas quando Renato recebeu a primeira carta onde eu terminava nosso relacionamento e dizia para ele nunca mais aparecer em minha vida, ele ficou muito magoado e não quis nem saber da segunda carta com meu pedido de desculpas. Meu irmão ainda foi atrás dele em outra cidade, conversou com ele, intercedeu a meu favor... mas Renato estava decidido e me mandou a seguinte mensagem: “Posso ficar solteiro para o resto da vida, mas com Eliza eu não me caso!”

“Assim, desiludida do amor, resolvi que me casaria com o primeiro homem que passasse em minha frente – e assim eu fiz e casei-me com seu pai! Mas guardo até hoje este caderno Relicário e a lembrança deste amor... juntamente com um imenso arrependimento por minha atitude impulsiva.”

Eliza nunca foi feliz em seu casamento, e o mesmo acabou em uma separação um ano depois de revelar essa história à sua filha – que conforme pedido, e em respeito a seu pai, sempre guardou o segredo.

Apesar do esposo de Eliza ter sido sempre um homem maravilhoso, amoroso, divertido, correto, trabalhador, honesto, ótimo pai e marido... ele nunca conseguia estar à altura do homem que Eliza idealizava em sua mente: Renato. Ela passou a vida achando que teria sido mais feliz casada com Renato, e assim, nunca valorizou o homem maravilhoso que estava ao seu lado.

Por outro lado, ela não imaginava que seu esposo também “sonhava” com uma ex-noiva, uma moça tão linda que segundo ele até parecia uma boneca, e com quem ele quase se casara... mas essa é uma outra história que ele também contou em segredo à sua filha, e em outro momento eu escrevo por aqui...

O tempo passou e Eliza, separada, nunca mais quis se relacionar com nenhum outro homem. Após treze anos de separação ela tornou-se viúva, seu marido faleceu deixando imensas saudades em seus filhos , e a lembrança que melhor pai não poderiam ter tido!

Eliza já estava então com setenta anos. E ainda guardarva o caderno Relicário, recebido cinqüenta e cinco anos antes. E foi então que ela o viu... Renato apareceu em uma reportagem em um programa de TV. Antes que seu nome aparecesse no vídeo, ela o reconheceu! Ele ainda estava vivo e morando em um bairro não muito distante... aposentado e com setenta e oito anos de idade.

Eliza ficou muito feliz, e já que era viúva, achou que não seria falta de respeito contar a todos sobre o segredo que até então compartilhava apenas com a filha caçula. Contou a todos os filhos e mostrou o caderno Relicário, contou também o porquê da escolha dos nomes dos filhos e falou a todos para buscar na Internet a reportagem e ver como era o homem por quem um dia ela havia se apaixonado.

Sabendo que sua mãe, Eliza, passou a vida inteira sonhando em um dia reencontrar Renato, a filha caçula, Renata, agora já com mais de trinta anos, resolveu fazer uso dos benefícios da tecnologia e levantar informações deste senhor via Internet. É incrível como é possível levantar toda a ficha de uma pessoa atualmente, mesmo sem ser detetive profissional! (risos). Assim Renata descobriu o endereço e o telefone do Sr Renato. Descobriu também a data em que ele se casou (apenas nove anos depois do namoro com Eliza), o nome da esposa e até seu apelido, o nome dos quatro filhos, data de nascimento de cada um deles, profissão de dois deles, nome dos netos, o perfil de uma das filhas dele em uma rede social, acesso às fotos de toda a família, principalmente do “vozinho com os netinhos”.

Eliza ficou extremamente feliz, querendo marcar encontro com ele em um local público apenas para conversar, lembrar os bons momentos do passado, contar como foi a vida de um e de outro, mostrar que guardara o caderno Relicário... mas resolveu cancelar todos os seus planos, afinal, Renato não é viúvo, como ela. Sua esposa está viva e em respeito a essa mulher e a família que Renato construiu com ela, Eliza pretende calar seus sentimentos.

Assim, Renato NUNCA vai saber o quanto foi importante na vida de uma pessoa... nunca vai saber que um presente que deu há cinqüenta e cinco anos atrás está guardado até hoje... nunca vai saber que marcou tanto uma pessoa ao ponto dela colocar o nome de todos os seus filhos em homenagem e lembrança dele...

Por isso é preciso saber viver intensamente, pois na vida nunca sabemos se o instante atual não será lembrado para sempre por alguém a quem marcamos... mesmo sem saber...

Finalizando essa história, Sra Eliza tinha o desejo de que no dia que morresse o caderno Relicário acompanhasse seu corpo no caixão, para levar com ela ao túmulo a lembrança e registro desta história de amor. Mas agora concordou que o mesmo um dia pertencerá à sua filha caçula Renata, que saberá guardar esta peça de infinito valor sentimental como a história viva de um amor.

****** Essa história é completamente real, com exceção dos nomes, todos trocados para preservar identidades. ******