AMOR ESTRANHO AMOR

Ela apareceu com o boneco na hora do jantar. A família estava toda reunida quando Kátia sentou à mesa com o João Bobo ao lado. Pensaram ser uma espécie de gozação. Afinal, a Kátia era a contadora oficial de piadas da família. Instalado o João Bobo ao seu lado, ela anunciou:

- Este é meu novo namorado. João, apresento-lhe minha família.

Todo mundo riu. A Kátia não tinha mais o que inventar mesmo. Apesar de todo o jantar desenrolar normalmente, era um pouco estranho ver uma mulher de trinta anos fazendo de conta que estava batendo altos papos com um boneco de plástico e cheio de ar, que se deslocava para frente e para trás ao menor toque. No final, a mãe da Kátia levantou - secretamente - a hipótese de que a filha mais velha estava louca ou querendo tirar sarro da cara de todo mundo.

Na hora de dormir, o pai, intrigado, chamou a esposa.

- Olha ali.

Escondidos, olhando pelo vão da porta, eles observaram tensos, Kátia ajeitando o João Bobo na sua cama, devidamente coberto com um edredom. Eles iriam dormir juntos!

No outro dia, sábado de sol, mais surpresas. Kátia pegou sua bicicleta, ajeitou o João Bobo no cestinho da frente e foi para o parque dar uma volta com o seu “gatinho”, como ela fazia questão de dizer em alto e bom som. Da janela, os pais não acreditaram na cena. Os carinhos, gestos e palavras amorosas se repetiram durante todo o final de semana. Kátia se manteve totalmente dedicada ao seu mais novo namorado. Quando um dos irmãos perguntou sobre o Claudinho, ela respondeu beijando o João Bobo na boca:

- Eu o troquei pelo João.

A segunda-feira foi uma repetição do final de semana. Café da manhã com a família e o boneco. O irmão mais novo, exasperado, chegou a oferecer um suco de laranja para o cunhado. Kátia respondeu por ele:

- Ele prefere suco de uva.

O pior aconteceu quando ela pôs uma gravata do pai no pescoço do João Bobo e pegou a bolsa. Estupefato, o pai perguntou:

- Aonde você vai levar esta aberração?!

Muito calma, Kátia respondeu:

- Vou levar seu genro para a loja. Não contei para vocês? Agora eu e o João, além de sermos namorados, também somos sócios!

E lá se foi a Kátia com o namorido trabalhar. A mãe, depois de tomar várias xícaras de chá calmante, deu o ultimato:

- Se ela continuar com esta loucura até amanhã, eu juro que mando internar.

Antes do meio dia foi a vez do Claudinho ligar, em choque:

- Eu fui tentar uma reconciliação com a Kátia na loja agora de manhã. Será que alguém pode me explicar o que é aquela coisa sentada na mesa ao lado dela?

Crise na família. Kátia tinha pirado. Alguns membros da família achavam que era uma provocação bem humorada para tirar o Claudinho do sério. Bom, isto a Kátia já tinha conseguido. Por que então aquela situação patética ainda se arrastava?

Os funcionários da loja primeiro fizeram que não repararam. Isto durou meia hora. Depois, os comentários começaram a se intensificar. Na sexta-feira, a maioria já tinha pedido demissão. Ninguém suportou aturar o João Bobo de chefe. Mas de qualquer forma, era nítido que Kátia estava se sentindo imensamente feliz. Aliás, era unânime afirmar que nunca ninguém a vira com o sorriso tão escancarado. Já tinha gente comentando que certamente o João Bobo era bem muito bem dotado. E as amigas da Kátia, refeitas do susto, já pensavam, também, em adquirir um boneco da mesma espécie. Quem sabe ali não estava a solução de todos os problemas delas?

A felicidade durou até o domingo. Kátia acordou sentindo-se estranhamente vazia. Na verdade, o que estava vazio era o boneco ao seu lado. Por algum motivo misterioso e perverso, o João Bobo se esvaziou durante a noite. Quando a Kátia abriu os olhos, o boneco estava não somente murcho. Ele era um pedaço de plástico frio atirado ao lado dela. Mas o sorrisão continuava ali.

A casa acordou com o berro desesperado dela. Alguém tinha que salvar seu amor! Os irmãos, assustados com as reações da irmã, imediatamente se puseram a tentar encher de ar o boneco pelo ventil. Era como se fosse praticamente um boca a boca, com a diferença que o ar entrava por trás. Mas o furo por onde o ar escapou era milimétrico, não adiantava tentar encher o coitadinho. Puseram durex, cola, mas o ar escapava do mesmo jeito. Depois de uma hora tentando ressuscitar o boneco, os irmãos se deram por vencidos. O cunhado já era.

O velório foi ali mesmo, na sala de estar da mãe da Kátia. As amigas, penalizadas, vieram prestar condolências para a amiga viúva. Kátia, com o olhar perdido, perguntava-se como não fôra capaz de proteger seu amado. Que fatalidade...

Claudinho também compareceu assim que soube do passamento do João Bobo. Ele queria ver com seus próprios olhos se o seu rival estava mesmo morto. E estava! Murchinho, vazio, um nada. Exatamente como ele mesmo se sentia ao ser trocado por um boneco bundão: um nada.

O que sobrou do boneco foi posto em uma caixa e incinerado. Suas cinzas foram lançadas no mar para a eternidade. No último aniversário de Kátia, os pais lhe deram um gatinho siamês com lindos olhos azuis para amenizar sua tristeza.

Não adiantou muito. No dia seguinte, a Kátia apareceu em casa com uma vassoura vestida ao seu lado e anunciou:

- Esta é minha nova namorada. Gatinha, estes são meus pais.

Patrícia da Fonseca
Enviado por Patrícia da Fonseca em 16/06/2011
Reeditado em 09/03/2012
Código do texto: T3039246