Um Cara Qualquer
Andava solitário, prometeu a si mesmo que não encostaria em seus lábios uma gota de álcool sequer. Mas lá estava ele debruçado em sua escrivaninha, de uma madeira velha, sobre papéis rabiscados e manchados com as lágrimas que há pouco escorriam em seu rosto. Ao seu lado, um copo com uma pequena quantidade de vodka (aquilo já o tinha deixado tonto) e o seu velho maço de cigarro, que permaneceu guardado por um bom tempo sem o olhar do rapaz sobre o mesmo.
O brilho da lua começava a refletir sobre o seu rosto, a pequena janela de seu quarto alugado ainda concedia esse encanto à ele. Então o rapaz começou a levantar levemente a cabeça, parecia ter acordado de um sonho não tão bom.
"- Qual é o problema com você Felipe? - dizia a garota com os olhos lacrimejando.
- Saia da minha frente sua vadia! – estava novamente bêbado.
Não conseguia dar um passo em linha reta. Seus olhos fitavam seus pés e ele se perguntava o que estava fazendo ali.
Caiu.
- Quantas vezes eu já pedi pra você parar com isso amor? – ela tentava o erguer do chão. – Vou te dar um pouco de café, deve melhorar um pouco.
Conseguiu o erguer e levá-lo até o velho sofá encostado no quanto da sala.
- Fique aqui, eu já volto.
Ele parecia não querer falar nada. Sentou-se e tentou buscar sua sanidade.
- Aqui está. Beba tudo bocó. – entregou-lhe a xícara e se sentou no outro sofá.
Demorou alguns segundos até que ele tomasse todo o café. Abaixou a cabeça e assim ficou por certo tempo.
- Você não ta dormindo não né Felipe? – disse a garota com um pequeno sorriso.
- Por que você me atura ainda? Eu fico constrangido de ficar na sua casa nesse estado, desculpe. – olhou a moça de forma que ela não percebesse.
- Porque Deus quis assim. – silêncio.
Depois de um breve momento ela disse:
- Porque eu te amo bobo, mesmo você fazendo essas burradas. Pelos menos parou com o cigarro, já é um enorme avanço. – jogou sobre Felipe uma pequena almofada.
Ele segurou a almofada e levantou a cabeça para observá-la, já estava quase são.
- Eu vou parar de beber, prometo. Obrigado por tudo. – sorriu. – Sente-se aqui comigo."
Aos poucos as risadas e as imagens foram sumindo, tudo que via na sua frente agora era a pequena janela de seu quarto e as paredes com desenhos tolos desenhados. Fora mais um sonho ou alucinação.
Levantou-se da cadeira a qual estava sentado há tanto tempo. Chegou próximo a janela e ali ficou contemplando as pessoas que ainda permaneciam na rua. Eram pessoas que sorriam, se abraçavam e, de certo modo, pareciam felizes. Num piscar de olhos elas desapareceram. Não havia ninguém na rua, o que havia era o rapaz no pequeno prédio admirando o nada.
"- Ei gatinha, me dá um beijo. – sorria como nunca se permitiu sorrir.
- Vai ter que vir pegar seu beijo. – corria pela rua sem medo algum de passar um carro por ali.
O rapaz a perseguiu até que conseguiu a segurar. Abraçou-a forte e disse coisas em seu ouvido. Ela se virou para ele e os dois ficaram se olhando por um bom tempo.
- Você é linda. – enfim disse o jovem.
Os olhos de Felipe possuíam uma melancolia que dava um ar interessante a ele. Seu cabelo era negro como a noite e sua pele era de uma palidez diferente. Gostava do cabelo dourado da moça e do sorriso belo que ela tinha.
- Eu te amo. – ela fechou os olhos.
- Eu também te amo vida. – a beijou."
O barulho do relógio o tirou do transe. Eram cinco da manhã e ele ainda estava ali. Foi ao banheiro e lavou o seu rosto. Olhou-se no espelho e começou a dar atenção às olheiras aparentes e a barba que já estava grande. Sentiu-se velho.
Passou a mão no rosto e relembrou o toque daquela que amava, aquela a quem ele entregaria a vida, aquela que não pode salvar.
" Uma tarde qualquer. Ela havia dito que se cuidaria mas não voltou para casa.
Nenhum sinal da garota até o telefone tocar.
- Alô.
- Olá, somos do Hospital Regional – seu coração gelou –e há uma garota aqui que quer falar contigo. Você é o Felipe?
- Sim, o que houve?
- Alô, Felipe. Amor eu to bem, só passei mal no trabalho e vou ter que ficar no hospital essa noite. Você pode passar a noite aqui comigo? Eu to no quarto 37.
- É claro que eu posso, já to indo! Fica bem. Eu amo você.
- Te amo também. – desligou.
Pegou um ônibus e foi até ela.
Abriu a porta do quarto sem tentar fazer muito barulho para não acordá-la. Não adiantou.
- Lipe! Desculpa não ter avisado antes amor mas só me deixaram falar contigo aquela hora. – depois de dizer isso, respirou.
Encostou-se ao lado dela.
- Ta tudo bem, não precisa falar nada.
Os olhos da garota tinham perdido o brilho que Felipe sempre observava. Ela não conseguia sorrir e parecia muito cansada.
Alguém bateu na porta do quarto e entrou. Era a médica.
Olhou para Felipe e no seu tom de voz suave disse:
- Preciso falar com a paciente. – tentou mostrar um sorriso – O senhor terá que voltar outro dia.
Pegou-o pelo braço e o deixou no corredor. A porta já estava fechada e ele teve que partir."
Sua raiva por relembrar aquele momento veio à tona. Esmurrou a pia e sua tosse sangrenta recomeçou. Já fazia um tempo que cuspia sangue para todo quanto é lado. Sabia o problema que tinha mas não pensava em cura, pois ele jamais estaria curado do que o aterrorizava todos os dias.
Cigarros, álcool e papéis; era tudo o que possuía agora. Há mais de um ano ela havia partido e ele não conseguia seguir em frente.
"- Oi Gabi! – seu sorriso estava radiante ao vê-la na porta do seu quarto.
- Oi Felipe. – sua voz era quase inaudível.
- Você está bem? Não deixaram eu te visitar no hospital e você não atendia aos meus telefonemas. Aconteceu algo?
- Estou bem e não aconteceu nada, por enquanto. – não era capaz de olhar diretamente os olhos do rapaz.
- Como assim por enquanto? – estava completamente confuso.
- Nós devemos terminar Felipe. – tentou encará-lo, não demonstrava nada em seu rosto. – A nossa história acabou.
- O que? Você não pode estar falando sério! Quer dizer, todo esse tempo! Você me ama eu sei disso, me conta o que há de errado, confia em mim caramba! – sua confusão se transformou em desespero.
- O que há de errado é que é eu não agüento mais isso, eu quero sumir por um tempo porque é necessário pra mim. Pode entender isso Felipe? Não quero que me espere ou coisas do tipo então o que houve com a gente vai parar aqui. Um dia você vai me perdoar pelo que estou fazendo mas acredite, vai ser o melhor para ambos. – levou a mão até a boca. – Adeus.
Desceu depressa as escadas e nunca mais voltou. O pobre moço ficou parado na porta de seu quarto observando sua vida partir."
Depois da sua raiva, saiu do banheiro e foi ao seu quarto. Olhou para suas roupas e percebeu o quanto estavam velhas e sujas. Seu olhar procurava o maço que ainda estava sobre a escrivaninha do rapaz. Ele foi até lá e pegou um cigarro, o acendeu com um isqueiro que guardava no bolso da calça e se aproximou da janela. O sol já estava começando a refletir os seus primeiros raios de luz sobre o jovem, então ele a abriu e se debruçou sobre ela.
Tornou-se interessante olhar as pessoas atravessando as ruas, os carros respeitando as faixas de pedestres e os semáforos. Lembrou que hoje era o dia que completava os quatro meses desde que sua vida voltava à ele. 'Por que aquele dia? Por que ela? Por que daquele jeito?' Fazia a mesma pergunta a si próprio todo dia e as imagens sempre apareciam para dar as respostas.
"14 de junho de 2010. Outra ida à sua janela para tentar enxergar um caminho. Junho era o oitavo mês desde a partida de Gabriela e no meio de toda aquela gente esperando o semáforo abrir para que pudessem atravessar a rua, ele a viu. Fechou os olhos com força e tornou a abri-los. Ela estava realmente ali, do outro lado da rua.
Saiu feito louco do seu quarto, desceu as escadas de forma absurda e chegou até a calçada em frente ao seu prédio. Estava paralisado.
A garota acenava do outro lado, começou a dar passos na sua direção. Seu sorriso estava radiante, escorriam algumas lágrimas de seus olhos e trazia consigo alguns papéis, diagnósticos.
Um dia qualquer. Um semáforo que dizia aos carros: 'Não Ultrapassem, esperem!'. Uma moça atravessando a rua, um rapaz esperando ela chegar. Um carro ultrapassando sem se importar com a vida que estava pronto a tirar.
O barulho foi assustador e depois tudo virou silêncio.
Felipe correu até ela, não conseguia pensar. Vida ou morte. Gabriela não conseguia se mover mas seus olhos fitavam o garoto que um dia amou. O rapaz então a deitou em seu colo, sabia que ela iria morrer pois o sangue já manchava boa parte da rua, passou a mão sobre o rosto da mulher que amou por tanto tempo e selou seus olhos. A ambulância já estava chegando, as pessoas estavam aglomeradas ali e Felipe permanecia calado. Suas lágrimas já se misturavam com o sangue da garota e ele percebeu que havia alguns papéis espalhados pela rua. Deixou-a no asfalto e foi pegar o que tinha visto.
Começou a ler todos aqueles papéis e diagnósticos que se encontravam ali, os papéis tinham sido escritos por Gabriela. O primeiro dos papéis dizia que ela estava doente demais para ficar próxima de qualquer pessoa, teria que viajar para se curar da doença que tiraria sua vida. O último dizia que ela estava curada e que poderia voltar a viver sua vida normalmente.
Uma espécie de mágoa misturada com rancor se apossou do coração do rapaz. Jurou ali que viveria para relembrar os momentos que vivera com ela."
A tosse recomeçara e ele podia sentir pedaços do seu pulmão se esvaindo junto ao sangue que caia sobre os tacos do chão. Saiu da janela e foi se apoiar na escrivaninha. Puxou a cadeira, se sentou e começou a reler todos os papéis que ali estavam. Então ele pegou um papel e começou a escrever sobre como a vida nos é dada de forma magnífica e de como nos é retirada de uma forma triste. Que amar é se doar sem medidas e que se este sentimento é verdadeiro irá durar eternamente.
O rapaz tossiu a noite toda e escreveu um relato qualquer que falava sobre a vida, a sua vida. Gabriela.
Beijou o papel, jogou fora qualquer vestígio de cigarro ou bebida que estava ali na escrivaninha. Feito isso foi se deitar abraçando um monte de papéis.
Seria uma noite longa, ou não. Tudo dependeria da sua maldita tosse.