Quarenta e uma saudades

Inácio passou a mão no rosto sentindo a barba áspera e as rugas. Custava crer que quarenta anos pudessem ter feito tanto estrago na sua aparência. Da juventude conservou apenas recordações. Ao contemplar o horizonte, lembrou-se de Maria Rosa. Ao pé da serra, a viu primeira vez. Vestia chita, carregava um pote com água e trazia flores colhidas pelo caminho. Não houve palavras, um olhar juntou duas almas errantes.
Agora estava de volta e uma incômoda sensação lhe comprimia o peito. Inclinando-se pegou um punhado de terra e elevou apertando na mão, fixou a vista no anular esquerdo onde brilhava a aliança de viúvo. Nesse momento teve a certeza que seu coração ficara preso ali. Era parte daquele chão, misturara-se àquele pó, desde o dia em que se casou com a irmã de Maria Rosa e foi embora. Ingenuamente imaginara que a distância seria lenitivo para abrandar a tristeza. O tempo tentou apagar de sua mente as lembranças vivas, mas era nos devaneios que revivia instantes de emoção e sentimentos que o consolavam, pra depois o arremessarem de volta na dolorosa ausência.
A esmo caminhou até avistar o rio com o qual se identificava e da nascente corria manso feito seus sonhos de juventude, para logo adiante se precipitar em cachoeira, com ruído estrondoso. A diferença era que o rio se abrandava aos poucos lá embaixo, acabando com a aridez da terra, irrigando a plantação, só Inácio jamais encontrou alívio no decorrer da vida. Quis assim, não deixou fugir nada da memória, sentia um estranho prazer na dor da saudade que não queria ser curada, mantivera aberta a ferida, significando a presença dela no coração.
Na tarde fria de inverno, parecia um pássaro sem ninho, com o chapéu na mão e a mala quase vazia. Vivia atordoado, ela se entranhara em seu ser, fazia parte de sua essência desde o dia que a conheceu.
Absorto quase não viu a pequena camponesa vindo em sua direção. Ela tinha o rosto trigueiro e maneiras suaves, sem parar sorriu-lhe e se afastou a passos rápidos. Não acreditou no que viu. Aquela menina tinha um semblante familiar. Deu três passos em sua direção chamando-a de volta:
—Menina como é seu nome?—Perguntou.
—Mariinha—disse a mocinha.
—Conhece Maria Rosa? Sabe onde ela está?
Seu rosto iluminou-se ante a expectativa.
—Minha avó Maria? Sei sim. Disse a menina apontando uma direção.
Estremeceu com a visão funesta daquele caminho. Sabia aonde chegaria caso prosseguisse. Suas últimas esperanças se esvaíam a cada passo do percurso, não ia voltar atrás. Iria até o fim, usaria suas últimas forças, desta vez não seria covarde.
Puxou pela memória e se viu no altar da capela, fazia mais de quatro décadas. Seria o dia mais feliz de sua vida, ali no altar, não ouvia o burburinho do povo, só tinha olhos para a porta de onde ela surgiria vestida de branco. Era muita felicidade pra um homem só. Inebriado pela emoção custou a notar que no último banco da capela havia uma moça trajando vestido e véu ambos negros, aos poucos ela se desfez do véu fitando nele uns olhos de onde marejavam lágrimas silenciosas. Ali mesmo despertou daquele transe tendo a certeza pavorosa de que fora enganado.
Calaram-se as vozes dentro da igrejinha. A noiva entrou... Mas não era Maria Rosa por quem ele tanto esperava! Era Joana, irmã mais velha. Paralisado não reagiu. Sem coragem para dizer não, sentiu-se um fraco, mas não podia deixar a noiva ali no altar, ela era tão vítima da vontade do pai quanto ele. Casou-se com Joana.
Quando chegou àquela região ignorava os costumes, ninguém lhe avisou que filhas mais novas nunca se casavam deixando a mais velha solteira. Ao pedir a mão da moça ao pai não imaginara que ele ia dar-lhe em casamento a filha mais velha que ele mal conhecia ao invés de Maria Rosa.
Viu-a pela última vez no dia da partida. Levava consigo a mulher com quem se casara, queria se afastar dali o mais rápido possível, ignorou os pedidos do sogro para que ficasse morando em suas terras.
Na estrada onde as árvores ramalhavam, Inácio parou a carroça pediu à esposa que esperasse e atravessou por baixo dos galhos na direção de um ipê florido. Viu Maria Rosa entristecida apagando um coração desenhado no tronco. Olharam um para o outro sérios sem dizer uma palavra. A arvore, os pássaros — o mundo todo— ficou silencioso ao seu redor. Eram como dois nadadores apanhados na mesma correnteza e não sabiam nadar.
Voltou à realidade quando seus passos trêmulos o deixaram em frente ao antigo cemitério da fazenda. Vagueando por entre as tumbas, desafogou com o pranto, sua angústia, solidão e pesar. Chegara muito tarde...
Incrédulo viu surgir entre os jazigos, uma mulher trazendo nas mãos um ramo de flores, trajando vestido e véu, ambos negros, aos poucos ela se desfez do véu fitando nele os mesmos olhos de outrora, deles outra vez brotavam lágrimas que deslizavam pelo rosto deixando transparecer lampejos de emoção.
No tempo dos relógios foram quatro décadas separados... No tempo de suas almas nunca houve intervalos...


 
Maria Mineira
Enviado por Maria Mineira em 03/05/2011
Reeditado em 15/11/2012
Código do texto: T2947158
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