PASSIONE
Era Zizi Possi cantando no rádio do seu carro, sua seleção predileta num pen-drive já remendado de tanto por e tirar. Passione, canção que ela cantava lindamente levando os pensamentos da outra até as estradas da Toscana e a um encontro casual com um charmoso,
falante e maduro italiano!
Sacudiu a cabeça, tentando afastar esse sonho tolo. Dirigia-se a uma das empresas em que prestava consultoria e não poderia chegar lá com esse “ar” de adolescente apaixonada.
Separada há anos, com três outros relacionamentos fracassados depois do casamento, tinha se tornado bem safa em relação aos homens e suas conquistas. Desconfiava até de sua sombra quando ela se parecia mais masculina. E a paixão idealizada, jamais, sairia do campo dos sonhos e das canções de suas interpretes favoritas.
O infernizante trajeto até a empresa terminara, transito caótico de São Paulo, sempre a fazendo descumprir minutos do seu horário, criteriosa que era em tudo com relação ao seu trabalho. Foi conduzida à sala da “esfuziante” diretora da Agencia Matrimonial,para expor os últimos relatórios da consultoria. Teria que aguardá-la, pois essa estaria terminando uma das tais “entrevistas”. Passou os olhos pela mesa da diretora e uma das fichas de seus clientes lhe chamou a atenção. Furtivamente e atenta ao movimento da porta, pegou a ficha e leu os dados. Perfeito!!! Foto de um homem de uns quarenta e
tantos anos, grisalho, rosto marcante, queixo quadrado, olhar instigante... bonito sim.
Gravou os dados, 48 anos, separado, empresário do ramo têxtil, morando sozinho (filha no exterior) na Lapa.. num ímpeto, como quem furta algo compulsivamente anotou o celular. Sentou-se tremula no sofá de espera, nem ela mesma acreditando noque fizera.
Não via a hora de chegar em casa, depois de transcorrer tudo bem, com a proprietária da agência matrimonial, com pequenos acertos que seriam feitos, ainda visitou um outro cliente e agora fazia o caminho de volta pra casa, já perto das 19h30min. Chegou, mal tirou as roupas do dia todo de trabalho, nem foi direto para o banho como de costume,
vestiu seu hobby e apanhou dentro da bolsa o papelzinho de anotações da Agência, com o número anotado. Que ridículo, que ridículo pensava ela. Como pôde fazer isso, olhava para o papelzinho e percebia o quanto até o “logo” da Agência era ridículo, corações e
corações sendo flechados. Como teria ela coragem de fazer essa ligação?? Nunca, jamais!!! Olhou novamente para o número e lembrou-se que esta ficha estava na pasta:“Novos Clientes para Avaliação”, portanto ainda sem os tais cruzamentos de pares ideais
ou encontros marcados. Ela teria que ser rápida. Ah, depois do jantar, pensou, depois!
Passava das 23h15min quando resolveu enfim se deitar, sem é lógico, ter tido coragem de ligar!
Dois dias se passaram e novamente de volta em casa, exausta, saiu do banho e ligou o toca CD, nem se lembrando qual o CD que lá estava! E então Zizi preenche todo o ambiente, seu corpo e seu coração, lindamente canta Passione. Sem parar pra pensar ela pega o papelzinho da Agência de Matrimônios e tecla, mal sabendo o que iria falar. Do outro lado uma voz grossa e rouca atende. Ela gagueja e pergunta:
_ Sr. Marcelo? Já ligaram para o senhor da Agência Matrimonial para confirmar seus dados? A resposta foi positiva, e ela imediatamente emendou:
_ Me desculpe, mas o número se sua residência está borrado e só queríamos confirmar!
Ele riu, e perguntou:
_ Perderam também meu comprovante de residência?
Um silêncio mortal e ela enfim confessou:
_ Olha, sou amiga da Elisa, e não poderia ter feito o que fiz, anotei seu celular, sem que ela percebesse. Desculpe-me, desculpe-me. Sei que não foi correto, tenha uma boa noite!
_Espera, espera... não desligue!!. Tenho intuição com vozes e gostei muito da sua!
Horas se passaram em um papo em que se falou desde o trânsito louco de Sampa, até as separações dolorosas e os anseios de um amor verdadeiro. Ficaram de se religarem. E foi assim, por quase um mês, durante infalivelmente todas as noites, até que tiveram a coragem de marcar o encontro. Ela nem pode sondar mais sobre ele,
antes. Ele lhe confessara que retirara a sua ficha da Agência por que estava certo que já tinha encontrado quem ele procurava!
Numa sexta à noite quase dezembro, noite estrelada e fresca, em frente a um pub charmoso, discreto, bem freqüentado, apesar de nada sofisticado e já ouvindo a trilha sonora que ficava entre os blues e os rocks antigos, respirava fundo, rezando pra que tudo fosse como ela sempre sonhara. Atrasada de propósito quase meia hora, para que
ele estivesse lá ao certo, enfim destravou os passos e entrou. Além dos inúmeros bancos do bar, as mesas minúsculas só pra dois se apertavam no pouco espaço, sentou em uma, menos exposta. Temerosa já em não ver alguém por ali sozinho em buscas com o olhar.
Esperava ansiosa por intermináveis cinco minutos, reparando em cada homem desacompanhado que lá estava e se surpreendeu ao ver seu açougueiro da rua de cima,todo prosa sentando-se em um dos bancos, degustando seu drink já servido. E nada de algum dos homens se manifestarem. Num certo momento o açougueiro mencionou
cumprimenta-la, ao que ela respondeu com discreto aceno. Foi o que bastou para que ele se dirigisse à sua mesa.
_ Dona Marisa, que prazer em vê-la aqui!!! Espera alguém??? Já chegou falando, no seu jeito espalhafatoso, condizente com o homem roliço, baixinho, de bigodes fora de moda e gosto discutível de se vestir. Sem jeito e querendo se livrar logo ela respondeu:
_Sim, espero uma amiga, que já ligou avisando que está chegando! Ele todo íntimo continua:
_ Pois eu estou esperando uma moça, um encontro às cegas. Mas já estamos apaixonados, só pelas conversavas pelo telefone. Ela me conheceu por uma Agência, nem sabe como sou ainda. Ta certo que eu “maquiei” um pouco meus dados e foto, mas estou certo que ela
vai gostar de mim... e bla..bla..bla....
Um torpor gélido foi tomando conta de seu físico, as pernas e braços formigavam como se fossem sumir, a respiração foi ficando lenta, parecia que iria perder os sentidos, nem conseguindo mais ouvir os “detalhes” que aquele homem indiscreto contava. Sem nem conseguir saber como, tocou em uma das teclas do seu celular, sem tirá-lo da bolsa,provocando um toque sonoro. Fingiu que atendeu, fingiu um diálogo, levantou-se e se despediu dizendo que a amiga não poderia vir!
Na manhã seguinte quase abriu a Agência Matrimonial junto com a funcionária. Pediu pra ver a tal ficha, com uma desculpa qualquer, questionando incisivamente sobre os critérios de seleção e veracidade dos clientes, o que a Agência sempre levantava como “bandeira”
de confiança. A funcionária encontra a ficha e ri:
_ Ihhh, esse é um fake, um farsante. Rastreamos a foto dele na internet, é de um modelo de creme dental lá dos States, rindo continuou: lógico que nem compareceu para a entrevista e nem o adicionamos como cliente!!
Como não? Como não? Pensava ela. Eu vi a ficha aqui, eu vi a ficha numa pasta............”Novos Clientes para Avaliação!!!” Saiu da Agência possessa, reconhecendo sua tamanha idiotice. Entrou no carro, ia ligar o som, pegou seu pen-drive e com toda a força de sua raiva, atirou Zizi pela ladeira abaixo!!!
m.raposo*