Fim do verão
Fim do verão
O dia nasceu tristonho com cheiro de horta molhada. A luz invadia o quarto através das frestas da janela de madeira velha no meio exato da parede azul. Uma áurea crescia luminosa descortinando a vida. Era cedo.
A modorra das manhãs se instalou no corpo.
Não quis acordar.
O rosto magro e forte crescia-lhe na mente. Imaginou -o envelhecido, no entanto másculo. Pequeno, mas onipotente. O homem loiro de lábios finos escondidos pelo bigode e que pouco sorria, preencheu-lhe os primeiros pensamentos.
Andou vagarosamente até à toillete. Viu-se.A raiva invadira o coração. Queria sonhar.
Parece que o ouviu.
Sua voz não era grossa. Pelo contrário,doce .Seu timbre carregava a música, sentimento, dor e consolo.
Dormiam unidos e na manhã seguinte ... apenas o rosto se esvaindo a luz do dia.
Havia duas fotografias.Numa delas os óculos de lentes azuis escondiam-lhe o rosto aduncado. A boca séria.Noutra está radiante. Ele sorri docemente sentado sobre a motocicleta com o olhar perdido! Está numa praia e o mar de fundo como numa aquarela confundiam-se as cores com seus olhos claros.O vento desalinhava o cabelo que lhe caía nos olhos.
Penteou-se.
Saiu.
Buscou em suas coisas as fotografias escondidas e as admirou. Voltou a guardá-las.
A aula transcorreu sem dores.
O professor divagava sobre a teoria da relatividade e o tempo.Não pode evitar imaginar voltar ao passado. A impossibilidade de reversão da translação da Terra agonizava junto às hipóteses de viagens através das eras.
Na sua quietude entendeu que o corpo não retornaria, mas a alma sim! Quis equacionar a saudade vibrando-a em seu universo solitário.Criou sua própria teorização da saudade:a dor viaja a velocidade da luz e alcança o vazio dos mundos.Massa incorpórea de energia que vitaliza buracos negros.A saudade translúcida sangra.
Suspirou.
A tarde declina.
Ele nasceu ao final da primeira guerra. Ela no inicio dos anos 70.
A praia ... verão de 1988. A melodia de um violão triste e da voz cálida preencheu a ruazinha do canal.Apaixonou-se pelo som de uma língua que não conhecia, Oh mon amour, ele cantava.A canção gerada antes que ela viesse ao mundo misteriosamente a trazia de volta à época em que estava certa,deveria ter vivido.
O universo conspira e o mundo parou no momento em que os olhares se cruzaram. A felicidade percorreu sua pele bronzeada. Ela compreendeu que o ontem seria seu hoje. Ele.
O momento único preencheu o tempo universal. Um encontro marcado no Cosmo.Triste sorriso na pequena boca , um risco no rosto marcado pelo tempo doloroso.
As férias se resumiram a ouvi-lo no cais. As casas construídas na orla do canal do Itajuru,na Passagem,mantinham um pequeno cais de madeira,pontezinhas que levavam a pequenos veleiros,embarcações de passeio.
Ela passou a esperá-lo na primeira pontezinha onde o Miss Daisy ficava ancorado, branco e portentoso ansioso por velejar. Queria desesperadamente ouvi-lo. As "chansons" doces e tristes se repetiram por dias.
A visita da inesperada ouvinte foi de pronto percebida e desejada .Da janela da casa rica enfeitada com pequenas flores amarelas que pendiam da jardineira,jogou-lhe uma rosa.O estranho romance rompia a imperícia da língua.Em breve cantaria na pontezinha com os pés tocando as águas salgadas do mar.
Naquele entardecer ela se surpreendeu ao entrar no cais ,porém ele acenou.Sentou-se ao seu lado, envergonhada e confusa.Deixou os pés na água e ouviu... ouviu... até que a noite os cobriu.
O cansaço apagou o prazer de cantar, no entanto o som da música continuava sob o luar que tornava prateada a água e dava aos rostos um contorno misterioso e belo.O vento suavemente mexia aqui e ali com os cabelos e os brincos. Não conseguiam se despedir.
Movendo com doçura sua mão ele trouxe o rosto dela para perto de si e a beijou,como a carícia que o vento fazia naquele início de noite. O bigode roçava-lhe a pele do pescoço e sentiam a respiração um do outro.A pouca luz escondia os olhos azuis que a admiravam.
Desperta do torpor do momento levanta-se corre, foge. Teve medo.
Aprisionada ao ritual do coração retorna na tarde seguinte à praia. Ele está na janela e não canta. Sua aparência é solitária.Ela colhe as mãos aos lábios e envia um beijo.Por um tempo ele desaparece. Ela vai para o cais e chora.
Passos aproximam-se devagar. Ele vem com o vento brincando com os cabelos loiros. Os óculos de lentes pequenas e azuis escondiam a vivacidade dos olhos. O rosto sempre austero, firme, como se uma dor infinita lhe torturasse a alma. Sentou-se ao lado dela. Silêncio. Tocou-lhe a mão e beijou. Sem soltá-la, pousou-a junto ao seu peito. Ela sentiu o coração pulsando. De início, acelerado,pouco a pouco sossegando.Quietude. Ele fala. Ela não compreende.
Olha para ela. Beija a moça. Beija várias vezes. Ela não foge.
A moça não sabe francês. O homem aprendera recentemente o português. As palavras não conseguiam refletir os pensamentos, mesmo assim soube que ele teria de voltar em breve à França.Estava em Cabo Frio recuperando a saúde. Era músico. Naquele que seria um dos últimos encontros deu para ela as fotografias. Queria levar consigo a dela, mas não havia nenhuma. Ele se foi.
O verão terminou na manhã que ele partiu.
O período letivo recomeçou. Pensou que o dia a dia com suas responsabilidades a fariam guardar a saudade.Enganou-se.Havia um endereço cindido pelo oceano e uma correspondência que retornou ao remetente.Recolheu-se em suas lembranças ao som da música e da espera.
A praia ... O verão...