Conto número 4 - Uma vida
Por mais que fosse incrível a ele estar feliz alí, naquele momento, entusiasmou-se e se deixou levar pela sensação. Dividia o que tinha com seu irmão mais novo. Nunca faltara a seu irmão, nem sequer em um instante. Vendo-o alí deitado, como um anjinho, o tranquilizava sempre. Era muito bom ver o garoto, dia após dia, crescendo e crescendo sem parar. Já estava quase na altura do seu ombro. Mediam sempre. O caçula sempre pedia: “irmão, vamos medir de novo, você mediu errado da última vez!” e terminava o pedido em um sorriso que se eternizava em todo momento. Ele adorava o irmão como a um filho. Eram carne e unha. Preferia ficar a sós com o irmão a estar com qualquer outra pessoa. E nunca deixou de ser assim, desde o dia que haviam perdido seus pais naquele trágico acidente. Passou a mão pelos cabelos lisos e loiros do irmão. Sorria ao fazer isso, como adorava aquilo. Daria tudo, absolutamente tudo, pelo irmão. Quantas não foram as vezes que passou fome, só para ver seu irmão bem nutrido. Seu irmão nunca sentira fome na vida. Jamais deixaria isso acontecer. Preferia matar a ver seu irmão sofrer. E não parecia que ele estivesse sofrendo alí, naquele instante. Dormia? Não sabia, sentia-o adormecido. Mesmo com toda aquela gente fazendo barulho. Segurava a cabeça do irmãozinho apoiada no colo. Acariciava seus cabelos lisinhos. Amava muito aquele moleque. Lembrava do primeiro dia que passaram sozinhos em casa. Passaram aquele primeiro dia todo abraçados um no outro. Vez ou outra, o menor chorava muito e ele o agradava como podia. Nunca perdia a paciência com o irmão. Nunca! Aqueles eram bons tempos ainda. Um tempo antes de perderem a casa. Antes de serem levados pelo juizado de menores. Antes de serem levados para o orfanato, ouvindo todos os dias que seriam separados e adotados por famílias diferentes. Aquilo não podia acontecer. Ele tinha certeza que seus pais iriam querer que ele cuidasse do irmão. E assim o fez. No segundo dia de orfanato, depois de assaltar o depósito e juntar o que era preciso para ficarem bem, tirou o menino dali e foram para bem longe. Não tinham mais parentes, não tinham ninguém a quem recorrer. As pessoas a sua volta gritavam e aquilo o incomodava muito. Não percebiam que o irmãozinho precisava dormir e descansar. Abaixou e beijou a testa do irmão, dizendo baixinho: “tudo vai ficar bem, você sabe disso, eu estou aqui...” Nada o deixava mais furioso do que outros se metendo no jeito que cuidava do irmão. Até alfabetizá-lo ele conseguiu sozinho. No dia que seu irmão leu o primeiro livrinho foi uma festa só. Comeram pizza, isso ele não esquecia. Ensinou matemática para o garoto e até alguma coisa de história. O menino não parava de pedir mais livros. Levava o garoto na biblioteca mais próxima e arrumava um jeito de sair de lá com o livro que o irmão escolhia. Mesmo que não tivessem uma casa, mesmo que morassem nas ruas, nunca deixara seu irmão debaixo de céu aberto em um dia de chuva. Nunca o deixou passar frio nem nenhuma dificuldade. Uma vez, lembrava bem, enfrentou três garotos maiores do que ele só por causa do irmão. Apanhou muito, mas expulsou os três de perto do seu protegido. Alguém tentou tocar a face de seu irmão. Expulsou a mão com um tapa e gritou: “ninguém toca nele!” Ouvia a sirene cada vez mais forte. Alguém disse ao longe: “o menino parece estar morto, mas o irmão não deixa ninguém chegar perto” “Morto? Não! Nunca!” pensava enquanto abraçava o irmão mais forte do que antes. Rezava sem saber rezar e implorava que tudo terminasse bem e que, pudessem sair dali para tomar um sorvete, como faziam na maioria das tardes. “O que aconteceu, filho?” – um sujeito de colete brilhante e segurando uma maleta perguntou. “Acho que foi atropelado” – disse uma voz. “Garoto, vou fazer tudo por seu irmão... mas precisa se afastar” – disse o homem da maleta. “Faça o que for preciso, mas comigo aqui do lado. Se ele acorda e não me vê por perto, apronta um berreiro...” – disse sorrindo e abriu espaço para o homem, sem contudo largar a mão do irmão que representava tudo em sua vida.