Soldado com rosa na mão

Tudo começou quando eu era um garotinho... Meu nome é Peter. Eu tinha uns oito anos quando minha prima Laila, que tinha a mesma idade que eu, mudou-se na casa ao lado da minha. Minha tia Susan, mãe dela, não gostava que brincássemos juntos, mas Laila não ligava e eu também não. Passávamos as tardes juntos correndo, brincando, lendo e escrevendo; Laila amava rosas e eu sempre arranjava algumas na plantação do vizinho e lhe dava como se fosse um presente. O mundo era nosso e era maravilhoso aquilo.

Toda tarde líamos uma história diferente. Laila dizia que adorava minha voz e que eu era bom pra contar histórias. Ela mentia bem.

Os anos foram passando, nós fomos crescendo. Ela substituiu suas bonecas por maquiagens e, eu, deixei de lado meus carrinhos e comecei ajudar meu pai na lavoura. Morávamos num pequeno sítio, nunca pensei sair dali.

Quando Laila completou 12 anos fizemos uma festa. Ela estava tão bonita, nunca tinha a visto daquele jeito. Eu gostava muito dela e, isso, causou uma enorme confusão.

Fomos até a árvore em que costumávamos ler nossas histórias e, quando fui começar a ler, Laila pousou as mãos sobre o livro.

- O que foi? Essa história é boa, sério. – falei olhando na sua direção.

- Eu to com uma dúvida Pet. Você já assistiu filmes em que o homem e a mulher se beijam? – ela tirou as mãos de cima do livro.

- Claro que já, qualquer um assistiu. – eu estava fechando o livro, desviei meu olhar dela e olhei minhas mãos. Pensei por um momento que ela iria querer me beijar, mas ela não faria isso. Olhei-a de volta. – Por que perguntou isso?

Laila estava vermelha. Devia ser culpa do sol, o calor estava insuportável.

- Ah Pet, eu só perguntei porque eu tenho vontade de beijar alguém. Você não tem? – isso me assustou.

- Bom, ter eu tenho mas acho que alguém só vai me beijar quando eu já estiver crescido. É meio nojento não acha?

- Nojento? Ah, é claro. – deu um falso sorriso. - Você acha que vai ser um bom beijador?

Pigarreei.

- Talvez, já treinei algumas vezes. – ela sorriu.

- Ah eu também já treinei umas vezes, mas nunca fiz na prática. – ela estava olhando minha boca. - Feche os olhos por um momento Pet.

Qualquer coisa que ela pedisse para que eu fizesse, eu faria. Com os olhos fechados senti os lábios dela tocarem os meus. Estávamos nos beijando. Era uma sensação boa, mas eu sentia certo nojo ainda.

- LAILA!!! – abri os olhos num estalo e pude ver que minha tia Susan corria gritando em nossa direção.

Laila se afastou de mim e seus olhos estavam cheios d’água.

- O QUE ESTÁ ACONTECENDO AQUI? – eu estava assustado e com medo. Acho que Laila sentia o mesmo.

- Não está acontecendo nada mamãe. – mentiu ela com a voz trêmula.

- E você seu moleque? Se está pensando que não vou contar à seu pai está muito enganado senhorzinho. – ela pegou na minha orelha e na de Laila e nos levou pra casa puxando-as. Chegando a casa, ela nos soltou e mandou chamarem papai.

- O que houve Susan? – papai perguntou ao ver as lágrimas escorrendo no rosto de Laila.

- Eu peguei os dois se beijando em baixo da árvore, a qual dizem ir para “ler” historinhas.

- O que há de errado nisso? – papai deu um sorrisinho de lado pra mim.

- Como assim? Você está louco John? Eles são primos, sangue do mesmo sangue. Não podem ficar se agarrando por aí!

- Susan, são crianças. Devem ter feito isso por pura curiosidade. Tenho certeza que não o farão mais. Não é Peter? – olhou-me sério.

- Sim papai. – respondi de cabeça baixa.

- Muito bem, se tudo está resolvido vou voltar ao trabalho.

E lá se foi papai trabalhar. Laila e a mãe dela foram pra casa e eu fiquei olhando pro céu, pensando na sensação maravilhosa em ter os lábios dela nos meus.

As idas até a árvore foram aumentando. Não conseguíamos ficar sem nos beijar, era bom aquilo e eu já tinha perdido o nojo. Um ano e meio ficamos assim. Papai parecia saber o que eu fazia na árvore e a minha tia, também.

Quando eu fiz 14 anos, uma notícia assolou toda minha alegria e felicidade. Estávamos jantando, eu não conseguia desviar meu olhar de Laila; ela parecia meio abatida e logo eu descobriria o por quê.

- John... Acho que é oportuno agora eu dizer o que vou fazer. Laila e eu vamos embora daqui, nós dois sabemos o que está acontecendo e isso está errado! Laila vai ser matriculada em uma escola integral na cidade e eu vou procurar um emprego.

- Eu não acredito na bobagem que está dizendo. Vocês são a única família que temos e nós, a única que vocês tem. Deveríamos ficar juntos não acha?

- Não da forma que os garotos estão juntos. Eu não posso fingir que isso é correto John. Os dois ficarão longe um do outro e esquecerão essas tolices.

Os olhos de Laila se enchiam de água com facilidade, mas ela não chorava. Eu não conseguia mais comer, então me levantei da mesa e fui pro meu quarto. Ali fiquei acordado quase a noite toda, eu não sabia o que fazer sem Laila por perto. Eu a amava.

No dia seguinte, fui até a árvore no horário que costumava encontrar-me com Laila. Ela não estava lá. Nunca mais estaria.

Os anos foram passando depressa, eu estava crescendo bem rápido. Fiquei maior que papai e eu era um garoto forte agora. Uns fiapos de barba apareceram no meu rosto juntamente com as espinhas, eu não tinha muito pelo e isso era bom.

Com 17 anos terminei o colégio e fui aceito em uma faculdade da região. Meu pai tinha uma casa que ficava perto da faculdade, era bem pequena, mas foi o presente que ele me deu. Eu estava morando sozinho. Papai disse que eu não precisaria trabalhar, apenas me dedicar por completo aos estudos.

No primeiro dia de aula eu a vi. Laila estava sentada num banco dentro da faculdade. Ela tinha seios agora, lindas pernas e seu rosto estava perfeito. Meu coração acelerou no instante em que eu a notei ali. E então, ela me viu. Levantou-se do banco em que estava e correu na minha direção. Com um abraço forte e apertado, quase não a coloquei mais no chão. Ela beijou meu rosto e começou a falar sem parar.

- Meu Deus como você ta grande Pet, não costumava ser tão forte assim! Foi sorte terem nos aceito na mesma faculdade não acha? Você ta lindo! Sabe, eu me encontrei com seu pai e ele levou minhas coisas até a sua casa, disse que eu devo ficar lá até que minha mãe arranje um lugar pra mim. Tem algum problema? Espero que não porque todas as minhas coisas já estão no quarto de hóspedes. – ela parou pra respirar. – Eu não costumo falar tanto ta? É que tem tanta coisa pra falar. Eu senti muita falta de você Peter.

- Eu também senti muita falta de ti Laila. – uma tristeza apareceu na minha voz.

- Vamos sentar ali onde eu estava. Tenho tanta coisa pra perguntar. Ah! Seu pai pediu para que eu entregasse essa carta à você. Disse que é importante.

Peguei a carta e fui com ela sentar-me no banco. Já sabia o que tinha de importante na carta... Minha convocação para o exército.

- Abra-a. – disse ela.

- Prefiro abrir em casa mesmo, não é adequado abrir aqui.

- Desde quando você mandou embora sua curiosidade? Vamos! Abra-a e leia pra mim. Sinto saudade disso.

- Tudo bem.

Quando comecei ler a carta e soubemos que eu iria pra guerra, os olhos dela já estavam cheios d’água. Pensei que em todos esses anos ela tinha parado com isso. Bom, me enganei. Ao término da leitura, guardei a carta no bolso da minha calça e fitei o chão por uns segundos.

- Você não vai. – os olhos dela não piscavam e ela fitava o nada.

- Isso não é uma decisão sua. – minha voz pareceu grosseira e ela me olhou assustada. – Não é minha decisão também. Sou obrigado a isso, o que posso fazer?

- Eu não quero te perder de novo. Você não entende? – pensei que ela ia chorar.

- Não deve ser tão ruim ficar sem eu por perto. Foi tão fácil pra você aceitar o que sua mãe queria. – estávamos nos encarando.

- Como é? Eu era uma criança! Você queria que eu fizesse o que?

- Nada. Perdoe-me. – peguei sua mão. Seus dedos eram finos e delicados e, agora, ela deixava as unhas grandes e coloridas.

- Lá aonde você vai lutar, tem rosas brancas como essa não tem? – disse ela olhando pra pequenina flor perto da gente.

- Sim, acho que sim.

- Você vai me trazer uma, pra provar que não se esqueceu de mim lá. Entendido?

- Entendido. – respondi com medo de não voltar pra entregar a rosa à ela. - Laila, eu vou pra casa. Não vou conseguir prestar atenção em nada e devo arrumar minhas coisas para partir. Amanhã quando o sol estiver nascendo deverei estar indo ao encontro do exército. Assim que sair daqui vá até minha casa, vou preparar algo para comermos. Está bem?

- Tudo bem Pet. Tudo bem...

Ela se levantou e seguiu seu caminho, enquanto eu seguia o meu. Esperei ela chegar a casa e jantamos juntos. Enquanto ela lavava a louça, eu secava. Terminada a louça ela foi fazer sua higiene no banheiro e depois foi ao seu quarto. Eu a vi ali, não conseguia mais ficar longe dela e então bati de leve na porta do cômodo.

- Pode entrar Peter. Para de ser bobo. – caiu na risada, eu adorava isso.

Adentrei o pequeno quarto e sentei nos pés da cama. Não parava de olhar pra ela.

- Durma comigo Pet, tenho medo do escuro.

Retirei os sapatos e deitei junto dela. Laila pegou meu braço e passou por sua cintura, de forma que eu a abraçasse. Cheguei meu rosto perto de sua nuca, seu cheiro era maravilhoso; toquei com meus lábios seu pescoço. Ela arrepiou. Virou-se para mim, me olhou por um instante e me beijou.

Fizemos amor naquela noite e no dia seguinte, eu parti.

Uniforme, capacete e arma na mão. Nunca imaginei estar do jeito que eu estava. Não sabia o que era a guerra - a não ser pelos livros - e a realidade era bem diferente.

Os tiros eram ensurdecedores, o odor do sangue e da gente morta me repugnava de uma forma intensa. Braços, pernas, cabeças pra todo lado, noites sem dormir. O inferno era ali. Você tinha duas opções: se você dormisse podia não acordar mais, ou, se tivesse a chance de dormir, preferia não fazê-lo (os pesadelos eram piores que qualquer coisa). Eu me mantinha acordado o máximo que conseguia.

Os companheiros morriam, eu matava e a guerra ainda estava ali. Então o batalhão chegou ao local que Laila me falara antes de eu vir pra guerra. Havia uma plantação de rosas, mas elas não existiam mais. Por sorte, ou não, eu consegui achar uma rosa branca, intacta. No meio de tanta dor e morte, ela estava viva. Quando você pensa que a vida está acabada, percebe que algumas coisas lutam para sobreviver. Tomei-a nas mãos o mais rápido que pude e guardei-a no bolso que ficava sobre o lado esquerdo do meu peito.

Os tiros recomeçaram, a batalha devia ser ganha e, num surto, eu me coloquei na frente do meu batalhão e ali, abri os braços, esperando abraçar a morte. O barulho cessou, a luz desapareceu e só pude ver o rosto da mulher que eu amava.

Ela usava uma roupa branca, estava chorando. Gritava meu nome e então, consegui abrir os olhos. Ela havia se tornado enfermeira e estava cuidando dos meus ferimentos. Podia amenizar a dor, mas não me salvaria da morte.

Laila segurou minha mão e colocou-a sobre seu colo.

- Você vai ser pai, não pode desistir agora. – sua voz era trêmula e as imagens da nossa infância vieram até mim.

Acariciei sua barriga, mas não podia me mover da forma que achava necessária. Então me lembrei da rosa. Juntei forças para levar minha mão até o bolso em que ela estava e, manchada de sangue, consegui levá-la até a mão de Laila.

Eu sorri e então me entreguei à ela. Nos braços da morte eu fui descansar.

Agnes Gomes
Enviado por Agnes Gomes em 07/01/2011
Código do texto: T2715187
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