Dona Flor e Tobias
A lua estava alta naquela noite. O povo havia se ajuntado para prosear na calçada e enquanto isso tomava uma fresca. A Vila de Campos sempre foi quente o ano todo. As mulheres também. Não se sabe quem as enfeitiçou, mas, além de bonitas e elegantes, mulheres de porte, eram danadas para chamegar. A Vila de Campos era um lugar pacato. O povo amigo. Quase todos viviam de venda, compra, e troca, ou de umas poucas vacas leiteiras na roça. O chão não era muito bom para o plantio. A Vila de Campos foi a terra do saudoso poeta Tobias Barreto. Um belo dia, uma dona que atendia pelo nome de Flor foi à feira, era uma segunda-feira do mês de Santana, juro por todos os santos, que, o que falo é a mais pura verdade. Dona Flor saíra de casa cedo carregando uma sacola de feira e algum dinheiro para as compras. Andou entre os caminhos estreitos, de barraca em barraca, comprando o que precisava e o que o dinheiro curto desse. Em certo momento, não me lembro muito bem, acho que foi depois que ela conversou uma meia hora sobre o escândalo do Padre que fugiu com a moça de Riachão, que ela meteu a mão no bolso da saia longa que usava e percebeu que seu dinheiro já era. O rapaz da barraca ao lado disse: “Não quero me meter, mas, vi quando o galeguinho da Barroca passou devagarzinho e mexeu em você, fiquei calado porque não gosto de confusão”. “E agora moço?” “O que vou fazer para pagar tudo?” Disse dona Flor assustada. “Ói, mulher, num conte que foi eu quem falou, mas, o pestinha gosta de tomar umas naquele boteco perto do talho de carne”. “Muito agradecida moço”. Disse dona Flor rumando na direção do dito boteco perto do talho de carne. A antiga Vila de Campos foi sempre assim, no mês de Santana tem muita trovoada. A ruela estreita de feira, toda de paralelepípedo, se torna uma armadilha para as damas que insistem na elegância de um salto um pouco mais alto. Dona Flor tornou-se vítima de sua vaidade sentindo a força da gravidade que a empurrava ao chão. Ela caiu, e ali ficou alguns instantes até se recuperar do “azar”, como disse a mesma. Levantando-se toda sem jeito, perguntou a uma escrava onde era o tal boteco do talho de carne. A escrava disse que era logo aí, ou seja, ela estava bem defronte o tal. Vendo o boteco, dona Flor não pensou duas vezes, mesmo sabendo que não era uma boa investida aquela, entrou no recinto atraindo para si o olhar de todos os homens que estavam lá. Aproximou-se do balcão e perguntou: “O senhor conhece um galego que vem sempre beber aqui no dia de hoje?” Havia atrás daquele balcão um senhor de meia idade. Este usava um bigode bem grosso, por isso era conhecido pelo povo como “Seu bigodão”. Este lhe respondeu com certo tom de ignorância: “Num sei não. E aqui não é lugar para você, não”. Dona Flor entendeu que estava incomodando o lugar dominado pelos homens. Pensou consigo mesma: “Parece que voltei no tempo”. Enquanto a senhora distinta da Vila de Campos pensava em como reaver o dinheiro, um cavalheiro de voz grave e palavras finas aproxima-se e a convida para tomar um café. “Traz aí um café para dama, bigodão”. Disse o senhor desconhecido. Seu bigodão estranhou alguém pedir um café naquele lugar, afinal, as raparigas chegavam à tardinha. Todos os homens estavam, digamos, fazendo o aquecimento inicial.
- O que faz uma mulher branca, bem vestida, em um lugar como este? Perguntou o estranho.
- Fui informada que o ladrão que me roubou está neste estabelecimento. É um tal galego. Respondeu dona Flor.
- Não vejo nenhum galego aqui, e todos são conhecidos e suas esposas estão em casa. Continuou o estranho.
- Bem, quero pedir desculpas, acho que agi sem pensar vou embora. Disse Dona Flor com sinceridade.
- Espere moça, vamos terminar o café. Disse o moço de voz grave.
- Tem chovido muito em Campos estes dias, não?
- É, sim, este mês nunca nega fogo, a chuva cai com gosto. Respondeu ela. Dona Flor estava com as maçãs do rosto bem rosadas, era sinal que ela estava envergonhada.
- É. Eu me lembro de muitas coisas desta terra.
- Puxa eu nem imaginava em encontrar uma pessoa, digo, que sabe se expressar tão bem como o senhor. Dona Flor subitamente esquecera-se do dinheiro, e do ladrão.
- Não é isso moça, sou gente da terra. Sergipe é um pedaço do céu, dizia meu finado pai, - Deus o tenha, disse a moça.
- Seu pai já é falecido? Perguntou o moço.
- Foi a tuberculose. Respondeu dona Flor com um tom de tristeza. Neste momento o destino fez seus olhos se cruzarem, e ele sentiu que Dona Flor era uma mulher bonita que sofria. Tobias viu poesia no rosto da mulher.
- A tuberculose é provocada por uma bactéria. Disse o senhor.
- Que diabo é isso moço? Aprendi somente o básico.
As horas foram passando e dona Flor esqueceu-se de vez do dinheiro e do marido que naquele momento estava rodando o mundo à procura da mulher. A conversa entre os dois foi ganhando um rumo cada vez mais pessoal. Ela agora sabia que o homem era advogado e que escrevia com pessoas famosas, e estava visitando a terra natal. Os dois fizeram amor a noite inteira. Para Dona Flor, foi a noite mais feliz de toda sua vida. O homem cheirava diferente, sua forma de pegar em seu corpo tinha uma pitada, um tempero não muito tupiniquim. O homem era um gentleman. Suas fantasias de mulher apareceram como por encanto nas mãos do maestro que conduzira toda a ópera. Ao amanhecer, ele disse sussurrando em seu ouvido esquerdo enquanto ela estava em profundo sono:
“Já me vou pomba minha.
Bebi de tua fonte por toda a noite.
Minha alma não mais será mesquinha.
Nem meu coração viverá de açoites.
Ao teu regaço retorno, tão breve, tão logo, que não saberás que parti.
Doravante sou teu escravo voluntário.
Teu amante febril, teu amigo das horas incertas e certas.
Não mais correrás pelas estreitas vielas de Campos.
Pois serei para ti um porto seguro.
E tu para mim como a fé em todos os santos”.
Dona Flor acordou no quarto dos fundos do boteco de Seu bigodão. Não era uma pensão de primeira, nem de segunda, mas, os lençóis eram limpos, e os ratos não ousavam enfrentar a gata “piaba”. Era uma gata bem adestrada na captura de roedores insolentes. Ela desceu uma escada estreita e seu marido a estava esperando, embaixo, juntamente com o bigodão. Este havia contado que a mulher passara mal, e ele a socorrera deixando-a dormir a noite em seu estabelecimento até que alguém a procura-se como de fato ocorreu. Seu bigodão garantiu que todos foram de uma honra e dignidade extremada para com a senhora desfalecente. E acrescentou: “Dona Flor esteve aqui, um ilustre filho desta terra que estava além mar. Seu nome é Tobias Barreto de Menezes e ele sabendo que foste roubada resolveu te agraciar com esta quantia”. Bigodão passou o envelope para ela. O casal se foi. E ao chegarem a casa, o marido de Dona Flor abriu o envelope com um jeito de quem tem algo no ar. Nele havia cem mil reis. Os dois tomaram suas vidas como que nada tivesse acontecido. Como dizem os mais velhos, “o coração esconde segredos”. E o de uma mulher Deus quem o diga. Todas as noites de lua cheia, sempre, ela dava um jeitinho para pensar no boteco de seu bigodão. Aquela fora uma noite em Tobias, aquela de lua cheia, e o povo sentado na calçada para falar sobre o que se passa. O que houve depois, essa é outra estória.