A Festa
Estava desanimado, mas resolvi ir assim mesmo. Meu amigo, a quem muito estimo, foi quem me chamou. Fazia tempo que não saíamos juntos e até que, quando chegamos lá, fiquei um pouco mais animado. Olhei a festa com olhar de inquisição, relembrei porque estava ali e tentei me divertir. Meu amigo bebeu algo antes de me encontrar, pouco, mas com certeza isto o deixava mais animado do que eu. A música estava muito alta e os vários ambientes do local propiciavam os mais diversificados tipos de rostos. O lugar era enorme, um grande prédio público, era noite e nestas horas todos os gatos são pardos. O que me destacava das outras pessoas senão absolutamente nada? Acho que meu desânimo era a resposta para a pergunta. Olhava para aquilo tudo de forma chocha, estava chateado, nada me agradava. Eu mesmo não me suportava. Fomos entrando no que parecia a festa das festas, daquele dia ao menos.
Eram muitas pessoas distribuídas em muitas tribos urbanas, estavam todas por lá num processo recém iniciado de mistura. Muitas mulheres, mais do que homens. Muitas eram belas, a grande maioria delas. Vi algumas caras conhecidas, mas não quis fazer nenhum social. Estava apático no dia. Olhava a minha volta sem deixar de sentir um certo fascínio pela coisa toda. Por mais que eu não gostasse não dava para não admirar toda aquela gente se misturando. Logo na entrada eu vi um casal de garotas, novas, de uns dezesseis ou dezessete anos. Não fiquei assustado com o longo beijo que trocavam, o que me preocupava era como elas conseguiram entrar naquele lugar exótico e proibido para menores. Na certa eu é que as achava muito novas, talvez nem fossem de fato. A cena se repetiu mais três vezes, com outros casais de garotas noviças, antes que eu e meu amigo conseguíssemos chegar até o bar pra tomar algo. Perguntei-lhe se aquela era uma festa GLBT e ele respondeu que isso era mais do que comum nos dias de hoje. Repliquei-lhe que não nos meus dias de hoje. Chegamos ao bar e antes que pudesse escolher algo pra beber, vi um casal, só que desta vez de homens. Um mais novo e o outro mais velho, também se beijavam animadamente, cada qual com seu copo em uma das mãos e um cigarro na outra. Desviei o olhar da cena em busca da confirmação de meu amigo. Encontrei-o do meu lado já me estendendo um copão de cerveja com uma das mãos, com a outra entornava um golão de um outro copo do mesmo tamanho. Neguei com a cabeça e com as mãos espalmadas. Eu não bebia e ele sabia disso. Olhou-me com cara falsa de surpresa e me perguntou por que, respondi o que ele já esperava e ele só disse um “ótimo, sobra mais pra mim”. Típico de quem adora beber. Voltei-me para o barman e pedi-lhe um chá gelado. Respondeu-me que não tinham aquela bebida. Pedi-lhe um suco então e obtive a mesma resposta. Ele me ofereceu algum refrigerante e eu acabei por pedir uma água mesmo. Isso ao menos tinha. Peguei minha garrafinha plástica com água e saí com meu amigo, que segurava seus dois copos, um já quase no fim, mais para o interior da festa.
Passamos com dificuldade por um enorme salão onde muitas pessoas dançavam e se pegavam, até beijos triplos e quádruplos eu vi naquele lugar. Acho que nem me assustei direito, não dava tempo, cada passo era uma nova surpresa. Comecei a perceber que tudo ali era válido. Lembrei-me naquele instante dos dias que havia passado em estado de procura interior e exaltei-me com a discrepância da situação. Sorri naturalmente pela primeira vez naquele dia. Respirei o ar impuro profundamente não me importando com os odores de toda aquela fumaça, restabeleci-me e relaxei por fim. Estava ali, tinha que aproveitar o momento e aprender alguma coisa com ele. Quando dei por mim, já não estava acompanhado de meu amigo. Olhei a volta e nenhum rosto conhecido. Nenhum olhar cruzava o meu. Todos estavam absortos e compenetrados em suas respectivas diversões.
Saí dali, queria tomar um ar mais puro. Achei uma enorme porta de vidro do outro lado do salão e comecei a transpor o imenso espaço que nos separava. Era difícil passar ali, era quase impossível. Muito suei para cruzar o ambiente em meio a esbarrões, empurrões e puxões. Por sorte cheguei ao meu destino. Atravessei o grande portal e pude sentir a brisa da noite fria. O vento suave e fresco tocou-me no rosto. Antes que pudesse aproveitar o ar da noite um cheiro de erva chegou-me às narinas. Tossi sem querer e olhei ao meu redor. Havia um grande campo, com algumas elevações mais ao longe, mas toda a área visível estava tomada por pessoas a queimar seus fumos. Antes que pudesse me chatear novamente, pensei na experiência e sorri novamente. A noite ia ser longa e custosa, mas seria pior se deixasse meu mau humor tomar conta de mim. Fiquei ali olhando o luar por um bom tempo, bebendo em longos goles a minha garrafa d’água, tomando um fôlego novo para em seguida voltar para as festividades.
Por fim voltei, demorei-me um pouco tentando enfiar a garrafa vazia em uma lata de lixo transbordada de coisas. Toda vez que eu conseguia fixá-la em um lugar outra coisa caia. Não que o chão em volta já não estivesse abarrotado de coisas, mas as que eu derrubava eu apanhava. As pessoas me olhavam espantadas e riam de minhas tentativas. Por mais idiota que eu parecesse, no fundo adorava aquele momento de desfrutar as reações humanas que eu tanto gostava de ver. Bom, mas não comecei a contar este dia da minha vida pra falar de garrafas plásticas vazias...
Quando retornei para o olho da festa, com a mesma dificuldade que eu tive para sair, em busca do meu amigo, pensando em ao menos não ficar ali sozinho, notei algumas das pessoas que estavam ali dançando. Não o via em nenhum lugar, nada, nem sinal dele. Caminhava lentamente por entre os minúsculos espaços tentando não pisar nos pés que me massacravam. As pessoas que estavam por ali e que dançavam frenéticas não se importavam muito com o pouco espaço. Olhava de um lado para o outro em busca de algo para fazer ou mesmo deixar de fazer. Eis que, de repente, reparei num grupo de pessoas à minha direita, destas pessoas uma garota em especial me chamou a atenção. Aquela figura se destacava das outras pessoas em seus movimentos suaves, diferentes de tudo que estava ali. Ela girava em torno de si, como se estivesse a dançar, mas com os movimentos mais lentos do que os da música que estava tocando. Parei e a observei, era fantasticamente intrigante o seu jeito, as formas circulares que desenhava com seus braços no ar. Era muito linda a cena, e ela... ah, como era belo aquele corpo. Parecia uma bailarina de porcelana dançando em sua caixinha de música, mas não estava protegida pelas paredes da caixa, estava ali, no meio de toda as pessoas agitadas dançando em seus ritmos caóticos. Tamanho foi o apreço que senti por ela, por seus encantos. Suas formas magistralmente esculpidas. Era pequena e extremamente proporcional ao seu belo tamanho. “Que lindo corpo ela tem”, não parava de repetir-me isso. Não consegui ver o seu rosto de imediato, seu cabelo tampava-lhe a face, mas não duvidei de que fosse tão bela e simétrica como seu corpo. Nem me dei ao trabalho de olhar pra mais lugar algum, meus olhos estavam extremamente confortáveis visualizando somente os compassos de sua dança particular. Cada movimento seu era uma vida de meditação, mal conseguia piscar, estava realmente hipnotizado. Seus cabelos pareciam ser castanhos. Do tom mais claro e suave. Não conseguia enxergar direito, as luzes que piscavam no meio daquela pouca iluminação, só davam brecha para que eu visse seus giros. Gostei tanto de ficar ali a olhando que não percebi que depois de muito tempo que fiquei assim, parado e assistindo-a, uma mulher cochichou-lhe ao pé do ouvido apontando pra mim, provavelmente a sua amiga, ela tirou os cabelos da frente dos olhos e por fim pude ver seu lindo rosto. Era mais linda do que eu já imaginava, e não encontrei sequer um traço de imperfeição em seu rosto. Eu estava vislumbrado demais para perceber a cara de choque da amiga dela, como se tivesse visto um predador preparado para um ataque imediato. Mas ela... ela não... ela só fixou o seu olhar no meu, creio que se prendeu ao meu sorriso sincero, meio sem graça. Não estava constrangido, mas sequer mexi meu corpo do lugar, certo seria se fosse até ela naquele exato instante. Mas não, não me movi. No fundo a sensação de calmaria que eu emanava estava me confortando. Não queria arredar o pé dali, não podia perder um segundo daquele momento. Sabia que tinha que fazer algo, mas mesmo assim não tomei nenhuma decisão, exceto contemplá-la. Curiosa, foi a sua reação. Primeiro não tirou os olhos dos meus, ao contrário de sua amiga que expressava insegurança; depois, recomeçou a sua dança hipnótica sem mover seu olhar. Achei que ficaria assim devolvendo-me o encanto, mas foi se virando vagarosamente até dar-me as costas.
Sondei-lhe de baixo a cima e nada nela me fazia pensar diferente. Queria conhecê-la mais do que já a conhecia, sei que entendia sua expressão através de todos aqueles movimentos encantadores, mas sabia que seus mistérios eram maiores do que minha percepção. Seu corpo esguio dançava em lindas curvas, seus braços para cima, a festejar um belo luar, que mesmo não visto ali dentro poderia até ser sentido. Eis que do nada, outra pessoa a aborda e lhe entrega algo na boca, desta vez um homem, um garoto que lhe pusera um cigarro na boca. Vi, porque na hora que acendeu a chama do isqueiro deu pra ver o formato do baseado, destacava-lhe aquela coisa em seu rosto de perfil. Aproximei-me curioso. Ela voltou a ficar de costas. Minha curiosidade não diminuiu, só se acentuou. Olhava a garota de costas, ela não falava com ninguém, não se preocupava com ninguém à sua volta. Mesmo que seus amigos estivessem ali por perto. Por fim, ela inclinou a cabeça pra trás e soltou uma longa baforada de uma espessa fumaça branca que voou direto pra mim, não havia dúvidas: estava diante da perfeição imperfeita de meus encantos. Naquele instante, o cheiro de erva despertou-me de meu estado de idolatria, senti-me mal por alguns minutos, virava a cabeça de um lado para o outro, procurava a compreensão de alguém que pensasse como eu. Ninguém me via ali, a pedir socorro internamente. Era contra tudo o que eu pensava, detestava aquele tipo de coisa, e lamento hoje em dizer, detestava aquele tipo de gente. A minha vida toda eu condenava coisas como aquilo, parece bobagem falando assim, mas era um enorme tabu que eu precisava quebrar, ao menos se quisesse aquela garota. E ao pensar nisso, percebi que meus desejos por ela não haviam se afrouxado e sim se intensificado. Demorei um pouco para me entender, balancei a cabeça em sinal de reprovação, olhei mais uma vez à minha volta, desta vez com mais empenho, procurei por meu amigo, nada dele, apenas dezenas de pessoas repetindo os mesmos hábitos da mulher que despertava a minha libido. Ri comigo mesmo, como podia eu pensar coisas assim, praticamente todos ali fumavam ou bebiam, ou mesmo os dois, acho que o único que bebia água ali era eu. Sorri mais forte, pensando em como essas pessoas me viam. A aberração ali era eu. Quem estava fora do ambiente era a minha anormalidade pueril. Parei de pensar um pouco, e por fim decidi agir. Sabia que já era hora, mesmo que, naquele instante, eu estivesse contestando os meus princípios...
Caminhei até ela, aproximei-me o suficiente para conferir de perto suas medidas, era mais baixa que eu uns vinte e poucos centímetros, chegava quase na altura do meu queixo. Seu cabelo parecia macio e neste instante desejei tocá-los. Assim o fiz, entrelacei os meus dedos entre seus fios muito suavemente, não o suficiente para que ela não percebesse. Mas na verdade eu desejava que notasse. Ela se virou lentamente como a completar a volta de sua dança, sem se importar com quem estava ali para importuná-la. Parou de frente pra mim olhando-me, soprou a fumaça pra cima e tacou o toco do baseado no chão. Pisou em cima com um dos pés. Fitei-lhe sem dar importância ao resto. Vi sua mão pegar algo na mão de alguém, um copo de cerveja, tomou um longo gole, como a matar a sede. Pensei em sorrir-lhe, mas minha vontade me traiu, já estava com o sorriso aberto fazia tempo, nem havia percebido isso. Sem mover os olhos dos meus, ela abriu seu primeiro sorriso pra mim. Aquilo amoleceu-me o coração que fazia tempo não pulsava com mais vigor. Não perdi minha concentração, não me desesperei, como seria de costume em alguns anos passados. Estava seguro, puro de meus intentos, sabia o que fazer e não tive pressa para tal.
- Oi – disse eu em voz alta, sem rodeios. Ela só me sorriu de novo em seu estado de torpor acentuado, mas nada disse.
Repeti o meu “oi” e desta vez ela entrelaçou seus braços pelo meu pescoço como a contemplar-me de frente. Abriu outro magistral sorriso e disse junto ao meu ouvido: “oi, moço”. Sorri forte sem deixá-la se afastar de mim, segurando-a pela cintura. Ao envolver-lhe com meus braços pude sentir sua fina cintura esculpida. Tão rija e ao mesmo tempo tão frágil, parecia-me que podia se partir se mal manuseada. Estava, sem me dar conta disso, fazendo parte de sua dança. Meu corpo acompanhava o seu balançar desajeitadamente, deixei minha cabeça pendida para baixo para ficar mais perto da sua, nossos rostos se tocavam vez em quando no suave vai e vem. Por entre a cortina de fumaça, pude distinguir-lhe o doce perfume. Aroma delicioso que mais ainda me fazia querê-la.
Pensei em algo construtivo para dizer que talvez a animasse a sair dali, pensava em ter-lhe uma conversa reservada. Perguntei-lhe junto ao ouvido: “quer sair comigo para tomar um ar ali fora?” Ao que pareceu, minha pergunta não foi ouvida tamanho era o barulho, ela me perguntou um “que” audível o suficiente. Medi-lhe a fala e repeti a pergunta, desta vez ela entendeu e respondeu-me um “não” mais forte do que o seu anterior monossílabo. Já ia dizer mais alguma coisa quando ela, me puxando para junto de seu corpo, falou: “fica aqui” e completou um abraço forte. Aquele foi o abraço que me calou pelo resto do dia. Não a soltei e nem ela fez menção de o fazer. Ficamos ali abraçados sem nos movermos por muitas músicas. O movimento de nossos corpos era quase imperceptível, vez ou outra eu cheirava seus cabelos e quando isso fazia, retribuía-me ela com um afago de seu rosto no meu peito.
O tempo passou e a festa praticamente se apagou de nossas percepções. Parecia que estávamos sozinhos num imenso salão abandonado. Não dei espaço para minha razão tentar abrir a boca, calei toda minha racionalidade no mais íntimo de meu ser. O que valia ali, senão seu eterno abraço? Baseando-me no infinito mantive meus laços recém criados àquela criatura inalterados. A única coisa inteligível pensada foi: “viva este momento”