O Outro Menino - 3

(Parte 3)

Os dias se passaram , depois as semanas, e quando menos perceberam, os meses haviam ido embora. Entre Aiky e Kawabe nasceu uma singela amizade. Eles costumavam se esbarrar todos os dias. E mesmo com seu jeito gelado, Aiky passou a conversar muito mais. No fundo ele sentia pena de Kawabe, por ele ter perdido a mãe tão novo. Por ele ser sozinho na vida. Era exatamente como ele se sentia. Se identificava. Ele era sua única companhia. Com ele, Aiky sorria muito, coisa que não estava acostumado a fazer. Era inexplicável a forma como aquele pirralho lhe fazia bem. Tinha vontade de ajudá-lo em tudo que podia. Pois ele também se machucava quando Kawabe estava mal.

Foi em meados de Outubro que a escola teve uma excursão empolgante, onde os alunos poderiam viajar num navio da marinha, até o museu da ilha local.

- Há! A minha foi mais longe!

- Claro que não! A minha que foi!

- Aiky, assim não vale, você é maior do que eu.

- Mas isso realmente não importa, né?

- Não...

Estavam os dois juntos, atirando pedras no mar. Ambos sobre uma pequena ponte de madeira, na Ilha do museu. Vestiam os uniformes de frio da escola, além de toucas e cachecóis devido ao frio. Estavam afastados do grupo.

- Chocolate quente? – perguntou Aiky

Kawabe fez que sim com a cabeça e se sentou num banco de madeira, próximo à margem.

- Qual você quer?

- Com creme, é o meu preferido. – disse o pequeno, esfregando as mãos para se aquecer.

- Ok. Já volto. – Aiky passou a mão na sua cabeça e saiu.

Sozinho, Kawabe se sentia cada vez mais estranho. Não conseguia parar seu coração acelerado. Talvez fosse apenas o frio. Mas estava com medo. Medo de que talvez Aiky se zangasse com ele, caso descobrisse o que estava sentindo. Não queria perder seu amigo, estava preocupado.

Uma brisa fúnebre correu, e Kawabe se afundou nos agasalhos, sentindo o cheiro do mar inundar seus pulmões. Estava congelando.

- E aí, moleque! – berrou uma voz familiar do outro lado da ponte.

- Ah, não... – suspirou Kawabe

Dois alunos mais velhos se aproximaram. Kawabe os conhecia, porque eles nunca lhe deixavam em paz na escola. Estavam sempre buscando uma oportunidade de infernizar sua vida. Kawabe se encolheu, enquanto os olhava.

- Calma, miniatura, ninguém vai te machucar.

Kawabe olhou para trás, mas Aiky não estava vindo.

- Você e o Aiky são boiolas, né não? – perguntou um dos garotos, rindo

- Acho que são duas bichinhas! – disse o outro

- Cala a boca! – disse Kawabe, mesmo sentindo medo.

Os dois riram.

Kawabe continuou olhando para trás, e respirando fundo.

- Você é bicha, Kawabe! E o Aiky também é um veado!

- O que foi que eu te fiz, heim? – perguntou Kawabe, se virando para encará-los

- Nada... Só que eu não gosto de veados!

- A escola inteira já sabe. O pai do Aiky deu uma surra nele. O próximo é você, Kawabe.

- Isso é mentira! Aiky é meu amigo! – disse o garoto, sem saber realmente se a história contada por ele era verdade.

- Ele é um traidor. Antes de você chegar ele era homem, e era nosso amigo. Mas agora ele só fica com você! Ele é um merdinha!

- Não é não!

- Defende a sua namorada, bichinha!

Foi automático, Kawabe se levantou e avançou para cima dos dois. Eles estavam sobre a ponte de madeira. Obviamente tinham mais força e o empurraram, antes que ele desferisse o golpe. Kawabe rolou pela ponte e caiu no mar. Ele gritou e se debateu, parecia estar sendo eletrocutado. Sua respiração morreu. Tudo ficou escuro, como no sonho, ele afundava. Os dois garotos correram apavorados e quando menos esperavam foram atingidos por socos. Aiky bateu tanto nos dois que seus narizes sangraram. E ele não parava, parecia estar possuído. Foi quando se lembrou de que Kawabe estava na água congelada. Então mergulhou o braço e puxou Kawabe para a superfície, segurando pelo capuz de seu casaco encharcado. Foi exatamente como no sonho.

- Você tá legal? – Aiky o colocou deitado no banco.

Kawabe estava desmaiado. Sem saber o que fazer, Aiky retirou sua roupa molhada. Tirou o próprio casaco que usava e vestiu no garoto.

- Fala comigo, Kaw... Consegue me ouvir?

Kawabe abriu os olhos. Ele tossiu, enquanto a água salgada escorria de sua boca. Então entrou em desespero.

- Ei, ei, tá tudo bem, sou eu Aiky. – disse enxugando o rosto molhado do garoto. Em suas mãos havia sangue.

- Que foi que você fez... – perguntou Kawabe, com os olhos arregalados ao ver as mãos de Aiky cheias de sangue.

- Eles passaram do limite. Não vão te machucar de novo.

- Por que fez isso, Aiky?

- Por que fiz o quê? Salvei a sua vida?

- Você vai ser expulso. – Kawabe se levantou, tremendo de frio.

- Estou mais preocupado com outra coisa. – Aiky sussurrou

- Com o quê?

- Com você. – disse sério.

A história da briga rendeu um longo sermão dos professores. A maioria ficou perplexa ao ver tanto sangue escorrendo no nariz dos dois alunos. Aiky foi chamado pelo diretor. E por fim, ficou de acompanhar Kawabe até em casa.

Já estava escuro quando os dois chegaram na porta da casa de Kawabe.

- Tem certeza de que não quer ir ao hospital?

- Eu tô bem – Kawabe tirou a chave do bolso e entrou em casa.

- Teimoso... – Aiky entrou logo atrás

O pequeno cômodo estava vazio. Taylor não estava em casa. Na geladeira havia um bilhete, que ele logo reconheceu como a letra do irmão.

“Chegarei tarde hoje, use o dinheiro na estante para comprar seu jantar.

Taylor”

- Só um minuto, Aiky.

Kawabe viu o envelope na estante, mas não o pegou. Subiu as escadas até seu quarto e pouco tempo depois desceu com roupas secas. Aiky estava sentado no sofá.

- Tem certeza de que tá se sentindo bem?

- Aiky... – Kawabe se sentou do seu lado – O que foi que o diretor disse pra você...

- Bem... – ele suspirou – Ele me chamou pra dizer que sou um irresponsável e que bati em dois garotos menores de idade.

- Eu acho que você não me contou tudo ainda, sabe... Você foi expulso, não foi?

- Deixa isso pra lá, Kawabe.

- A culpa é minha.

- A culpa não é sua, ok?

Kawabe tossiu e deitou a cabeça no ombro do outro garoto, sem saber o que estava fazendo. Aiky passou a mão em seus cabelos, lhe fazendo cafuné. O coração dos dois estava batendo forte.

- Eu gosto tanto de você... – sussurrou Kawabe.

Se por um lado Kawabe tinha certeza de seus sentimentos, por outro Aiky não tinha noção do que estava acontecendo. Nem do que sentia. Precisava fazer aquilo terminar.

- Tenho que ir.

Os olhos de Kawabe se encheram de lágrimas.

- Ei, o que foi? – perguntou Aiky, que já tinha percebido. – Eu não posso ficar, Kaw.

Ele se levantou e olhou o pequeno de cabeça baixa, limpando as lágrimas no rosto. Algo dentro dele gritou, foi um sentimento terrível. Sem pensar duas vezes, Aiky segurou o rosto dele devagar e o beijou. Na hora sentiu nojo da própria atitude. Foi um beijo estranho. Tinha perfeita noção de que Kawabe não era uma garota. Este por sua vez, permaneceu de olhos fechados. Sentiu a respiração quente e nervosa de Aiky. Seu coração disparou. Tudo estava indo. Seus pensamentos, sua tristeza. Tudo desaparecia. Era outro mundo, onde nada era real e cada segundo durava uma eternidade.

De repente o calor cessou, a sensação era de um balde de água fria gelando a espinha. Os dois tremiam da cabeça aos pés.

- Por que eu tô fazendo isso... – Aiky se afastou. Seus olhos brilhavam.

- Fica calmo, eu não vou contar pra ninguém...

- Eu não podia ter feito isso – Aiky parecia consufo

- Desculpa, a culpa foi minha.

- Fica longe de mim, Kawabe. – ele se levantou

- Por que tá falando assim comigo? Eu já pedi desculpas, Aiky.

- POR QUÊ? POR QUÊ? VOCÊ SÓ SABE PERGUNTAR, KAWABE! DROGA, AS COISAS NÃO PODEM SER DESSE JEITO!

- Mas o que tem de errado nisso? Você não gosta de mim?

Aiky sentou, tentando se acalmar.

- Não tenho insônia, Kawabe... Eu fui à biblioteca porque queria ver você. Mas você interpretou tudo errado. Não era nada disso. – dizia, sem muita certeza - Eu não consigo mais dormir sem saber se você vai ficar bem. Eu queria proteger você! É apenas isso!

- Eu não ligo pro que vai acontecer comigo. Eu confio em você.

Ficaram em silêncio. Até Kawabe falar:

- Eu quero fugir daqui.

- Você é ingênuo, Kawabe! Você é uma criança e não sabe como é o mundo. Não vai fazer essa loucura! Você vai continuar aqui e terminar seus estudos!

- Você tem medo, Aiky...

Os dois se calaram. Aiky levou as mãos a cabeça, tentando respirar. Estava quase chorando. O que era praticamente um milagre, ninguém nunca o vira assim.

Kawabe o abraçou por impulso e fechou os olhos.

- Por favor, não me bate. – disse o pequeno

Aiky o abraçou também, enquanto lhe fazia carinho. Ficaram ali por vários minutos assim. Sem falar uma palavra, apenas abraçados. Como se nunca mais fossem se ver.

A porta da sala abriu sozinha e o irmão de Kawabe, Taylor, entrou. Ele olhou para os dois abraçados e pigarreou. Eles se soltaram. Kawabe levantou, enxugando o rosto.

- Vem, Aiky. – ignorava a presença do irmão

Aiky se levantou e sentiu-se constrangido ao ver Taylor parado ali. Este por sua vez parecia estar desnorteado com a cena.

- Você é o irmão do Kaw... Eu sou amigo dele, me chamo Aiky muito prazer. – ele estendeu a mão e deu um sorriso pouco convincente, já que seu rosto estava vermelho e molhado.

Kawabe ficou parado na porta, esperando, sem olhar para o irmão.

- Desculpe, o mal educado nunca me falou de você antes... – disse Taylor

- Acho que ele deve ter esquecido. – disse Aiky, constrangido.

- É... Deve...

- Boa noite, irmão do Kawabe

- Boa noite, amigo...

Lá fora, a rua estava deserta, quando os dois saíram.

- Bem... então... tchau... – disse Aiky

- Eu quero te ver de novo.

- Eu não sei... eu... preciso resolver o problema da escola...

- Vou falar com o diretor. Explicar que você só me defendeu...

- Não, Kaw... não se mete nisso, vai acabar sobrando pra você.

Ele fez a mesma cara que havia feito antes de Aiky o beijar. Parecia que ia chorar.

- Fica bem... – Aiky deu um beijo na testa dele e saiu pela rua escura.

Glaucio Viana
Enviado por Glaucio Viana em 29/01/2010
Reeditado em 29/01/2010
Código do texto: T2057396
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