O Natal de Marizete
Era véspera de natal. (O dia claro e límpido sorria para todas as pessoas, menos para Marizete).
Marizete abriu a porta da sala com o olhar distante e triste, fitou o tempo, e carrancuda ganhou a rua de chão batido. Deixou Mariazinha de castigo; “esta menina não tem jeito só vive me aborrecendo”. Mariazinha ficou cabisbaixa e lamurienta sentada na sua cama de colchão de palha. Uma boneca de pano feita por ela mesma era a sua companhia. Algumas lágrimas lhe desceram pelo rosto ressequido, mas animada por um súbito sentimento pegou seu pobre estojo escolar e uma folha de papel e, para não sofrer o castigo, começou resignadamente a desenhar.
A rua pela qual Marizete seguia era praticamente a única, como uma grande avenida; na verdade era uma estrada poeirenta que ligava o pequeno lugarejo a outras vilas e propriedades da região. Às margens da estrada cresceu o vilarejo.
Para cozinhar o seu feijão e um pedaço de carne que mal dava para as duas, Marizete tinha que percorrer uns dois quilômetros na ida e na volta, trazendo nos ombros uns 10 quilos de lenha, geralmente varetas secas de pés de café que ia pegando ao longo da estrada. Quando não conseguia as varas de café, tinha que levar uma machadinha para retirar a sua lenha das matinhas que ainda sobreviviam próximas à vila. Não tinha ninguém para lhe aliviar esta faina, da subsistência. ‘Bem que Mariazinha podia ser mais crescidinha’ porque assim me ajudaria neste mister, ia pensando Marizete. Viúva viu-se repentinamente sem a sua única filha, mãe de Mariazinha, mãe solteira, que se foi em plena flor da idade. Uma desajuizada que enrabichou com um motorista de caminhão, que ganhou o mundo e nunca mais ninguém a viu. Marizete então ia curtindo no âmago as amarguras que a vida lhe tinha imposto. Antes tinha força bastante, mas agora, com as pernas cheia de varizes e mal alimentada, já não estava suportando a carga diária e ainda tinha que cuidar da neta que mal e mal, só servia para lhe fazer companhia. - Mas não era verdade - Mariazinha a servia e muito, pensou. Lavava e areava as panelas de ferro, levava sua água à noite na cama. Fazia o café da manhã, ou o chá de hortelã quando faltava o pó e, varria a casa. Ah, se não fosse Mariazinha, não sei o que seria de mim, sozinha naquela casa grande que me foi deixada havia muito pelo meu marido!
Marizete não tinha profissão, lavava e faxinava, ganhando uns minguados aqui e ali. Vez por outra uma alma generosa supria sua dispensa. Agora já há algum tempo ninguém lhe dá nada. Quanto mais pensava nestas coisas mais carrancuda e amargurada ia ficando. Assim tornou-se ranzinza e os vizinhos já não a viam cordialmente. Foi criando arrelias e querenças com a neta.
Neste dia Marizete estava mais arredia ainda, sentia dores no estômago e nas pernas, mas pegou o caminho costumeiro, venceu o corredor de casas, passou pela igreja e, quando já na estrada propriamente dita, iniciou o seu trabalho. Amarrou então o feixe de lenha e soltou um palavrão quando uma farpa lhe penetrou a pele. Chupou o sangue que lhe escorreu pela mão, mas com determinação ajeitou como que uma almofada de panos velhos para lhe proteger os ombros, e jogou o feixe de lenha pra cima dos mesmos. Aprumou-se e, com decisão, iniciou o caminho de volta.
Com o suor a pingar-lhe de todos os poros, vislumbrou as primeiras casas da vila. Parou à sombra de uma árvore para aliviar o peso, e encontrar coragem para enfrentar o casario até a sua casa, a última no final da rua. Encarou a travessia e novamente jogou o feixe nos ombros. Seus pensamentos como que haviam sido apagados, caminhava como um zumbi quando ouviu uma voz da primeira casa: Feliz Natal Marizete. A carrancuda mulher olhou de soslaio, vergada pelo peso da lenha e viu a sorridente senhora que lhe cumprimentava. Fitou-a e abriu os lábios sem pronunciar uma única palavra. Continuou seu caminho: ora, veja esta, esta desmiolada me desejando Feliz Natal. Nunca me ofereceu um só copo de água, vendo o peso que carrego e agora isto....Mas já é Natal? Há quanto tempo não sei o que é Natal! E presentes então? Natal é só pros ricos! E vem esta sirigaita me desejar Feliz Natal. Continuou sua via-crúcis, quando na segunda casa, uma menina de uns doze anos, dirigiu-lhe a palavra: Feliz Natal dona Marizete, porque a senhora não pára um pouco e toma um copo de água, o sol ainda está muito quente. Marizete assustou-se com o convite. Esta é filha do vendeiro, vive no ‘mais bom’. Bem que eu gostaria de molhar a garganta de tão seca que está, quem sabe um refrigerante... bah, isto é ilusão... mas não quero me misturar com esta gente. Rosnou entre os dentes um obrigado ininteligível e retomou a direção da casa. Começou a remoer os pensamentos e se perguntou: o que há com este pessoal? Nunca me dirigiram a palavra e este Feliz Natal. Meu Natal nem infeliz é, nunca foi, pois não sei o que seja. Esta gente que se dane. Mas ao continuar a caminhada Marizete começou a se perguntar: Como será um Natal? Também gostaria de ter um. Muitos presentes, roupas bonitas, perfumes, perus. Acho que Natal tem que ter peru. E vinho. Meu marido antes de morrer me deu um gole de vinho no seu último aniversário. Gostei. Mas o danado teve que morrer de tifo. E me deixou sem nenhum sabor. Tenho 48 anos, se não fosse a pobreza, seria uma mulher quase bonita, conheço o meu corpo, sei o que tenho. Mas isso o bicho vai comer mais cedo ou mais tarde. Não tenho nada...
Na sua caminhada com o fardo sobre os ombros Marizete passa agora defronte da igrejinha. Resolveu parar. Jogou o feixe no chão e sentou-se na amurada que separa a calçada da igreja com a rua. Ah que alívio! Como seria bom uma massagem nos ombros, e um linimento de arnica nas pernas doloridas. Voltou os olhos para a igreja... a última vez que aí entrou foi no batizado de sua neta, e antes, quando do seu casamento. Não se relacionava bem com Deus; na verdade não o conhecia direito, não teve tempo. Ouvia sempre todos falarem bem de Deus, mas este nunca lhe apareceu, como esperar dele alguma coisa, nunca lhe deu nada... Talvez a esperança... esta, também está indo embora, mas gostaria de conversar com ele. Lembrara-se que nas casas nas quais fazia faxina, as pessoas sempre falavam bem de Jesus, que ele era o Salvador, Nosso Salvador. Ouvia e ficava a imaginar como Jesus salvava ou salvará as pessoas. Até agora se encontrava perdida. Perdeu o pai e a mãe ainda nova; ficou-lhe o marido e a filha por pouco tempo, e hoje apenas sua neta de 08 anos, cujo destino não se animava a considerar. A menina já anda meio fraquinha. Não entendia a ‘Salvação’. Mas sentiu pela primeira vez uma sensação da necessidade do afago de Deus. Do seu carinho. E gemeu, ah meu Deus!
-Parecendo refeita, levantou-se retornou com os feixes ao ombro e seguiu em frente. Quem a tivesse observado na sua caminhada inicial poderia notar que a sua carranca tinha agora aliviado um pouco; na sua face não havia mais a dureza dos músculos tensos. Seguindo o caminho, já no outro quarteirão, quando agora o peso da madeira e a aspereza da caminhada começavam a retirar-lhe o vigor, com o corpo já meio entorpecido e com as vestes grudadas à pele suarenta, sentindo-se suja, quase um animal de carga, ouviu uma voz da janela, ao rés da rua: Marizete, mulher, pare e vem tomar um suco, deixe este feixe de lenha no chão. Hoje é véspera de Natal. Vi você de longe e estou imaginando o quanto deves estar cansada. Marizete reconheceu a senhora, que muitas vezes a viu passar com os feixes de lenha pela rua. Por que só agora é que tem esta gentileza? O que está acontecendo com estas pessoas, será um milagre daquele a quem chamam o Salvador? Marizete suada, cansada, dolorida com sede e esfomeada, pára, olha para a senhora e agradece. Vou aceitar. Aliviada, largou no chão o pesado feixe. A senhora a fez entrar e sentar-se. A mulher suarenta e cansada suspirou ainda meio letárgica, mas acomodou-se. Uma bandeja com suco e biscoitos surgiu aos seus olhos. Embora não tivesse sido educada tinha certa vivência. Com respeito e meio sem jeito pegou o suco e o sorveu vagarosamente. Um frescor desceu pela sua garganta, que paulatinamente foi refrescando todo o corpo. Um ligeiro frêmito acometeu seu ser. Sentiu o prazer do descanso. Parecia que todo o peso da carga ia aos poucos sendo retirado de seus ombros. Ah! Que bom suspirou internamente. Permitiu-se então comer uns dois biscoitos e levantou-se para retirar. A senhora então lhe trouxe um embrulho e disse-lhe; são apenas uns quitutes e algumas frutas para você e Mariazinha. Feliz Natal. Marizete olhou fixamente sua acolhedora senhora e gaguejando: não sei como lhe agradecer, certamente 'O Salvado'r o fará por mim, disse lembrando-se do aniversariante do dia seguinte, que na verdade não o conhecia, só ouvira falar. – Sou eu quem agradece, falou a interlocutora.
-Seguindo seu caminho, enxergou de longe a sua casa. Primeiro sentiu pena de Mariazinha a quem tinha deixado de castigo. A menina não merecia ser maltratada. Até a ajudava muito e era boa aluna na escola. Em seguida visualizou algo diferente em sua casa. Apressou o passo e já agora podia perceber um ‘bouquet’ de flores variadas, adornado com fitas vermelhas e verdes, e um cartaz afixado à simples porta de sua casa que dizia: Feliz Natal.
Hoje, realmente é outro dia. Marizete jogou o feixe de lenha ao lado da casa e abriu a porta. De pé, Mariazinha antes que sua vó abrisse a boca: vó a senhora me perdoa, tive que sair do castigo, pois algumas pessoas bateram na porta trazendo presentes para a senhora e... Marizete não deixou Mariazinha terminar, segurou-a com carinho pela mão, olhou para o interior de sua casa e viu sobre a mesa arrumada com uma toalha de linho branco, vários presentes ainda em seus pacotes, um peru com farofa e azeitonas embrulhado em papel celofane, e uma garrafa de vinho. Mariazinha então continuou... vó tenho um presente pra você... e, mostrou na folha de papel de desenho escolar, um presépio desenhado por ela com os dizeres: Para a minha querida vó - FELIZ NATAL- Eu te amo.
Duas lágrimas rolaram de sua face, então plácida e com um grande abraço apertou ao peito a sua neta. Também te amo.
No seu interior então uma voz gritou: Feliz Natal Marizete, Sou EU.