Rumores sobre Anjos
Incompreensíveis, e talvez por isso, incompreendidas.
Eram assim consideradas as palavras daquele pobre louco.
Motivo de chacota para as crianças, vergonha para a família e temor para a população. Era essa a realidade do infeliz chamado Miguel, pois nem a beleza de sua pele pálida, de seu frágil corpo magro, ou ainda de seus olhos azuis seriam capazes de ofuscar a falta de seu juízo, a doença de sua mente, e os pecados de seu coração.
Pois bem se sabe, a loucura não é nada, senão um castigo divino, ou pior, possessão demoníaca. A família rezava para que fosse o primeiro, mas os moradores daquele vilarejo afirmavam sem dúvida que aquilo era fruto de constantes ataques de súccubos, e não faltavam testemunhas para falar a respeito dos gritos e gemidos que se escutavam nas noites de lua nova, advindos do modesto quartinho isolado que o rapaz ocupava.
Seu crime, tão grande, além de alegados furtos, era a heresia.
Pois mesmo sujo, ele entrava na igreja. E, pois mesmo louco, ele alegava falar com os anjos.
“Um absurdo sem tamanho! Uma falta de respeito!” –Bradavam, irados, os outros camponeses.
Era mesmo inadmissível que logo o louco, logo o endemoniado, tivesse contato direto com os tão aclamados seres celestiais.
“Injúria! Injúria!”
E por isso, cada vez que o jovem era flagrado em suas intermináveis e infrutíferas conversas com algum dos bondosos arcanjos, uma merecida surra lhe era dada, pois quem sabe, graças à dor embutida em cada uma das marcas em seu corpo, as máculas em sua mente pudessem ser atenuadas, deixando que assim a bondade do grande Deus Todo Poderoso pudesse descer então sobre aquela alma condenada.
Mas o ingrato, infeliz, sempre fugia das pancadas, descartando assim a misericórdia que lhe era oferecida pelos bons homens.
E como se não bastasse, o destino de suas fugas era sempre o mesmo: A modesta capela, onde o pequeno abrigava-se nos braços do jovem, bondoso e inconseqüente Padre Carter.
Carter era filho de nobres, mas fora deserdado, embora que extra-oficialmente. O motivo fora muito justo: Onde já se viu um primogênito recusar-se a suceder seu pai e casar-se com uma moça de boa família, apenas porque a donzela tinha uma beleza tão peculiar que fazia com que nenhum cavalheiro quisesse fazê-la deixar de ser donzela.
Culpa dos dentes tortos e olhos esbugalhados, provavelmente.
Desesperado para fugir daquele casamento sem amor e sem futuro, o filho mais velho declarou.
"Quero ser padre!"
A mãe desmaiou, no momento não se soube se havia sido de desgosto ou felicidade. A segunda opção parecia mais correta a princípio, pois se acreditava que a formosa e correta senhora era uma verdadeira santa. Não havia uma tarde que aquela beata não fosse à Igreja, e por tão grande devoção, imaginou-se logo que não haveria felicidade maior para tal mulher do que ver seu primeiro filho entregando-se de coração e corpo a Deus.
Essa teoria, é claro, foi deixada um pouco de lado quando começaram a correr boatos que contestavam os motivos de tão constantes idas à Igreja. O zelador que cuidava da catedral, apesar da idade, parecia ser um senhor repleto de energias e sorrisos faceiros. Mas isso é uma outra estória, e boatos não devem ser levados a diante... Não quando envolvem a nobreza.
O irmão caçula, Adalberto, quase deu um pulo, tamanha sua exaltação. Como era o único homem além de Carter naquela prole de 6 rebentos, estaria livre da obrigação de entregar-se ao sacerdócio, e ainda herdaria as terras e riquezas de seu pai.
Seria perfeito, se não fosse por uma leve preocupação que agora o afligia: Se não mais seria padre, como haveria de conseguir perdão pelas dezenas de moças e meretrizes com as quais se deitara sem medo, em sua pressa para aproveitar a vida antes de ser mandado ao seminário?
Isso era o de menos, pensou em seguida, com um sorriso no rosto. Bastar-lhe-ia comprar uma lasca da cruz de Cristo, e tudo haveria de resolver.
As irmãs, as quatro, como as boas moças que eram, educadas como verdadeiras damas, não se manifestaram. Não ousariam abrir a boca. Não quando uma veia parecia prestes a estourar na testa do pai.
O Duque não fez nada de mais. Apenas repudiou seu filho, chamando-o dos mais impronunciáveis adjetivos, e em seguida o mandou à Serenìsima Repùblica Vèneta, onde mantinha negócios, para estudar junto à Ordem dos Teatinos.
A donzela, ao que consta, permaneceu donzela, e seus pais, vendo que não lhe conseguiriam mesmo um bom casamento, entregaram-na a um convento. Pelo menos Deus haveria de querê-la.
E com isso, Carter recebeu seus sacramentos, virou padre, e foi parar como responsável pela paróquia de uma vila de camponeses em um canto qualquer.
E apesar de ter abandonado todos os luxos de sua antiga vida, não se arrependia de sua decisão. Ele era amado e respeitado por todos lá, apesar de sempre ficarem lhe dizendo para não permitir que o pobre garoto sem juízo entrasse na igreja.
Mas como Carter tinha um coração tocado por Deus, jamais fecharia as portas de sua igreja para ninguém. Muito menos para aquele pequeno, que sempre o procurava em desespero, quando as lágrimas molhavam sua face e o sangue manchava suas roupas.
E como sempre, Carter o abraçava, como o pai que deveria ser para os demais filhos de Deus, e com sua voz doce, dizia-lhe:
-Acalma-te, Miguel.
Miguel chorava mais forte, apertava-se mais contra Carter, e terminava por fim limpando seu rosto ensanguentado na batina branca do Padre, o qual nunca se zangava. Nunca se zangaria com Miguel, pois sabia que o garoto, apesar dos 16 anos de idade, não tinha noção das coisas, e por isso portava-se sempre como a mais pura das crianças, amedrontada, desesperada por carinho e proteção.
Isso acontecia quase todos os dias, não importava quanto Carter pedisse para que os camponeses não mais machucassem aquele garoto. Não tinha como mudar a concepção repleta de ignorância que estava cravada na mentalidade daquele povo. Aquele menino tinha algo com o demônio, era unânime, e por isso era certo.
Mas toda vez que Carter olhava para aqueles olhos, tão belos em sua pureza azulada, o padre se perguntava se não seria aquele diante de si um anjo, que caído dos céus, não compreendia o mundo ao seu redor, e por isso passava por louco quando sua inocência sem fim era comparada à maldade que habitava o coração de cada homem.
E como era obvio, apenas um anjo seria capaz de compreender os demais de sua espécie.
E tendo isso em mente, dia após dia, o padre limpava e cuidava dos ferimentos do pequeno, oferecia-lhe pão e frutas, e depois passava o resto da tarde escutando as histórias que o jovem lhe contava.
Eram histórias fantásticas, que segundo Miguel, eram passadas pelos próprios anjos. O que mais espantava o Padre era que aquelas histórias pareciam por vezes coerentes demais para ser o simples fruto de uma mente doente, mas não constavam em nenhum dos livros da bíblia, nem mesmo nos proibidos, os quais o padre, curioso como apenas ele conseguia ser, dera um jeito de ler sem permissão em seus anos de estudo eclesiástico.
-Diga, Miguel, com quais anjos tu já falaste?
O pequeno olhou para cima, fitando por um tempo o teto, como se forçasse sua memória.
-Muriel, Josiel, Saquiel, Sariel, Tariel, Israfel, Rosiel, Rosifel, , Jegudiel, Azrael, Abdiel, Serafiel, Joel, Camael... –O pequeno foi interrompido então pelo Padre, que viu que aquela lista deveria ser grande demais.
-Já falaste com aquele que tem o mesmo nome que tu? –O Padre perguntou sorrindo.
-O Arcanjo Miguel? Não... Mas o Arcanjo Gabriel sempre me fala dele. Fala que ele é o primeiro dos Arcanjos, que é muito justo e correto. –Falou contente, feliz por ter o mesmo nome que alguém tão importante. –Sempre quis falar com ele, mas acredito que ele seja ocupado demais.
-Deve ser mesmo, meu pequeno... –Disse Carter, passando sua mão de leve pela cabeça do mais novo, ajeitando-lhe os fios loiros e fazendo-o sorrir ainda mais. –Já está ficando noite, Miguel. Deves ir para tua casa antes que escureça.
O sorriso do menor morreu no mesmo instante.
-Eu não quero ir... –Falou baixinho e manhoso, encolhendo-se um pouco, abraçando os próprios joelhos. –Deixa-me ficar aqui na igreja, por favor!
-Mas precisas ir, ou tua família ficará preocupada.
-O Padre Carter sabe tão bem quanto qualquer um que o que eles mais querem é que eu morra...
-Não fales besteira, Miguel. Tua família te ama, e por isso deves ir.
-Até o padre fala que minhas palavras são besteiras? –O pequeno perguntou magoado.
-Não o que falas sobre os anjos, mas o que falas de tua família. Eles podem ser duros contigo, mas é porque te querem bem...
-O Padre também me quer bem, e nem por isso me maltrata... –Disse tristonho, andando lentamente em direção às portas da Igreja. –Mas como o Arcanjo Baraquiel disse que eu devo sempre obedecer o Padre, eu me vou... Obrigada pela tarde, Padre Carter...
-Tenha uma boa noite, Miguel... E comporte-se. Lembre-se do que eu falei: as pessoas não conseguem entender esse seu dom, pequeno, então não fiques contando disso para elas.
O jovem apenas se virou antes de sair, seu olhar ainda triste, mas resignado.
-Mas ‘eles’ dizem que falar de Deus é o meu dever, o que posso fazer?
O padre viu-se sem palavras, enquanto o pequeno saía da igreja.
Podia estar ficando louco, tão ou mais quanto Miguel, mas era fato que a cada dia o Padre se sentia mais inclinado a acreditar naquelas coisas que o jovem lhe falava.
E aqueles benditos rumores sobre os anjos ficavam a dar voltas em sua cabeça.