Roubo de Marcas ( 1ª parte )
Roubo de Marcas
A chuva caia impetuosamente. O parabrisa embaçado não permitia uma boa visão. Isto dificultava imensamente a viagem de Helena. Ela já supunha ser “catastrófica” tal viagem de negócio ao sair de casa naquela manhã. E, naquele momento, seu carro dificilmente rompia pela estrada. Helena sentia um medo terrível! Desde pequena, tinha muito medo de chuva, um trauma! Evitava sair se chovesse, principalmente, sozinha.
Era advogada trabalhista. Estava a serviço da Agropec — uma respeitada empresa de produtos agropecuários e veterinários —, e fazia parte do grupo de assessores jurídicos da empresa. Então, foi designada para defender a empresa numa acusação sobre os produtos agropecuários vendidos com propaganda enganosa.
O cliente da empresa era um dos maiores criadores de gado nelore do país, Ernesto D’lano, e denunciante da fraude. Ele havia feito uma denúncia em jornais de grande repercussão nacional. A integridade da empresa estava em jogo com as suposições negativas na mídia e dos milhares de clientes espalhados por todo o Brasil.
Habitualmente, Helena, não tinha o encargo de representar a empresa em confrontos diretos como acordos e audiências. Como a Agropec tinha negócios na Argentina, dois advogados representantes da empresa estavam por lá. Pela urgência do caso, Helena foi resolver a pendência com cliente insatisfeito e fazer uma negociação. A empresa tinha convicção de que a denúncia era fraudulenta, visto que possuía um rigoroso controle de qualidade de seus produtos.
D’lano — o empresário autor da denúncia — tinha o escritório empresarial em Goiânia, razão de Helena fazer a viajem de carro. Não era assim tão longe de Uberaba onde residia.
Saiu logo cedo, antes que o dia clareasse. Supunha estar em Goiânia por volta do meio-dia. Tudo corria muito tranquilo. Tranquilo demais... até adentrar no percurso Catalão/Pires do Rio. E justamente nesse percurso teve um pequeno problema com o carro: estourou um dos pneus dianteiros ao cair num dos muitos buracos da estrada, advindo da falta de administração do governo. Onde estariam os milhões de reais recolhidos de multas de trânsito e de IPVA(s) — pensou Helena, indignada, pois estava deveras encrencada.
Até sabia trocar um pneu, mas a roda havia amassado! Impossível seguir viagem! O lugar, literalmente, deserto! Dava medo. Tentou contatos pelo celular. Em vão! Naquele sertão goiano se viu completamente sem sinal. Restou-lhe rezar para que algum motorista mais destemido parasse ao ver seu carro no acostamento. Não teve esta sorte. Tentou se acamar. Pense, Helena... pense... dizia a si mesma, andando ao lado do carro. Manobrou o carro até um local mais seguro. Esperou por uma longa hora e meia. Uma viatura da polícia rodoviária passou pelo local. A patrulha acionou pelo rádio o socorro a ela. Mesmo assim, esperou um bom tempo pelo guincho. O serviço na borracharia foi rápido. Retornou à estrada. Nunca mais sairia sozinha e de carro, somente de avião ou de ônibus — conclui mentalmente.
Chegou a Goiânia por volta das dezessete horas. Procurou imediatamente o Dr. Ernesto D’lano, o grande criador de “caso” e de gado.
Entrou com o carro no estacionamento de um elegante prédio comercial da Avenida Araguaia no centro de Goiânia. Ali ficava o suntuoso escritório de negócios da “D’lano’s Nelore do Brasil S.A”. A empresa contava com imensas fazendas em Goiás, Minas Gerais e Tocantins, onde criava gado de corte para exportação e os melhores exemplares de nelores — prêmios constantes em exposição de gado. Eram vendidos em leilões milionários do Agro negócio brasileiro.
Devido à hora, imaginou que o escritório estivesse fechado, ou, não iria encontrar o Dr. D’lano. Era sexta-feira! Não havia agendado o encontro. Temia uma recusa por parte do empresário. Dirigiu-se a um empregado engravatado.
— Boa-tarde, senhor... Eu estou à procura do Dr. D’lano.
— O Dr. D’lano já encerrou seu atendimento hoje. Retorna na segunda-feira.
Helena se identificou:
— Sou a Dra. Helena de Santana, representante da empresa Agropec Empreendimentos Agropecuários de Uberaba. Preciso encontrar o Dr. D’lano. Será que eu poderia visitá-lo em sua residência?
— Não creio, senhora... Ele foi passar o fim de semana no sítio.
— Se não for muito longe, talvez, eu possa ir até lá! Claro, se ele não se incomodar em me receber — tentou ser gentil ao máximo.
— O sitio fica na Fazenda Santa Inês, município de Cocalzinho, uns 129 km da capital. Eu posso ver se ele receberia a senhora. Vou tentar falar com ele.
O funcionário, depois de uma ligação no celular, descreve num papel as orientações do patrão de como ela deveria seguir para encontrar a fazenda. Helena fez um lanche rápido. Retornou à estrada. Sua intenção era fazer o percurso ainda com a luz do dia. Essas eram as raras ocasiões em que se agradece por estar no intolerante horário de verão. Como seu dia já não havia começado bem, logo que saiu da cidade, São Pedro abriu as torneiras. Começou a chover torrencialmente! Eu mereço... — pensou.
O rendimento do carro não era dos melhores, a estrada desconhecida, curvas acentuadas, não quisera arriscar mais do que devia. Seguiu lentamente. Tentava observar as placas de sinalização. Dirigiu com muita dificuldade por mais de uma hora. Encontrou um posto de gasolina após um cruzamento. Parou para abastecer e para se informar.
— Moço, eu estou tentando chegar a Cocalzinho, mas estou achando longe demais... Pode me informar se já está chegando?
O rapaz deu um sorriso e disse.
— Senhora, o trevo de Cocalzinho ficou lá atrás... uns vinte quilômetros.
Helena não acreditou! Por pouco não desistiu. Esfriou a cabeça e calmamente retomou. Desta vez, com mais atenção. Marcou no velocímetro os malditos 20 km. A chuva, agora mais fina, permitia ver com mais nitidez as placas indicadoras. Viajou quase uma hora. Enfim, chegou ao bendito trevo já à noite: Cocalzinho 5 km! Entrou na cidade. Consultou o papel de indicação do funcionário da D’lano’s. Seus miolos ferveram! Mais uma vez percebeu sua ignorância. Não se ative de que a entrada da Fazenda ficava a 5 km antes da entrada da cidade.
Volta à rodovia. Com muito custo, finalmente, encontrou a indicação, Uma placa adaptada com um disco de trator, lia-se: Fazenda Santa Inês a 12 km. A noite já havia chegado sem que percebesse, a chuva aumentava, a estrada cheia de galhos açoitados pelo vento, alguns galhos vinham de encontro ao parabrisa. Sentia realmente muito medo! Medo da chuva enfurecida! Medo da noite! Daquele lugar desconhecido! Tudo a aterrorizava: a estrada de terra perigosa, o chão vermelho coberto por uma camada de cascalho, curvas faziam o carro derrapar, meu Deus! Dirigia vagarosamente, e em alguns trechos o ponteiro chegava a zerar o velocímetro fazendo-a reiniciar a partida. Hoje é seu dia de sorte, Dra. Helena... — pensou, sorrindo para si raivosamente.
Numa das várias paradas, sob o flash de um relâmpago, percebeu um vulto de um homem em sua direção. Era alto e vestia uma capa preta, não podia ver o rosto dele coberto pela capa... mas via as mãos. Entrou em desespero! Ele trazia consigo uma lanterna numa das mãos e na outra, um enorme facão. Helena gritou desesperadamente. Conferiu os vidros do carro... pensou em algo para se defender, tentou ligar o carro e manobrá-lo para voltar... O homem de preto a alcançou. Ele segurou o capô do carro na tentativa de impedir que ela prosseguisse. Ela pensou no que trazia no veículo, alguma coisa para se defender. Que tola! Nunca havia pensado em se prevenir de tal situação. Nunca quis possuir arma de fogo. Tinha mais medo delas em suas mãos do que nas mãos dos outros.
O homem percebeu que ela está apavorada. Deu a volta e bateu levemente no vidro do carro com gestos para que ela se acalme; com muito custo, ela entende que ele está tentando dizer que é o dono da propriedade. Ele era o bendito D’lano. Então, abre o vidro do carro devagar, receosa e envergonhada. O homem se apresenta falando alto sob a forte chuva:
— Desculpe-me se a assustei. Sou Ernesto D’lano, tivemos problemas com a chuva... Caiu uma enorme árvore numa curva bem ali adiante... Como sabia que viria, vim lhe avisar.
— Você me assustou mesmo! Ainda mais com esse facão!
— Ah... desculpe! Eu tive que trazê-lo para cortar os galhos da árvore. Não adiantou. Ela é muito grande. Você terá que vir comigo — falava ele quase gritando por causa do barulho da chuva, dos relâmpagos e do vento.
— Sou a Dra. Helena de Santana. Venho da parte da Agropec. Desculpe pelo transtorno. Sou muito medrosa mesmo. Ainda mais a esta hora da noite e sozinha.
— Você tem toda razão de ter medo. Não devia andar sozinha. É muito perigoso. Venha! Vou levá-la para casa. Fica a uns três quilômetros daqui... Meu carro está depois da árvore caída.
Helena pegou a bolsa, uma pequena valise, trancou o carro e saíram. Ele a amparou com o guarda-chuva. A lama fina grudava nos seus sapatos pesando-os ainda mais. De repente, lanterna apaga sem mais nem menos. Mas ele a conforta:
— Não tenha medo. Meu carro está bem ali adiante.
O clarão de um relâmpago iluminou a estrada. Helena vê a enorme árvore caída impedindo a passagem. Vê também o carro de D’lano do outro lado da árvore. Sente-se mais confiante. Ele a auxilia a pular os galhos com imensa gentileza e cuidado. Helena pensou: como seriam as negociações com aquele homem tão gentil quando falassem sobre negócios. Afinal, ele estava em litígio contra a empresa que ela representava.
Enfim, a sede da Fazenda.
Uma casa de dois pavimentos, estilo colonial. Apesar da noite, Helena pode perceber uma linda e majestosa casa.
— Entre! Vou pedir a Esmeralda para preparar um banho quente e uma boa refeição para você. Com certeza, esta cansada e com fome também.
Esmeralda era uma senhora de meia idade, feições serenas e sorriso largo. Conduziu Helena a um dos quartos de hóspedes, indicou a ela uma toalha e o banheiro.
Ao sair do banho, Ernesto D’lano a esperava na sala de jantar. Agora, sem aquela capa de chuva, Helena pode admirar aquele homem forte, rosto bem delineado... cabelos ondulados, ainda molhados pela chuva, caíam em mechas em sua testa... olhos negros, expressivos... e aquela boca, carnuda, destacava das demais expressões da face dele. Não era tão jovem, nem um velho fazendeiro que imaginara ser. Era uma figura digna de se apreciar.
Esmeralda preparou uma boa refeição. Helena percebeu que já haviam jantado há pouco.
— Sente-se Dra. Helena. Sirva-se à vontade. Eu somente lhe farei companhia. Jantei ainda há pouco.
— Obrigada, Dr. D’lano... Confesso que não esperava ser recebida tão calorosamente assim... Ainda mais, pelo motivo de minha visita.
— Não tem com o que se preocupar. A minha briga não é com você... — e riu levemente. — E, pode me chamar de Ernesto, me faz parecer mais jovem — tal declaração deixou Helena um pouco mais à vontade.
Obs: Este conto tem sequência na proxima postagem.
Maria Helena Camilo