O lamento de amor fantasma
Um canto lamuriento ecoa pela enseada todas as noites. É assombração. Não daquele tipo que causa males a ninguém, ou persegue os navegantes. Apenas pranteia, toda a noite, com dor que transpassa até o mais duro coração. Do seu canto pouco se pode entender, mas dizem que trata de um amor que se foi há muito tempo... Ou que ainda aqui continua; preso nas paredes da caverna da Baía das Ilusões Perdidas.
Conta a lenda local, que há muitos e muitos anos, no inicio do século XIX, um navio afundou numa noite de tempestade, no meio do mar revolto, negro com o breu, que abocanhava qualquer um que na imensidão salgada se aventurasse.
Na manhã seguinte, curiosos com o monte de entulho da praia, foram todos os moradores da modesta vila da enseada olhar o que se passava.
No meio do monte de restos de madeira e cordas do navio afundado, que surpresa achou a filha de um pescador! Um homem estava ali na areia caído. Céus, e estava vivo!
A moça chamava-se Aurélia e era bela como se fosse uma sereia. Não, sereia não... Tinha um quê de inocência. Talvez uma doce fada, saída de um conto... Ou simplesmente uma menina de sorriso franco e lábios rosados, cuja pálida pele contrastava com cabelos negros como a escuridão da noite e os olhos tinham um escuro brilhante, duas safiras.
Chamou o pai, aflita, e ambos trataram do homem, em sua modesta cabana.
Logo o naufrago se restabeleceu, bem cuidado por Aurélia, e estava a contar para ela as histórias de sua terra.
A doce menina não demorou a se encantar com tão belo e charmoso forasteiro. Tinha olhos da cor do mar e voz aveludada e seus cabelos eram da cor dos raios mais claros do sol. Era gentil com ela sempre que estavam juntos.
Não tardou, os dois jovens se apaixonaram, vendo as ondas do mar ao meio dia e fugindo para mergulhar nelas à meia noite.
Amando um ao outro com intensa paixão, o estrangeiro que atendia pelo nome de Miguel resolveu que pediria a mão de Aurélia e ela iria com ele retornar a sua terra.
No entanto, qual não foi para os dois o desespero, quando descobriram que Aurélia tinha casamento certo em nome de uma antiga divida do pai.
De imediato, o pai da moça mandou embora Miguel e disse-lhe que voltasse sozinho para seu país, deixando para trás a sua filha, que tinha dono e não lhe pertencia.
Os dois amantes, separados, em triste angustia mergulharam.
Mas na enseada Miguel permaneceu, esperando quieto para descobrir o nome daquele que deveria desposar a sua doce e amada Aurélia.
Ao conhecer o tal sujeito, chamou-o para um duelo na caverna mais próxima das ondas que havia.
E lá se viram a meia noite. O céu lá fora estava escuro, começava outra feia tempestade.
Mas a natureza não deteria nenhum dos fatos predestinados daquela noite.
Começou a luta, que foi feia e exaustiva. Por duas horas as lâminas dos floretes dos dois homens se encontraram, tentando vencer com um golpe o inimigo.
E por fim, com satisfação, Miguel jogou o adversário no chão, cravou-lhe bem forte a espada, já esperando reencontrar e ter nos braços Aurélia como sua esposa. O relâmpago ilumina o corpo moribundo, e faz sair um grito da boca de Miguel. Como é que fora perfurar com sua espada o coração da própria amada?
Jazia em frente de seus olhos a pálida Aurélia com o peito a sangrar, enquanto seu noivo, a poucos metros ainda segura a espada, olhando sem reação.
Desesperado, Miguel questiona o que fazia ali sua doce fada e ela responde que viera avisá-lo que havia pronta uma armadilha e se saísse dali vivo, morto ele logo estaria.
E ao terminar o dito, sorriu demente e desfaleceu-se de todo. E o grito de Miguel encheu outra vez a caverna, enquanto ele sacudia o corpo inanimado, tentando encontrar maneira de fazê-lo viver outra vez.
No momento em que pranteava a morte tão inesperada, a espada do seu inimigo em seu coração foi cravada. Um assassino merecia vingança, e agora, a morta e seu assassino estavam ali caídos.
Ninguém sabe onde foram enterrados esse Romeu e essa Julieta da vila da enseada, mas ouvimos toda noite o pranto que vem da fenda na rocha, que começa baixinho e se deita pela madrugada, ecoando friamente pelo mar afora. Um dueto de amor de dois fantasmas...