Recomeçar
Pensando bem o relacionamento com Falcão tinha sido um desastre.A falta de companheirismo, de respeito e de sensibilidade fez com que Luisa se transformasse em um ser que ela mesma desconhecia.Mesmo assim, mergulhada numa crise de identidade, desfigurada e num surto de loucura e amnésia, tentava levar a vida adiante, por que infelizmente quando o Mundo desaba ao nosso redor, o tempo não pára afim de que possamos retirar os escombros e recomeçar de novo.
Tinha seu emprego, o salário era pequeno sabia disso, mas era dele que vinha seu sustento, o seu pão de cada dia, e não podia se afundar ainda mais em sua depressão,precisava erguer a cabeça e olhar pra frente, por que nada e nem ninguém merecia tamanha aflição.Precisava driblar a vergonha que sentia das pessoas que a olhavam com pena, a cara de reprovação dos pais que repetiam em um coro a frase”bem que eu te avisei”,a especulação da vizinhança que não entendia ao certo o que havia acontecido e tentavam de todas as formas encontrar meios de descobrir a verdade...
Era hora de passar por cima daquilo tudo e encontrar uma forma de restaurar a sua vida...
Lembrou dos cinco anos que passou ao lado de Falcão.Era assim, meiga, inteligente, carinhosa e tinha um senso de humor fora do comum.Era a nora que toda mãe pediu a Deus.Estudiosa, sabia falar inglês e espanhol, tocava piano nas horas vagas e fazia trabalho voluntário num hospital para crianças com câncer.
Tinha um coração enorme, acreditava nas pessoas e em Deus, era religiosa, ia a igreja todos os domingos somente para agradecer as maravilhosas graças concedidas a ela, era boazinha, mesmo sem saber que não era tão legal assim ser classificada como uma pessoa dotada de tamanha bondade.Até então, não sabia o que era sofrimento, o que era passar noites sem dormir, o que era se sentir feia, maltratada, cansada e sem esperanças para viver.
Tentou lembrar do dia em que conheceu Falcão.Ele era assim, loiro, alto, olhos esverdeados, conquistador-logo se apaixonou.Gostava de cantar e era essa a sua ocupação nos últimos dez anos.Havia deixado os estudos em segundo plano para se dedicar à música, e era com o esse pouco dinheiro que recebia nos shows que o mesmo se escorava.Dizia sonhar em gravar um cd e fazer muito sucesso, quem sabe uma gravadora lá de São Paulo não se interessasse em seu estilo e o convidava para um teste?
Mesmo com a censura dos pais, Luisa quis arriscar, também não podia passar o resto de sua vida assim, sentada e esperando o príncipe encantado chegar montado em um cavalo branco com um pedido de casamento.
Não queria ser preconceituosa e Falcão podia sim melhorar de vida, crescer, se tornar um grande artista, só lhe faltava oportunidade.
E Falcão também via com bons olhos a menina meiga que só fazia sorrir. Desde o dia que a conheceu na festa de Virginia, não parou um só momento de pensar naquela menina delicada de vestido cor de rosa rodeada de amigos.
Queria namorar, almejava agora uma moça de família, alguém que gostasse de música, que não fosse egoísta e interesseira, mas que acima de tudo gostasse dele, do jeito que ele era.
Achava Luisa uma menina, nem linda e nem feia, nem alta e nem baixa, nem loira nem morena, nem magra e nem gorda, mas mesmo assim atraente. Luisa sabia ser sexy quando cruzava as pernas, e Falcão queria saber se aquele charme todo era proposital ou se era pura inocência.Ingênua mesmo nesta festa não via ninguém além de um bebê que estava no colo de sua mãe ao lado da churrasqueira, então decidiu investir.
Meia hora de conversa e lá estava Luisa, envolvida em seus braços, pedindo mais beijos e fazendo juras de amor.Pronto, já havia ganhado a noite e a moça mais misteriosa e meiga da festa, e a doçura? Ah, a candura era um dos truques da menina pra fazer com que Falcão se aproximasse, de perto Luisa era sim como todas as garotas da sua idade, cheia de armadilhas, era sedutora ao extremo.
Não demorou muito para que os dois se apaixonassem e começassem a namorar sério.Eram assim, unha e carne, não se desgrudavam, faziam tudo juntos, queriam aproveitar cada momento da juventude um ao lado do outro.
Falavam sobre filmes, música, esporte, livros, viagens, casamentos, filhos, faziam brigadeiro, amor, escreviam poemas e letras de músicas, Falcão era “Príncipe”, Luisa era “Princesa”, Falcão era o Sol, e Luisa a Lua.
E assim como o Sol e a Lua nunca podem ficar juntos, o relacionamento foi esfriando.
Luisa queria atenção, Falcão queria exclusividade.Luisa deixou as crianças do hospital, deu um tempo nos cursos de inglês e espanhol, deixou de tocar piano, trancou a faculdade.
Luisa sentia um aperto no peito, Falcão queria respirar.E aquela menina meiga e divertida foi se transformando em um ser repugnante. As crises de ciúmes e de choro, as noites mal dormidas, as olheiras, tudo isso foi fazendo com que Falcão se afastasse mais e mais de Luisa. Não queria magoá-la, mas já não sentia mais nada pela garota.Parou de ir a sua casa nos finais de semana, de chamá-la para sair a noite só para vê-lo cantar, de encanta-la com suas ligações no meio da madrugada só para dizer o tamanho de seu amor, não a achava mais atraente, nem bonita, nem sedutora e charmosa, aliás, nem lembrava mais o que tanto a atraiu quando a conheceu.Esqueceu dos versos, das notas musicais, dos acordes, dos sorrisos, das noites quentes, das promessas, do casamento e dos filhos, quanta responsabilidade!
Parou de atender suas ligações, trocou de celular, viajou pra praia...Queria um tempo...Queria um ar, queria pensar, respirar...
Luisa tentou encontrar um motivo, alguma coisa que tivesse feito de errado, alguma falha, qualquer deslize...
Procurou os amigos, mas eles já estavam longe demais, havia se afastado de todos quando se fechou em seu mundinho particular pra viver um grande amor.
Procurou a família, mas eles estavam ocupados demais em seus problemas e afinal de contas, conselho foi o que não faltou antes de se envolver neste relacionamento tão conturbado.
E assim foi perdendo o chão, viu seu mundo desmoronar em sua cabeça, chorou, emagreceu, se descabelou, gritou até ficar sem voz e a boca ficar amarga.Desejou a morte...Falcão criou um monstro.
Ligava o rádio, mas a música dos dois repetia...E a maldita letra a torturava, toque por toque, nota por nota, acorde por acorde em sua cabeça.
Achou que ia morrer e os dias se passavam rapidamente sem nem se dar conta que num pequeno apartamento no meio de uma cidade grande existia uma garota agora nem tão mais meiga, e nem tão mais boazinha que sofria, e sofria desesperadamente a perda do amor da sua vida.
Até que depois de uma noite mal dormida chegou a conclusão de que estava viva e que embora o sofrimento fosse enorme, e que a dor fosse insuportável, ninguém morre de amor.
E foi aí que Luisa reparou pela primeira vez da janela de seu quarto o mar.
A areia , as espumas brancas, o sal, as algas, as águas azuis e o Sol, brilhante como nunca...
E reparou numa onda que chega, pequenina, de mansinho e vai crescendo, assim, provocando o interesse dos surfistas, dos banhistas que gostam de se aventurar.E o mar a chamava, a implorava para que chegasse mais perto, e sem sentir, era como se uma mão a levasse a praia daquele jeito mesmo, de pijama, sem amarras, sem pudor, sem recriminação.
E quando se deu conta já estava ali frente a frente com o mar já olhando a terceira onda que vinha de mansinho tocando seus pés, como se estivesse a cumprimentando, a parabenizando por estar ali, refrescando a sua mente, a sua alma e a livrando de todos os temores. Era o início da sua cura.
Rasgou todas as cartas antigas, jogou fora todos os presentes, as fotos de quando ainda estava apaixonada, aceitou a derrota...Era a hora de recomeçar...Hora não de olhar pra trás, mas sim olhar pra frente, deixar a menina meiga de lado e enxergar a vida com os olhos maduros de uma mulher.
Passou a se aceitar melhor, a se achar bonita apesar dos defeitos e entendeu que o homem certo não tem hora marcada pra chegar, que o encontro ideal é aquele casual, que a gente não marca dia e nem hora e que acontece nos lugares mais inusitados.E assim, voltou a estudar, achou graça no piano e sentiu saudades das crianças do hospital.As aulas de inglês e espanhol se tornaram prioridades para o intercâmbio que queria fazer no final de ano.
Conheceu Eduardo, quando seu coração já estava vazio, ainda despedaçado, mas limpo pelas águas do Oceano.Edu, este sim, chegou sem enfeites, sem frescuras, sem detalhes, sem promessas de amor.
Chegou devagarzinho, se adaptando, conhecendo, errando, consertando, moldando, perdoando.
Chegou sem mudar nada, aceitando os erros e defeitos, e sem cobranças.Aprenderam juntos a valorizar as coisas simples da vida a se adequar com o dia a dia que nem sempre é fácil e a superar os obstáculos.
Aprenderam a cavalgar, a mergulhar com os peixes, a jogar boliche e sinuca, a ler Paulo Coelho, a tomar banho de cachoeira, a tirar leite da vaca, a fazer pão de queijo, a dormir sem ventilador, a andar quilômetros só pra ver o Sol nascer no interior, a acampar com os amigos, a sorrir para os inimigos, a chorar a tristeza dos outros, a ter bom humor na falta de dinheiro e principalmente o mais importante, aprenderam que o amor é um sentimento que vem com o tempo e que está nas pequenas demonstrações de afeto e carinho e que o mau uso da conjugação do verbo amar pode causar danos irreparáveis.
E Luisa percebeu que mesmo apaixonada Eduardo tinha defeitos, sabia ser intransigente quando queria, egoísta e possessivo, mas era dono de um coração enorme assim como ela.Eduardo também via em Luisa uma menina meiga que quando contrariada perdia o controle e falava o que vinha a cabeça e quanto estava de TPM nem mesmo ela se suportava.
Luisa chegou em casa, trancou a porta de seu quarto, deixou a bolsa escorada na escrivaninha e se olhou no espelho.
Não conseguia mais ver aquela Luisa que via tudo cor de rosa e que não via defeitos nas pessoas.Passou a se aceitar melhor e o mundo ao seu redor.Entendia Falcão e compreendeu que todo o sofrimento que ele a fez passar foi para o seu próprio crescimento e que ele também precisava sofrer, se encontrar, pra depois poder também encontrar um novo amor.
Luisa hoje está redescobrindo a vida, conhecendo o Mundo, aprendendo a amar.
Talvez seu relacionamento com Eduardo não dê certo, até por que nada aqui é certo, a verdade não existe, e a pessoa certa talvez a quem tanto procuramos pode ser a pessoa errada, mas é ela que a fará feliz, que fará o coração palpitar quando tocar o telefone, que a deixará com as pernas bambas após um beijo, que a deixará suspirando esperando ele chegar.
E Luisa abre a janela de seu quarto, olha pro céu, o Sol está escaldante, o mar a convida novamente...
Põe um biquíni, desta vez o azul que ganhou quando fez um mês de namoro, a campainha toca...È´ ele...
Lá vão os dois, em busca de boas manobras, prontos para arrasar na melhor estação.