O RÁDIO...

Respirei fundo.

Um suspiro que deve ter levado, no mínimo, dez minutos; na minha cabeça, uma eternidade. Tanto que só tomei coragem, de fato, quando percebi que alguns vizinhos começavam a espreitar minha suspeita presença na frente do prédio de Laura, estacionado com o aparelho de rádio embaixo do braço. Tomado de insegurança e medo por estar parecendo ridículo, enfiei na cabeça, tentando ganhar atitude, que não havia motivos para tanta dúvida já que estava apenas fazendo algo que deveria ser feito; e após fazê-lo, iria para casa seguir minha vida normal, tentando ser feliz, como sempre. Na mais pura verdade, estes pequenos atos (apertar a campainha, entregar o rádio, ir para casa) formavam o derradeiro e definitivo passo de meu relacionamento com Laura.

Fiquei com ela um ano e seis meses, e demorei dez minutos para apertar a campainha. E, se levei dez minutos apenas para apertar a campainha, imagine quanto tempo levei para aceitar que nosso namoro deveria chegar ao fim. Comparando tempos com tempos, minutos com anos, pensei nos casais unidos há dez, vinte anos e que resolvem divorciar-se depois desta vida inteira juntos; quanto tempo o marido demorava a assinar os papéis da separação?

Passaram por minha cabeça, naqueles minutos de reflexão, todas as crenças e opiniões formadas sobre relacionamentos. Sempre fui, por exemplo, um defensor ferrenho do estilo “Se não está dando certo, separem-se!”, inclusive com relação a meus pais: Quando, pequenino, surpreendia minha mãe fechada no banheiro, derramando incontroláveis lágrimas após uma das inúmeras brigas com meu pai, alertava-a dotado de lucidez incompatível com meu tamanho: “Se não está dando certo, mamãe, separem-se!”. Quando meus irmãos flagraram-me dando tais conselhos, tomei uma surra que jamais esquecerei; nenhum filho quer que seus pais se divorciem.

Aquela sabedoria descomunal na infância parece ter-me abandonado totalmente no momento em que estava prestes a tocar a campainha de Laura e devolvê-la o rádio, destruindo, assim, o último vínculo que nos unia. Sentia-me deprimido, pois devolver aquele aparelho significava dizer “não” a um amor doce e ainda cheio de vida, o qual havia transformado o sentido de seu próprio nome em um ponto de referência inatingível, algo incomparável. Tinha consciência, naquele instante, que meu amor com todo o significado que esta palavra carrega, relacionava-se diretamente com Laura, e pronunciá-lo para outra pessoa soaria estranho, incoerente, errado, como se eu estivesse errando o próprio nome desta pessoa.

A mesma mão que afaga, espanca.

Quando, num ato impulsivo, finalmente apertei no interfone o número “603”, tratei de recordar, desesperadamente a fim de não recair com Laura, os “fortes” motivos que foram capazes de pôr um ponto final a esta bela história. Estes existiram, não tenho dúvidas, mas a verdade é que de “fortes” não tinham nada. Se eu os explanasse aqui, chamar-me-iam louco, uma vez que não se tratam de grandes pecados como traições, ciúmes exagerados, escândalos em público, mas de pequenos fatos do dia-a-dia, que só são compreendidos em sua totalidade por quem passa por semelhantes situações. Não soubemos, entre outras coisas, conviver com as pequenas coisas que deveriam ser ditas e não foram, e acumularam-se aos poucos e aos montes explodindo de uma só vez no final de tudo.

Analisei tudo isso e me questionei, seriamente: Se eram pequenas coisas, e se terminamos com tanta simplicidade, e se sou um adepto do “Se não está dando certo, separem-se!”, então por que doía tanto? Por que fiquei dez minutos parado ao portão antes de apertar o número de Laura?

Antes que pudesse compreender e responder, Laura atendeu o interfone com a voz familiar que há muito eu não ouvia:

- “Pois não?”

- Oi, é a Laura? – indaguei como se não soubesse a resposta.

- “Sim...?”

- Laura, sou eu.

- ...

- Laura?

- “O... o que tu está fazendo aqui?”

- Vim te devolver teu rádio.

- “Rádio, mas que rádio?”

- Aquele que estava na minha casa. É teu. Não tem mais porquê eu ficar com ele...

- “Ah... Tá, mas eu te disse que não queria, que tu podia ficar com ele. É um rádio velho, não preciso dele.”

- Bem, é velho, mas é teu. Não vais me fazer vir até aqui à toa, né? Abre o portão, eu te levo aí...

- “Tá certo. Mas deixa que eu busco aí embaixo. Já estou descendo...”

“Mas deixa que eu busco aí embaixo”. Laura não queria que eu subisse até seu apartamento. Eu, que antes possuía uma cópia de sua chave, agora sequer podia entrar. O nó na garganta criou-se com a rapidez habitual, mas prometi e forcei-me ao autocontrole. A página final de um belo livro estava prestes a ser escrita, e esta deveria ser leve e bonita como todo o resto.

O porteiro avistou-me e reconheceu-me na hora:

- E aí companheiro! Quer entrar? A Laura está em casa...

- Não, obrigado. Vou esperar aqui mesmo. – respondi, relutando, com um sorriso amável.

E Laura demorou...

Se os dez minutos antes de apertar o interfone lembraram a eternidade, aqueles quinze até Laura aparecer não podem ser comparados com nada, tamanha a ansiedade e apreensão que me esfaqueavam lentamente, continuamente, roubando-me a alma, irritando-me e avermelhando-me as bochechas. Quis ir embora, esquecer aquela bobagem. Quis sair correndo, fugir. Quis desaparecer...

Quando não aguentava mais esperar, finalmente ela apareceu.

E, desta vez, quase não suportei as lágrimas. À luz vespertina do sol, Laura fez-me conhecer algo que deve lembrar muito a perfeição Divina: os cabelos presos em formato rabo-de-cavalo, com exceção de um ou outro fio que escorregava pela testa; os lábios pintados levemente em um tom claro e diurno (não passava um minuto sem usar batom); a roupa simples e despreocupadamente caseira; os olhos verdes...

Aqueles olhos verdes que, um dia eu jurara, seriam meus para sempre.

- A pontualidade segue sendo um problema para ti... – cutuquei-a, tentando usar um sorriso agradável, em minha cabeça imaginando-o maléfico; não sei qual dos dois saiu. A raiva e o rancor impediam-me de ser gentil.

Laura sorriu rápida e despreocupadamente, mas a verdade é que não parecia livre de sentimentos semelhantes aos meus, e uma prova disso foi o arco negativo produzido por suas sobrancelhas logo a seguir, e os lábios apertados, duros, que muito lembravam a expressão pronta que utilizava para controlar o choro (esperança minha!). Apesar desta aparente irritação, Laura parecia estar tranqüila de uma forma geral, e esta percepção doeu-me fundo no coração. Esperava resquícios de pranto nos olhos, cabelos desgrenhados, olheiras profundas, traços depressivos... qualquer coisa que me fizesse acreditar que sentia minha falta, queria-me de volta. Mas, ao contrário, surge-me esta mulher linda e pronta para recomeçar, com um frescor de entardecer e leveza de quem acabou de acordar, após relaxante cochilo. Estava bem.

- Tu sabe que eu não preciso deste rádio. – lembrou-me, ao chegar ao portão. Sim, eu sabia.

- Bem, na verdade... ele não está mais funcionando. E o técnico disse que não tem conserto. Mas ele é teu. De qualquer forma, quis te devol...ver.

Laura riu.

- Tudo bem, obrigada. O lixeiro vai ter um peso extra segunda-feira... – controlou a risada e ajeitou sutilmente um fio de cabelo que havia se soltado.

Odiei-a.

- Como tu pode rir assim, numa hora dessas!?? - indaguei, quase incrédulo. E segui, nervoso: – Poxa, um rádio bom desses estraga... acaba, digamos assim, e tu acha graça!? E tu simplesmente joga ele fora, na lixeira, Laura!?

Laura, desfazendo completamente qualquer traço de hilaridade do rosto, fez olhos de compaixão, e pareceu ter-me compreendido, pois quando falou tinha uma voz sutil e atenciosa.

- Esse certamente foi um bom rádio... Um dos melhores que já tive, com certeza! Inesquecível. Mas, usando as tuas palavras, acabou. Em mim ficaram marcas que nenhum outro rádio jamais poderá substituir, por mais moderno e útil que seja; este ficou em minha alma. Mas, a partir do momento em que jogá-lo fora, sei que não servirá mais a mim. Talvez quem o encontrar no lixão ainda o reaproveite, e, assim espero, o conserte. E talvez seja ainda muito feliz com ele. Pode ser que um dia eu passe na rua e o reencontre, e sinta ciúmes de algo que já foi meu. Mas sei, no meu íntimo SEI, que fiz a escolha certa, e que foi bom enquanto durou. Sentirei saudades, não há dúvida, mas tentarei recordar apenas os bons momentos em que fui feliz com este lindo rádio.

Faltaram-me argumentos. Laura visivelmente convencera-se e nada que dissesse a faria mudar seu pensamento.

A última página já havia sido escrita.

Soltei o rádio no chão e ficamos em silêncio. Aquele mesmo silêncio nosso cúmplice, o qual havíamos conquistado com o tempo e que há poucos meses desfrutávamos sem preocupação, agora gerava tensão, tornava o ar pesado, angustiante.

- Mais uma vez, obrigada. – deu-me um presente melhor que palavras bonitas: com seus grandes olhos verdes fitou-me com toda a ternura e toda a doçura de seu Ser, como se fossemos, novamente, amantes. Após, pegou o rádio e foi afastando-se lentamente...

Mas eu ainda tinha algo a dizer.

- Laura!

Meu grande amor virou-se.

Considerei, trazendo desde as profundezas de minha alma, tudo que havia para lhe dizer; quis, de uma só vez, unir todas aquelas pequenas coisas que não foram ditas e, transformando-as em apenas uma grande coisa, despejar em Laura e salvar o que restou de nós, recomeçar. Tentei revelar tudo, mas eram tantas coisas, e tão sem sentido àquela altura, que não soube sequer por onde começar. Minha boca abriu-se, mas não saiu nenhuma palavra. Laura mais uma vez compreendeu o meu silêncio, e, como se eu tivesse falado tudo, deu um lindo sorriso, virou-se e foi embora.

O grande amor de minha vida, amigos, durou um ano, seis meses e doze dias; e fui feliz. Quando for embora desta vida, talvez em breve, terei certeza de que senti em mim a grandeza do Amor verdadeiro, e me recordarei dele para sempre, esteja onde estiver.

Aos que lerem este relato, sei que corro o risco de parecer sentimental demais, e peço perdão. Entretanto, peço que compreendam, nunca é fácil para um homem despedir-se de seu grande amor. Especialmente se este homem estiver, na ocasião, com oitenta e dois anos de idade.

Ah! E fiquem sabendo que o rádio nunca parou de tocar...

Felipe Bilharva
Enviado por Felipe Bilharva em 16/09/2009
Reeditado em 16/09/2009
Código do texto: T1814335