SEU CORAÇÃO ESTÁ DENTRO DA CAIXA

Jandira não consegue dormir, encolhe-se, chega mais perto da mãe, mas o frio é implacável. Rasgando-se ao menor movimento o lençol fino não é de grande ajuda por isso precisa se enroscar devagar na tentativa de vencer aquele sopro gelado que entra por todos os buracos do quarto.

_ Mãe estou com frio.

_ Durma filha. Pense no lindo dia que já vai chegando.

_ Mas estou com frio!

Ela só tem dez anos, mas já passou por muitas dificuldades. Morando num quartinho de aluguel, temia os dias de inverno, pois o único lugar que não chovia era a rede onde, mãe e filha compartilhavam para dormir. Havia pingueiras em todos os lugares. Dona Luzia, a mãe de Jandira não podia consertar, não havia dinheiro.

O dono só aparecia para receber. Não admitia atraso nem reclamação, pois os inquilinos corriam riscos de ouvir:

_ Se não estão satisfeitos desocupem o quarto. Pra cada um de vocês que sai há dez à espera para entrar.

Todos sabiam disso. Por isso, calavam-se e iam vivendo como podiam. Eram pessoas paupérrimas, viviam de pequenos serviços. Eram empregadas domésticas, lavadeiras, pedreiros; pessoas sofridas que mesmo sem terem os braços cruzados o que conseguiam era insuficiente para viver com certo conforto.

Dona Luzia lavava para fora e com a ajuda da filha tinha freguesia certa; dava para pagar o aluguel em dia e fazer a feira do mês. Mesmo com tão pouco, nunca deixaram de sonhar.

_ Filha, mamãe pode não está viva quando o seu ‘dia’ chegar, mas eu desejo que você estude, encontre um bom esposo e seja feliz.

_ Que é isso, mãe? Não diga isso. A senhora vai usufruir do bom e do melhor. Estivemos juntas até agora e não vai ser diferente quando sairmos daqui pra nossa casa.

Jandira enchia a boca quando falava da ‘ nossa casa’, a mãe sorria, mas sabia que a vida não era tão cor de rosa como aparecia nos nossos sonhos.

Cabelos lisos na cintura, uma franja a esconder parte do rosto angelical, Jandira a cada dia ficava mais bonita, mas não dava conta de que por onde passava chamava a atenção.

O tempo passava.

Agora com quinze anos, moça feita despertou para uma nova fase. Conheceu Paulo um rapaz pobre, porém trabalhador. Os dois corações se encontraram e um grande amor os uniu.

_ Quando vai ser o casamento Jandira? Pergunta a vizinha curiosa.

_ Casar agora? Nem pensar. Preciso primeiro terminar os estudos.

Quando fez dezesseis anos, Jandira ficou noiva. Num gesto simbólico dona Luzia deu a mão da filha a Paulo. Quanta alegria! As duas famílias estavam felizes. Nos corações daqueles jovens parecia que uma passarinhada cantava só para eles.

II

Havia na redondeza um rapaz que tinha aos seus pés todas as garotas do bairro, menos uma. A indiferença de Jandira lhe incomodava, era como um espinho encravado que a cada pisada dava sinal que estava ali. Ele tão belo, culto, profissão que lhe dava status, dinheiro e poder...

Usando todos os artifícios que sabia, não obteve êxito. Desparafusou de uma vez. Jurou para si mesmo que ela seria dele e de ninguém mais.

Armou um laço e a ‘pombinha caiu direitinho’. Ela precisava de algumas aulas de reforço, ele se ofereceu para ensiná-la. O local seria na casa dele ‘ com minha família’, podia ficar descansada. Uma, duas, três aulas, ia tudo às mil maravilhas. Sempre havia alguém em casa, e assim Jandira se sentia segura.

Dona Luzia agradecida por ‘ aquele moço tão bom’ ter se oferecido para ajudar sua menina. Deus o abençoe, dizia ela nas suas meditações.

Chegou um recado dizendo que ele a convidava para ir lá à hora de sempre porque teria que trabalhar no dia seguinte, pois seu horário de trabalho havia sido mudado... Na hora marcada ela chegou e foi recebida como de costume. Mas depois de alguns minutos, Jandira percebeu que havia algo estranho, a casa estava silenciosa demais... É que todos haviam saído.

Quando Jandira percebeu tentou sair, mas tudo estava trancado. Implorou, chorou, pediu por tudo que era sagrado, ele não lhe deu ouvido. Antes de consumar o que seu coração egoísta e prepotente desejava, tirou a aliança do dedo da moça e disse:

_ Você de agora em diante é minha!

III

Ano de 1970. Era assim que Jandira considerava o Ano da sua desgraça. Para o noivo escreveu uma carta acabando o casamento e apresentava como motivo: ‘nunca tê-lo amado’.

Só dona Luzia sabia a verdade, mas precisava calar, pois havia uma nuvem sobre suas cabeças.

Aquela mãe casou a filha sabendo que estava entregando-a para um monstro. O ex-noivo inconsolável viajou para bem longe. A família de Paulo achava que Jandira tinha armado tudo para pegar um ‘ bom partido’ e por isso não a queriam nem vê-la pintada.

Depois de uns meses, Jandira não agüentando saber que sua ex-sogra estava em cima de uma cama, foi visitá-la e quando dona Quitéria a viu entrar, pôs-se a chorar.

_ Você causou um mal muito grande ao meu filho. Por sua causa ele jurou nunca mais por os pés nessa cidade. Vou morrer sem contemplar a face do meu Paulo!

_ Dona Quitéria, eu não tive culpa de nada!

_ Como não Jandira? Você era noiva do meu filho, fingiu que o amava e depois o largou como se fosse algo imprestável!

A mãe de Jandira não agüentando ver a filha injustamente acusada, abriu a boca:

_ Quitéria as coisas não são como aparentam ser!

_Mãe, não!

_Conte Jandira, conte o que lhe aconteceu!

_ Não!! Eu não posso! A senhora esqueceu?

A ex-sogra olhava para as duas sem compreender, mas percebia que havia algo muito grave no ar.

Jandira virando-se para a ex-sogra disse:

_ Um dia a senhora saberá a verdade.

IV

Anos se passaram. Jandira teve três filhas. Aparentava ser feliz. Mas havia um segredo a ser revelado. Ela precisava contar tudo para sua ex-sogra. E por meio de uma carta levada por sua mãe, dona Quitéria ficou sabendo de tudo. Chorou como criança, mas percebeu que também precisava calar. Seu filho nunca poderia saber, pois era melhor ter um filho longe, mas vivo.

Agora ela entendia sua ex-nora. Ela tinha que demonstrar que estava feliz. Dinheiro, casa de praia, fazenda, apartamentos, carros, as melhores faculdades para as filhas...

Dona Quitéria guardava todas as cartas de Jandira numa pequena caixa de madeira. Anualmente a ‘ sua menina’ lhe escrevia, e guardada à chave estava o que lhe era mais caro: as cartas do filho junto às cartas da ex-nora.

V

Mais uma tempestade na vida de Jandira. Uma filha após outra confessa à mãe que fora violentada pelo pai. Mas tinham que calar...

Após trinta anos de casamento, ele pede o divórcio, Jandira acredita que está chegando sua hora... Mas ele volta atrás. Era preciso continuar calada. Depois das filhas casadas, Jandira se dedica a estudar e presta vestibular, aprovada volta à sala de aula aos cinqüenta anos. Foi durante o curso, que através de uma colega de turma soube que seu marido era um perigoso chefe de quadrilha, e além de temido era capaz de matar com requinte de crueldade. E tinha quem fizesse todo serviço sem deixar rastro.

Jandira precisava continuar calada.

Concluiu o curso. Já estava divorciada, pois dois meses antes da sua formatura, ele mais uma vez pediu o divórcio e lhe ofereceu a liberdade; em troca ela abriria mão do que tinha direito. Receberia apenas um apartamento e o valor de vinte mil reais. Ela aceitou.

Mas seu tormento não terminara, ele agora passa a persegui-la.

Certo dia ela dirige seu veículo, tem consulta marcada. Percebe que está sendo seguida, entra rapidamente no consultório e pede ajuda ao médico, no qual prontamente chama um táxi e ela consegue sair por outra saída, a dos funcionários.

VI

Na casa de dona Quitéria há muito movimento. Ela piora a cada momento. Percebendo que está para partir chama seu esposo e pede que ele entregue ‘a caixa’ para seu filho.

Duas lágrimas rolam pelo rosto daquela mãe que sabia que não mais veria seu filho; rosto marcado pela enfermidade, pelo tempo, pela dor... Naquela noite ela dormiu para não mais acordar.

Paulo chega para ver a mãe dormindo o sono que todos um dia irão passar. Ele volta homem feito, filhos crescidos... Filhos que não tiveram contato estreito com os avós. Após o sepultamento fica mais uns dias, mas precisa voltar. Preocupado com o pai abre o coração desejando que este aceite o convite de juntos viajarem, pois assim não ficará preocupado, mas o velho pensa diferente.

- Filho! Não vou. Serei um peso na sua vida. Depois de sessenta e cinco anos de casamento já não sei andar sem ter sua mãe ao meu lado. Uma parte de mim se foi e a outra metade já está indo...

- Que é isso meu velho, e eu? E seus netos?

O velho com voz embargada responde:

- Deixe-me ir... Você não sabe o que é viver sem a mulher amada!

Paulo abaixa a cabeça e diz mais para si do que para o pai:

- Eu sei, eu sei... Está doendo muito, não está?

- Filho... O coração de seu pai está em pedaços, e só voltará a ficar inteiro, quando partir... Quero e preciso partir.

Pai e filho se abraçam, não precisam de muitas palavras para se entender.

-Ela queria tanto te ver, mas não pôde...

- Eu sei pai. Sinto muito.

- Não ficou mágoa, meu filho. Você não teve culpa.

Deu um sorriso meio forçado e olhando para o filho, lembrou:

- Ela deixou um presente para você.

- Um presente, Pai?

- Sim. Não posso lhe dizer o que é. Sei dizer que você só poderá abrir quando chegar em casa.

O pai foi até o guarda-roupa e de lá trouxe uma pequena caixa de madeira. Entregou-a ao filho, depois lhe passou um envelope.

Os dias corriam. Paulo tentava convencer o pai a partirem juntos, mas o velho estava convencido do contrário. Seu pai era o primeiro a acordar, por isso Paulo não estranhou vê-lo sentado numa cadeira de balanço, mas quando se aproximou percebeu que seu velho não estava bem. Chamou uma ambulância, mas o coração partido já estava em tempo de parar. Sofreu um AVC, passou algumas horas na UTI, mas não resistiu...

Ao voltar para cuidar dos últimos preparativos para o sepultamento, encontrou junto ao travesseiro do pai uma carta. Quando se pôs a ler pôde derramar as lágrimas que segurara com tanto esforço.

“ Paulo desculpe esse velho que não pôde atender a um pedido do seu coração. Eu te amo filho, mas meu coração está sofrendo. Diga aos meninos que descobrirão o avô na figura do próprio pai que eles têm. Orgulho-me de você, meu filho.”

Papai

VII

Paulo põe a casa à venda, doa as demais coisas, volta à sua cidade. Lá chegando, vai cuidar de sua vida que está esfacelada e dolorida. Lembrando do pedido da mãe e da promessa feita ao pai decide que agora é a hora de abrir a caixa. Quer descobrir o que sua mãe lhe deixou como presente. Abre o envelope, ali está escrito em letras caprichosas:

“ Seu coração está dentro da caixa”.

Mamãe

Frase estranha, sem sentido. Percebendo que dentro do envelope ainda há uma chave, que na certa servirá para abrir a caixa. Pega a chave, com cuidado coloca-a dentro de uma pequena fechadura... Dentro da caixa encontra muitas cartas. Cartas que ele mandara para os pais e... Cartas que Jandira enviara para dona Quitéria.

Jandira. Nome que ainda queima no coração, teimando em voltar à lembrança. No primeiro momento sente o desejo de jogar tudo fora, mas lembra da frase: “ Seu coração está dentro da caixa”.

Sua mãe colocara tudo em ordem, e em proporção que ia lendo, a verdade se tornara palpável, difícil de acreditar.

Eu não fui traído, não fui enganado, não fui rejeitado. Meu Deus! A mente de Paulo estava em delírio.

A última carta.

Querida sogra:

As algemas foram quebradas. Estou livre para voar. A pomba já não está em cativeiro...

...

Estou escondida. Troquei de nome, não posso ver minhas filhas, não posso mais ficar nessa cidade. Mas não se preocupe, estou bem.

Se precisar falar comigo, use esse número que a pessoa me dará o recado, e assim poderei de tempos em tempo, entra em contato, mas só de orelhão, e a cada vez, em cidade diferente e distante de onde realmente estou.

De sua filha Jacira.

Paulo passa dias lendo e relendo a carta, sabe o que deve fazer, mas teme cair num abismo pra nunca mais se erguer. Não suportará outra queda.

Tem que ouvir pelo menos a voz. Por diversas vezes pega o telefone, mas o coloca de volta, perde a coragem...

Precisa tentar.

Faz a ligação, uma voz estranha atende, é uma gravação pedindo que deixe o número, haverá retorno. Decepcionado e aliviado recita o número de cor, e fica a espera. Talvez a mais longa de toda sua vida...

Depois de horas de espera o telefone toca.

- Alô?

-Alô. Recebi uma ligação, e por isso estou retornando.

-Jandira?

A voz emudece.

- Você ainda está aí?

- Paulo?

- Sim. Precisamos conversar.

- Mas como você me encontrou?

- Mamãe me deixou um presente.

Ela volta a se calar. O tempo e o espaço são barreiras gigantescas. É preciso muito cuidado e esforço mútuo para vencer uma a uma. Mas em nome do amor, tudo é possível.

- Vamos deixar o passado pra trás, não vale a pena. Eu não sou mais a Jandira que você conheceu e você não é o Paulo que eu conheci.

- Jandira... Devemos isso a nós mesmo, a dona Quitéria, à sua mãe.

- Está bem. Vamos conversar.

VIII

Dias depois.

Quando estão frente a frente, as lágrimas caindo dizendo o que palavras não podem externar. Olham-se em silêncio, é hora de juntar as mãos, de recomeçar, juntar os pedaços.

É noite. No céu estrelas serão testemunhas do que aqueles dois corações irão confessar. Dali pra frente à decisão caberá aos dois: um caminhar juntos ou permanecer separados.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 28/05/2009
Código do texto: T1620326
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