Outro conto de amor
Um dia, pensando nela, comecei a sentir saudades. Um aperto muito forte no coração foi o bastante para que eu começasse também a perder minha própria razão. Então, chorei... pensei... dei asas ao pensamento. Libertei todo o espírito da carne e voei alto. Desfiz-me das amarras sentenciosas que me prendem a este mundo, joguei para longe todas as crenças e temores que me separam do Todo e voei... voei além das estrelas, além dos astros, além dos mundos, além do universo. Voei além do princípio e do fim. E vi Deus, com todo Seu Esplendor. Falei com Deus, com todo Seu esplendor. E pedi a Deus, por todo Seu Esplendor:
- Deixa-me ser o sol...
E Ele me fez sol. E eu fui sol e brilhei num ponto do universo, no centro do sistema. E iluminei a Terra. E fiz nascer o dia. E pude vê-la... e brilhei para ela. E a toquei. Não como quis, mas como pude. Queimei sua pele e corei seu rosto. E a vi através das frestas, do caminho. Eu a adorei e ela me adorou. E então, veio a noite e a Terra girou. Eu a perdi. Não pude mais vê-la. Ela se foi e eu chorei...
Voltei a Deus, falei com Ele e pedi:
- Deixa-me ser a lua...
E ele me fez lua. E eu fui lua e iluminei a noite. Brilhei na noite e a vi... e a segui... e a toquei... não como eu quis, mas como pude. E a iluminei e sorri para ela. E tornei mais bela a serenidade de seu rosto, sua cor morena... e velei seu sono, e a adorei...
E então, veio o dia e a Terra girou novamente. E eu a perdi. Não mais a vi. Ela se foi e eu chorei...
Tornei a Deus. Falei com Ele e pedi:
- Deixa-me ser a Terra...
E ele me fez Terra. E eu fui terra e vivi sob o sol e sob a lua. E vesti-me de relva e perfumei-me com flores. Enfeitei-me com rios, lagos e montes para agradá-la... e ela se agradou de mim. Deixei-me ser tocado por ela. Não como quis, mas como pude. E ela pisou a relva que me vestia, cheirou minhas flores, todos os dias. Bebeu de minha água, nutriu-se de meus frutos, admirou meus rios e lagos e subiu meus montes. Adorou-me, sorriu-me, amou-me...
Então, veio o homem. Sentiu ciúmes e invejou-me. Depredou-me. Poluiu meus rios e lagos, rasgou minha relva e derrubou meus montes, murchou minhas flores. E ela não mais me sorriu. Não mais me amou. Calçou seus pés, andou sobre asfaltos e calçadas... e eu a perdi. Não mais a vi. Ela se foi e eu chorei...
Voltei a Deus e O vi. Falei com Ele... pedi a Ele:
- Deixa-me ser o sangue dela...
E Ele me fez sangue e tornei-me vida. E fluí, deslizei, corri e caminhei dentro dela. E dei cor a sua pele e a fiz saudável. E ela sentiu-me. Eu a toquei... não como quis, mas como pude. E eu habitei no mais íntimo de suas entranhas. E fui vital a ela. Ela adorou-me. Amou-me e teve medo de perder-me. E quando me via sair dela, chorava e reclamava. Não, ela não gostava...
Então, veio um dia e ela ficou agitada. Agitou-me. Fez-me correr mais rápido dentro de suas veias. E eu corri. Passei como um raio por seu coração. E ele palpitou, bateu mais forte, descontrolou-se. E ela expulsou-me de seu rosto, expulsou-me de suas mãos. Gelou, suou... Perdeu o domínio sobre si mesma e sobre mim. Ela... ela amou. E eu... perdi-me. Gelei, acabei... e ela sorriu para um novo amor, que não era eu. E ela cedeu a esse amor. Viveu por esse amor. Viveu com esse amor... e eu a perdi. Não mais a vi. Ela se foi e eu chorei...
Falei com Deus... pedi a Ele:
- Deixa-me ser ele... deixa-me ser aquele que no coração dela fez morada! Deixa-me ser aquele por quem ela chora, para quem ela ri... deixa-me ser aquele a quem ela adora como um ídolo... venera como um deus... acaricia como a uma criança...
E Ele disse não.
- Serás apenas o que és, nunca o que no coração dela fez morada. Ele é o que veio antes de ti e há de ficar. Tu, porém, a amarás, não a terás. A buscarás, mas não encontrarás. A venerarás, mas não a tocarás. Terás alguém e terás uma família. Mas ela, a quem verdadeiramente amas, essa, não a terás. E este será teu jugo, teu castigo perpétuo por ter pedido além do que já te havia dado. Para consolo teu, porém, te darei domínio sobre as palavras e as dominarás. E brincarás com elas. E as subjugarás. Subjugarás a lucidez do teu raciocínio e comporás com elas, e versejarás, e farás obras com elas. E este será teu consolo, que te é dado por Mim. É isso o que te dou para que sempre que a saudade bater às portas de teu coração e começares a perder tua própria razão, escrevas e te domines... e te alivies.
Voltei a Deus. Pedi-Lhe perdão. E Ele me fez ser o que sou. E vivo sob o sol, sob a lua, sobre a terra e tenho também sangue nas veias.
Comecei a pensar nela novamente... comecei a sentir saudades. Comecei a perder minha própria razão. Estou... estou escrevendo. Estou me dominando. Estou me aliviando...