A Chave no Vaso - Namorados
 



     A Venda  do namorado da professora Sara ficava bem de viés, esquina contra esquina.Uma linha perpendicular saia dos olhos da Professora e iluminava a figura do namorado, sempre atrás do balcão. Ele sabia desses olhares que ocupavam todo o tempo livre da namorada. Ou quase. Ele não se incomodava, nem levantava a cabeça. Dizia que era para não perder a concentração. A verdade é que não se importava. Vinte e cinco anos de namoro fazia com que qualquer encanto se esvanecesse. Mas a noite, depois que fechava a Venda ele se preparava para visitá-la. Tomava banho e trocava a roupa que separava semanalmente para sair. Calça cáqui, camisa branca de colarinho. Mangas compridas.Todas as suas calças eram da mesma cor, variando só a tonalidade. As camisas também, impecavelmente brancas. Lavadas e passadas pela namorada tinham um cheiro bom de roupa limpa e bem alisada. No inverno um grosso casaco de lã marrom,  ruço de tanto uso, alterava sua indumentária. Noite após noite ele seguia a linha diagonal de luz e ia ao encontro da namorada. Nas mãos , um presentinho: uma mistura para os jantares que ela preparava. Ovos. Uma lata de marmelada ou goiabada para a sobremesa. Açúcar, farinha, arroz e feijão. Coisas que vendia. Em datas especiais, presentes especiais. Cortes de tecido, caixas de pó de arroz, vidros de água de colônia. Ele subia o único degrau e apanhava a chave no vaso de antúrio. Entrava e ela o recebia cheirosa. Estava satisfeito com a vida que levava. Não planejava mudar nada. Mas a vida sim. Cansada de tanta rotina, um dia deu uma reviravolta.
     Naquele dia Sara não foi a janela. Não que ele estivesse olhando, mas de alguma forma secreta, sabia. Durante o dia todo, a janela permaneceu fechada. O coração do inquieto namorado começou a apertar de forma estranha. O que estaria acontecendo? Pensou em ir até lá. Se sentiu tolo e desistiu. Mas a namorada não saía de sua cabeça. Pensou na vida dos dois, mal ousando levantar os olhos para confirmar o seu temor. Pensou nos primeiros cinco anos em que ela, cheia de sonhos, planejava o casamento. Chegaram a marcar a data e a fazer as roupas que ela guardava embrulhada em lençol branco na arca centenária. Depois foram se acostumando e ela parou de falar a respeito. Aos poucos pararam de falar quase completamente um com o outro. Mas se viam todas as noites e nas manhãs de domingo. Cada um com sua solidão.
    Não conseguindo se controlar, no fim da tarde ousou levantar os olhos. Não a cabeça. Só os olhos. Mas a janela continuava fechada. Ela não estava lá. E as sombras da noite foram chegando e ocultando o raio de visão do namorado.
     Ele seguiu sua rotina. Entrou em casa assim que fechou a Venda e se preparou para passar uma noite agradável. Nada tinha mudado, era impressão sua, dizia continuamente a si mesmo. E nem soube explicar porque foi ao jardim dos fundos e apanhou de um canteiro mal cuidado um buquê de margaridas. Hoje levarei um presente diferente. Eu nunca lhe dei flores, pensou. Já era tempo.
    Abriu o portão de madeira que separava o jardim da rua. Lembrou-se que nos primeiros tempos costumava passar por cima, de tão baixo que era. Portão inútil, ele dizia. Não vou trocar, ela retrucava. Quero que as pessoas vejam as flores do meu jardim. Ele voltou a se sentir ridículo. Ela não iria gostar daquelas flores brancas. Seu jardim bem cuidado era como a sombra do arco-íris. Ele pegou a chave no vaso e abriu levemente a porta. Estranhou ela não vir recebê-lo e se dirigiu a cozinha, esperando ver o fogo do fogão a lenha brilhando. Mas tudo estava escuro e frio. O fogão não tinha nem mesmo uma brasa acesa, só cinzas. Sem nem mesmo saber como voltou sobre os próprios passos pensando que ela pudesse estar doente. Mas nem pôde concluir o pensamento . Ao lado da cama, no criado mudo um copo pela metade.Um líquido estranho. E na larga cama de casal, onde ele nunca dormira uma noite inteira, a namorada, vestida de noiva: véu e grinalda.  Uma boneca de cera. Ao lado, estendido, o terno azul marinho a sua espera. Ele se aproximou, colocou o ramalhete de flores brancas sobre as mãos geladas. Depois, silenciosamente trocou de roupa, bebeu o líquido do copo e  deitou-se ao seu lado. Para sempre. Mas antes, recolocou a chave no vaso. Queria que os encontrassem logo.