Esquecendo um erro
"Era um dia de inverno. Estava realmente muito frio, um frio quase insuportável e eles não chegavam. O que será que houve? Pelo horário já era para ele ter chegado. Mas nada. Com certeza aconteceu algo. Mas o que será que houve? O que mais preocupava Beatriz era a falta de notícias de seu irmão, Maurício, e de seu marido. Ele fora no aeroporto buscar o cunhado, Vinícius, que estava chegando de um exílio forçado na Espanha. Ela não parava de andar de um lado para o outro, preocupada, pensando mil coisas. Todas péssimas, claro! Não que quisesse pensar esses pensamentos, mas em uma hora como essa, não há como controlar os pensamentos. E ainda mais na situação de Vinícius. Nesse tempo, Bia deitou no sofá, fechou os olhos e começou a rezar mentalmente. Alguns minutos depois, abriu os olhos novamente e levou um grande susto ao perceber que não estava mais na sala de sua casa e sim numa praça onde várias crianças brincavam. Aquele lugar não era desconhecido, mas não conseguia se lembrar onde era. Até que uma mulher passa ao seu lado indo na direção do pipoqueiro. Beatriz observa atenta aquela mulher que lhe parece muito familiar, mas como estava de costas, não teve como identifica-la. Depois de comprar dois pacotes de pipocas, ela dá meia volta e é nessa hora que Beatriz se reconhece na figura daquela mulher. Como era possível? Uma hora Bia estava deitada no sofá de sua casa esperando seu irmão e seu marido e no outro estava em uma praça movimentada vendo a si mesma, mais nova. Será que estava ficando louca ou fora o efeito dos remédios? Podia ser também o estresse dos acontecimentos. Também quem mandou casar com um idealista, um revolucionário? Agora sofria as pressões e o constante medo de que os militares matassem Vinícius ou até si mesma. Preocupada e cheia de curiosidade, resolve seguir a outra Beatriz e, dessa vez, quase cai para trás: era Vinícius mais novo. Agora, sim, ela sabia onde estava. Havia voltado há seis anos atrás; o ano era de 1963 e ela e o marido, que ainda não era seu marido, tinham saído para se divertir, namorar um pouco. Quanta saudade daquela época. Uma época que só havia felicidade e amor entre os dois. Nesse tempo, eles passavam horas e horas juntos, conversando, falando do presente e, até, fazendo planos para o futuro. Ela que nunca havia pensado em se apaixonar, em namorar e, principalmente, em casar, ali pensava em tudo isso. Viu o casal se beijando com tanto amor e uma lágrima escorreu de seus olhos. Onde foi parar todos aqueles planos, toda aquela cumplicidade e todo o amor que tinham há seis anos atrás? Será que acabou no momento que ela e Vinícius se casaram? Como seria maravilhoso se tudo se tornasse como antes. Vinícius não compartilhava mais nada com ela, a tratava com indiferença. Ainda continuava contando tudo a ela, mas não era a mesma coisa. Será que ele não a amava mais? De repente, um carro estranho, suspeito chega à praça. De dentro dele, sai quatro homens fortes e não muito amigáveis e caminha na direção do casal. É nesse exato momento que Beatriz recorda o que houve: foi nesse dia que tentaram sequestrá-la. Foi terrível e, aparentemente, ela não sabia por que estavam fazendo aquilo. Mais tarde descobriram que iam matá-la por engano, mas tudo terminou bem. Beatriz recordou como seu marido fora corajoso e ajudara em seu resgate. Segundos mais tarde, Bia sentiu que algo a “puxava” para o presente. Ela não queria ir, gostaria de ficar ali, para sempre, relembrando sua vida antes de casada, quando Vinícius ainda a amava, mas quando percebeu já estava novamente deitada em seu sofá e, agora, sendo observada por Maurício e Vinícius. Imediatamente, Bia levantou e agarrou seu marido pelo pescoço, o abraçando bem forte. Ele, sem entender nada, perguntou o que tinha ocorrido e ela disse que os dois precisavam conversar.
Um mês depois, os dois estavam na Europa em outro exílio forçado. Só que dessa vez eram os dois. O que aconteceu? Simples! Beatriz e Vinícius tiveram uma conversa como a tempos não tinham. Ela perguntou o que havia acorrido com todo o amor que tinham um pelo outro. No meio de muita emoção, os dois chorando muito, Vinícius disse que um pouco depois do casamento, ele a traiu e não teve coragem de revelar nem de terminar com ela. Não que não estivesse arrependido. Estava e muito e mesmo depois de anos ele ainda tinha remorsos por causa dessa maldita traição. Como não teve forças para contar e pedir perdão à mulher, resolveu se afastar dela. Afinal, não podia continuar com sua mulher tendo cometido uma besteira, uma grande besteira como aquela.
Depois de toda essa revelação, Vini disse que a amava muito, muito mesmo. Tanto e até mais quanto antes. Beatriz ficou muito feliz por toda aquela conversa, por seu marido ter dito a verdade (mesmo depois de anos) e o beijo calorosamente, amorosamente. Disse que também o amava muito.
Seis anos após aquele dia na praça, após tantos anos sem dizer “Eu te amo”, Vinícius pegou na mão de Beatriz, olhos fundo em seus olhos e chorando muito, disse:
“Cada um de nós tem um anjo que nos protege e está sempre por perto. Eu tenho muita sorte, pois o meu anjo, ao contrário do que acontece com as outras pessoas, eu posso ver, falar com ele e até beijá-lo. O meu anjo é você. Você é minha felicidade, minha razão, minha vida. Bia, você é a mulher da minha vida. Eu te amo, meu amor.”
E assim, tudo voltou a ser como era antes, ou melhor, nem tudo. Afinal de contas, eles estavam no exílio e, em breve, a família ganharia um novo membro."
Karine Ferreira – Rio, 28/01/09.