Fazenda Bichano Preto
Resumo: Fazenda mística fundamentada no Mato Grosso do Sul, onde fatos sobrenaturais acontecem e deixam os mais simples dos homens em pânico.
Era um sábado, 07:00 horas, funcionei o carro, pegando o gravador que emprestara de meu irmão Flavio Lucas e parti para a casa de Dona Bené, é assim que chamamos carinhosamente Dona Benedita Pereira Garcia, mulher idosa, mas lúcida como uma adolescente; de cabelos grisalhos, mas jovial como ninguém. Com uma guampa de tereré nas mãos, ela não se cansa de contar as histórias de sua juventude; professora pioneira no Vale do Ivinhema.
Cheguei à casa da minha mais nova e grande amiga. Depois de nos cumprimentarmos, ela me chamou para a varanda da retaguarda de sua casa, serviu-me uma xícara de café, daqueles onde o pó é feito totalmente artesanal. Fomos ao que nos interessava, digo “nos interessava” porque sei que minha amiga estava ávida por compartilhar um pouco dessa história real.
Dona Bené conta que nasceu em 1929, onde hoje é o município de Rio Brilhante, mudando-se para perto de um vilarejo de nome Xavantina, onde logo mais nasceria o que seria Santa Rita do Pardo. Quando terminou a quarta série do primário, seus pais a enviaram para Presidente Venceslau para continuar seus estudos. Concluiu o que seria hoje a oitava série e, em 07 de março de 1953, jovem de tudo, indicada por uma mato-grossense, veio trabalhar em uma fazenda como educadora. Seu Otacílio Barbosa, parente bem próximo de Seu Laucídio Coelho, pai do ex-senador Lúdio Coelho, era o proprietário da Fazenda Santa Bárbara, um homem intransigente com tudo que se referia a trabalho, educação e moral; também, uma região inóspita como aquela, sem autoridades quaisquer, requeriria de quem quer que fosse ser muito exigente para se ter uma vida sem maiores problemas.
Tempos depois a Fazenda Santa Bárbara foi vendida para um alemão de nome Heinrinch Robertus Michaelis, ateu confesso, onde de imediato, como primeira medida resolveu mudar o nome da propriedade de Santa Bárbara para Fazenda Bichano Preto. Seu Manuel José Marques, capataz da fazenda, que era muito religioso perguntou:
— Por que, Seu Michaelis? Essa fazenda é tão abençoada. Deixa do jeito que está.
— Eu não gostar de que meu propriedade tenha nome de santa. Disse o velho alemão.
Seu Manuel ficou triste, mas aceitou. Não tinha outro jeito. Logo depois o alemão perguntou ao capataz:
— Que é aquele cerca?
— É um cemitério, Seu Michaelis?
— Cemitérria? Eu não gostar de cemitérria em meu terra!
— É que Seu Lino, bondosamente, resolveu dá um pedaço de terra para as pessoa enterrar seus mortos, Seu Michaelis.
— Lino tem parrentes enterrados aqui?
— Não, Seu Michaelis!
— Então passar esterra e arrancar tudo e plantar larranja¸ tangerrina, pêssegas, e outras frrutas.
— O Senhor quer que eu passe o trator por cima das sepulturas e arranque tudo? O Senhor vai arrumá uma encrenca danada com os fazendeiros da vizinhança.
— As incomodadas que se rretirrem!
— Mas os mortos não podem se defender, Seu Michaelis!
— Não discuta comiga. Arrancar cemitérria e não falar mais nisso.
Seu Manuel estava assustado com a tomada de decisão do patrão, mas não tinha o que fazer a não ser cumprir as suas ordens. Subiu sobre o trator de esteira e, benzendo-se, começou o serviço. Segundo ele mesmo, parecia que a cada cova que ele passava ouvia gritos pedindo clemência. Os dias foram passando e o bondoso capataz todo cheio de olheiras, não conseguia dormir direito com a consciência pesada por ter aceitado participar de tamanha infâmia. Plantou as várias espécies frutíferas que o velho alemão pedira, mas, passando os anos, ele não conseguia apanhar uma manga, laranja, poncã ou outra fruta qualquer para degustar.
Com o decorrer dos anos a Bichano Preto parecia definhar. Os de fora diziam que o velho alemão não tinha tino para a pecuária. Os da fazenda diziam que era uma verdadeira maldição por ter mandado arrancar o cemitério. Uns diziam que a incidência de raios em sua propriedade era muito grande matando várias cabeças toda vez que acontecia tal fenômeno; outros diziam que onças pardas matavam muitas reses e que as jaguatiricas sempre matavam os potros, até as pobres das galinhas, os patos, os marrecos, as galinhas d’angola eram devoradas por guarás e mãos-peladas. Quando alguns diziam que acontecia o mesmo nas demais fazendas, os da Fazenda Bichano Preto sempre diziam que ali a incidência desses fatos era maior que em qualquer outra. Ela estava amaldiçoada. Houve até quem, de imediato, fosse embora com medo de que a maldição se estendesse até à sua família.
A maioria dos fazendeiros era devota de São Longuinho, acreditavam que colocando fumo picado nas galhadas de árvores, gritando o nome do santo no meio dos pastos, este sempre ajudava a encontrar uma ou outra rês, alguns usavam a frase que era conhecida de todos: “São Longuinho, São Longuinho se eu achar (aí dizia o que queria achar) eu dou três pulinhos”. A credulidade da maioria – tirando Seu Michaelis e uns gatos-pingados – sempre chegava à conclusão que São Longuinho era infalível. Era muito comum ver homens barbados pularem no meio dos pastos a gritarem:
"— São Longuinho! Achei minha vaquinha!" Ou, "São Longuinho! Achei meu potrinho!"
Seu Michaelis achava ridículo.
E quanto a perseguir um lobo-guará a cavalo? Seu Novembrino, da Fazenda Curussú-Ambá, era enfático a dizer:
— Ao correr atrás do lobo, corra ao lado do seu rastro, ou de um ou do outro lado, pois, se cruzar às pegadas do lobo, certamente o cavalo tropeçará em suas próprias patas e cairá.
Certo dia um lobo-guará atacou um galinheiro do Velho Alemão, como ele estava separando umas reses que havia vendido, estando a cavalo, resolveu correr e laçar o tal animal. Seu Manoel, o capataz que ali estava ajudando Seu Michaelis a curar os umbigos dos bezerros, ainda gritou:
— Não cruze o rastro do bicho!
Como o alemão estava do lado esquerdo do lobo e lembrou que era canhoto, teve que passar para o lado direito para tentar a laçada, não titubeou, tentou cruzar e sua montaria tropeçou às patas dianteiras e foi ao chão jogando-o a uns cinco metros de distância. Ficou desacordado por um bom tempo, retornando a consciência já em cima de uma cama todo cheio de ematomas e dores por todo o corpo. Os peões tentaram persuadir o velho, corroborando que esta crendice estava provada. O velho, por sua vez, sempre tinha um “ás na manga” bem racional para tentar evidenciar o que acontecera. Quando melhorou, foi até o local do acidente e viu alguns cipós no local e deduziu:
— Foi esta cipó que derrubou meu montarria!!!
Ninguém mais discutia com o velho que sempre via tudo por meio da lógica.
Os anos foram passando e a fazenda só combalindo. Alguns fenômenos começaram a acontecer. No pomar que fora plantado sobre o cemitério, em noites escuras, sempre acontecia de verem luzes, como se alguém as carregassem em suas mãos – sempre os peões é que viam tais luzes; o velho dizia ser fogo-fátuo ou vaga-lumes. Certo dia, sem cair uma gota de chuva, passou um vendaval e deixou todo o pomar destruído, de raízes para o ar. Os peões diziam ser as almas que estavam enfurecidas com a destruição do cemitério; o velho dizia que as matas ao redor foram derrubadas e estas faziam uma barreira de contenção dos ventos. Seu Manoel, o capataz, dizia:
— Mas, Seu Michaelis, como é que o vento foi derrubar somente o pomar?
— É que a venta encontrrou uma corredor descampado e no meia do seu caminha estava a pomar. O velho germânico tinha sempre uma resposta coerente para o que os peões achavam sobrenatural.
Vendo que não tinha tanto tino para a vida de pecuarista, o velho alemão resolveu trazer de Presidente Prudente um alambique para fazer cachaça. Denominou-a de Aguardente Bichano Preto. A princípio os peões não tomavam, porque tinham medo de tudo que saia das idéias do alemão. A tal cachaça fora, inclusive, exportada para a Argentina, Uruguai e Paraguai, fazendo o maior sucesso. Certo dia a peonada resolveu, unanimemente, tomar da tal cachaça. Inexplicavelmente, com apenas um gole eles caíram de bêbado, até aqueles que eram curtidos na cachaça; alguns gemiam, outros gritavam aterrorizados. Quando, depois de algumas horas, acordaram, não como alguém que se curara de um bebedeira, mas como tivessem desmaiados e, cada um a sua vez começou a falar do que acontecera. Seu Manoel, enquanto capataz, foi o primeiro a explicar:
— Vi o Genivaldo, filho do Seu Garrido, da Fazenda Curussú-Ambá, sendo morto pelo pai da Heleninha. Vi quando a faca entrou até o cabo e sua barrigada caindo no chão e se misturando com a terra.
Seu Antônio Curandeiro, era assim que o chamavam porque sempre sabia de um bom remédio do mato para curar as pessoas e os animais, contou por sua vez:
— Vi o Donato quando foi apartar a briga entre o Quinzão e o Zé Praxedes e levou um tiro no baixo-ventre. Vi quando ele levou a mão no local do ferimento e depois, não se sustentado em pé, levou a mão suja de sangue na parede do armazém do Parada. Lembram? Esta marca de mão está lá até hoje. Quando chove ela fica mais nítida como uma testemunha contra a violência.
Cada um contava a história de cada um dos vinte e um mortos que estavam sepultados no antigo cemitério. Destas histórias, apenas o Pedro Dorcas lembrou que foi ele mesmo quem presenciou a morte do filho do Juanjo - era assim que chamavam um paraguaio de nome Juan José, morador da Fazenda Indiana, foragido dos ervais da Mate Laranjeira – o seu filho morrera afogado no Rio Ivinhema, sendo que o Dorcas, o único que estava no momento e não sabendo nadar, nada pudera fazer, sendo um homem atormentado até hoje. O filho de Juanjo fora o único que não morrera assassinado naquelas paragens.
A partir daquele dia da embriaguez generalizada e das visões, nenhum peão queria mais ficar na fazenda. Chegaram todos para o velho Michaelis e pediram as contas.
— Os senhorres estão todas doidas!!! Como eu vai conduzir a fazenda sozinha!
Ninguém queria olhar nos olhos cheios de cólera do velho alemão, mas estavam resolutos: não ficariam.
Seu Michaelis vendo que não adiantava, resolveu dar, de acordo com o tempo em que cada um havia trabalhado: vacas, bois, novilhas ou bezerros. Ninguém quis aceitar, com medo de que a maldição do velho pudesse acompanhar tais animais e, por conseqüência a sua família.
O que o velho alemão poderia fazer sem seus homens? Resolveu vender a fazenda para um tal de Ovídio Taturana – suas sobrancelhas pareciam com tais lagartas. Este resolveu não mudar o nome da propriedade.
Dois anos depois, por volta de 1967, soube-se que o velho Michaelis morrera em um acidente de avião. Naquele dia ocorrera um vendaval sem tamanho sobre a Fazenda Bichano Preto que destruiu parte da sede. Com isso, Seu Ovídio chamou um missionário boliviano de nome Ramão Coimbra – um catequizador de índios de Bataiporã - para rezar uma missa para a alma do velho alemão. A partir de então ninguém mais ouviu falar de tais fenômenos na tal fazenda. Mas, até hoje, pescadores que sobem o Rio Ivinhema, em direção a um local que denominam de Poção, não têm coragem de olhar para a desembocadura do Riacho Santa Bárbara, pois alguns afirmam que se pode ver um velho muito alto e magro, branco como leite, pescando no local.
Depois de contar essas histórias, Dona Bené me serviu um bolo caseiro e macio, assado no forno à lenha, acompanhado de uma outra xícara de café daqueles torrados no torrador, à moda antiga. Devorei aquela merenda matutina da mesma maneira como sorvi deliciosamente cada palavra desta história.