Marvada Pinga
Lá pelos anos 50, ninguém falava em preservação. As árvores eram um atrapalho para a lavoura, por isso tinham que ser derrubadas. Somente as mais nobres iam para as serrarias, sendo que as “comuns” eram queimadas sem dó nem piedade.
“Seo” Leopoldo é um protótipo daquele tempo. Trabalhador incansável chegou a acumular algum capital. Era considerado um latifundiário numa região onde um grande agricultor tinha 25 hectares. Por isso, durante a década seguinte consolidou seu patrimônio, construiu uma olaria, uma serraria e a paixão de todas: um alambique que produzia cachaça afamada. Ah, chegou também a montar uma empresa de destocamento, comprando vários tratores de esteira.
Imaginam vocês que ele estava encastelado em um suntuoso escritório, todo equipado com eficientes secretárias e tudo o mais? Nada disso. Nem escritório propriamente dito havia. “Seo” Leopoldo tinha alergia à escrituração. “Nota fiscal” era um palavrão proibido de ser pronunciado. Assinar carteira de trabalhador? Frescura de gente que não quer trabalhar. As cargas de tijolos e de madeira eram transportadas em caminhões de madrugada, enquanto os fiscais dormiam.
Porém o volume de sua produção, mesmo naqueles tempos, ficou muito difícil de ser disfarçada. As unidades de produção eram bem espalhadas. Perto da olaria, tinha uma enorme pilha de madeira, onde ninguém mexia. Ela tinha a função de cobrir e disfarçar uma pipa onde envelheciam sessenta mil litros de cachaça. Todos sabiam disso, inclusive os fiscais estaduais. Mesmo antes desse termo ser consagrada, “seo” Leopoldo era, de fato, imexível. A cachaça, sem identificação de espécie alguma, era apelidada carinhosamente de Old Leopoldo’s pelos consumidores.
Um dia, “seo” Leopoldo recebeu uma visita interessante. Foi chamado quando estava manobrando um caminhão – não deixava de dirigir nem depois dos 60 anos – para dentro da olaria. Uma Rural Willys com quatro fiscais desconhecidos tinha chegado e os ocupantes tinham cara de poucos amigos. Queriam fazer uma vistoria nos livros, que não existiam.
- Contratei um contador de Santo Ângelo pra por em dias essas minhas coisas. O Danado me levou dinheiro e nunca mais apareceu – foi logo desconversando.
- Por que um contador de tão longe?
- Confiança!
- Tudo bem, o senhor nos acompanha, vamos fazer um levantamento físico. Quantos caminhões o senhor tem?
- Tenho dois – mentiu ele.
- Tratores?
- Quatro – disse ele, escondendo outros quatro.
- O senhor tem uma serraria e uma olaria. Onde estão as notas de venda?
- Eu não vendo, seu moço. Uso o material para construir alguma casa para meus ajudantes. É tudo pra consumo próprio.
- Quatro tratores de esteira pra consumo próprio?
- E. A gente tem que fazer algum açude, um muro de arrimo, de vez em quando um favor pra vizinho. – Leopoldo coçava o sovaco suado e falava displicentemente como se estivesse falando de uma e outra galinha no terreiro.
Quando chegaram à pilha de lenha, um fiscal viu a porta disfarçada e chegou a ver o enorme barril de madeira de sessenta mil litros.
- Isso ai também é pra consumo próprio?
- É um sonho meu, encher isso ai de cachaça, ele está cheio de água, para manter a umidade – respondeu Leopoldo caminhando em outra direção antes que eles verificassem o tipo de “água” que havia no barril.
Conduziu-os até um depósito subterrâneo, onde havia em torno de 10 barris de dois mil litros cada,e foi apresentando:
- Esse ai é de 5 anos atrás, esse outro tem só dois anos, aquele ai, o mais velho tem nove anos. - E foi servindo uma pequena dose para cada um à medida que ia apresentando a cachaça naquele porão mal iluminado.
Depois que tinham provado de cada barril, conduziu-os a um açude onde os peixes pulavam. O que se conversou por lá, “seo” Leopoldo nunca contou pra ninguém. Quando os fiscais chegaram ao carro, um dos filhos de Leopoldo já o tinha abastecido com quatro garrafões de cachaça de 9 anos.
Foram embora sem terem emitido nenhuma multa.