OS PÉS DO ASSIS

Assis foi um moleque que cresceu no mato.

Lá a vida passava devagar, ele como toda criança do interior permanecia por horas a fio diante daquele riacho que cortava o bairro onde morava em duas partes. Nos quentes dias de verão, passava muito tempo se banhando naquelas frescas águas barrentas que preguiçosamente desciam, para muito distante dali, se juntariam ao mar.

Em outras estações do ano ficava ali, sentado num tronco de árvore, vara de bambu improvisada em punho e isca de minhoca, catada ali pertinho, apreciando o quase imperceptível caminhar daquelas águas turvas, espreitando a ponta do caniço, que envergaria, ao peso do peixe fisgado.

Em outros momentos, dividia com passarinhos, saborosos frutos do alto da goiabeira que na época de colheita, devido ao peso das goiabas, galhos arqueavam até encontrar o leito do rio. Também se divertia com amigos, naquelas intermináveis peladas de várzea, com bola de meia e gol pequeno, Assis se destacava pela habilidade. Isso para não falar de sua precisão, que ficava patente quando o objeto passava a ser a bolinha de gude, jogava de forma muito peculiar, sem competidores a altura.

Até aquele momento da vida, nunca usara calçado algum, e seus pés, felizes da vida, livres, cresciam e se alargavam sem impeditivos.

Quando completou seis anos, seus pais o inscreveram na escola, pela primeira vez todos se deram conta do formato de seus pés, com dedos bem separados, e peito do pé alto, resultado: não conseguia calçar sapato algum, não faltaram tentativas, logo seguidas de frustração.

Houve esforço de experimentar tamanho dois números acima. Nenhum sapato dava conforto àquele pesinho especial. Tentou calçar meias comuns e também aquelas especiais, mais acolchoadas, enfim, nada surtiu o efeito desejado.

Assis até tentava caminhar com essa espécie de proteção para pés, mas a cada novo experimento, mais nítida ficava essa incompatibilidade. A escola por fim, abriu uma exceção, e assim, Assis pode frequentar aulas de sandália de dedo.

Por mais que se dedicasse aos estudos, existia algum fator que impedia seu desenvolvimento natural. De nada adiantou as constantes conversas da direção da escola com os responsáveis do menino, suas notas não melhoravam.

Ele como estudante, nunca conseguiu sequer chegar perto das habilidades desenvolvidas fora das quatro paredes, e continuava esbanjando sua categoria para coisas da vida real, tinha consciência que livros para ele nunca trouxeram prazer.

Não conseguiu concluir o hoje definido como ensino fundamental. Foram muitas tentativas para se inserir no restrito mercado de trabalho de sua cidade natal. Acumulou negativas.

Acabou seguindo conselho de vizinhos, que somada à morte precoce de seus pais, levou Assis a migrar para cidade grande, em busca do emprego, que faltava no interior.

Com baixa qualificação, restou ao jovem migrante, o destino traçado para boa parte da população carente, morar informal, trabalhar informal, enfim viver na informalidade.

Hoje vende mate, limonada e biscoito globo em praias da zona sul carioca, mais de uma coisa os pés de Assis não podem reclamar. Novamente voltaram a desfrutar de uma vida livre, em contato direto com o conforto da areia sob seus pés, que às vezes podem até esquentar um pouco, mas ali há poucos metros, se refrescarão na areia molhada, no eterno vai e vem das ondas.

Mesmo não intencionalmente, Assis conseguiu dar o conforto que seus pés clamaram desde sua infância, e hoje fora as sandálias de dedo, seus pés agradecem essa liberdade desfrutada por tão poucas pessoas que vivem em grandes centros.

Alcides José de Carvalho Carneiro
Enviado por Alcides José de Carvalho Carneiro em 26/10/2023
Código do texto: T7917233
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